Ainda no capítulo 16, após terem ouvido a parábola do administrador infiel, os fariseus, avarentos como eram (Lucas faz questão de lembrar), ridicularizavam Jesus (v. 14), que lhes responde algo que vai deixar mais claro em outra parábola no capítulo 18, a do fariseu e publicano (18:9-14), ou seja, "todo o que se exalta será humilhado, mas o que se humilha será exaltado" (18:14). Ciente de que os fariseus supunham que a Lei lhes garantia a posição e a reputação, Jesus diz que a Lei e os Profetas, ou seja, a Tanach, que hoje conhecemos como o Velho Testamento, vigorou até João Batista (v. 16), mas desde então o evangelho do reino de Deus estava sendo anunciado e todo homem se esforçava por entrar nele, e era mais fácil passar o céu e a terra do que cair um til da Lei (v. 17). Jesus é a consumação espiritual da Lei, conforme Calvino explica:
16. ABOLIDA A LEI CERIMONIAL NO QUE TANGE A SEU
USOOutra é a situação das cerimônias, as quais foram abolidas não no efeito, mas somente no uso. Embora, por sua vinda, Cristo lhes tenha posto fim, nada lhes subtraiu à santidade: ao contrário, ainda mais a recomenda e enaltece. Ora, assim como ao povo antigo teriam as cerimônias oferecido um espetáculo vazio, salvo se nelas fosse revelado o poder da morte e da ressurreição de Cristo, assim também, se elas não cessassem, hoje não seria possível discernir com que propósito foram instituídas.
Conseqüentemente, para provar que a observância delas não era apenas supérflua, mas até nociva, Paulo ensina que foram sombras cujo corpo encontramos em Cristo [Cl 2.17]. Vemos, pois, que em seu cancelamento refulge melhor a verdade do que se continuassem – ainda de longe e como que por trás de um véu – tipificando o véu do templo que se rasgou em duas partes [Mt 27.51], porque já era vinda à luz a imagem viva e expressa dos bens celestes, que fora iniciada apenas em delineamentos obscuros, como diz o autor da Epístola aos Hebreus [10.1].
A isto se aplica a declaração de Cristo: "A Lei e os Profetas vigoraram até João; a partir de então começou a proclamar-se o reino de Deus" [Lc 16.16]; não que os santos patriarcas tenham sido privados da pregação que contém a esperança da salvação e da vida eterna, mas, ao contrário, que apenas vislumbraram de longe e sob sombreamentos o que hoje contemplamos em plena luz.
Por que, porém, se fez necessário à Igreja de Deus começar com esses rudimentos e subir mais alto, explica-o João Batista: "Porque a lei foi dada por Moisés, a graça, entretanto, e a verdade foram trazidas por intermédio de Jesus" [Jo 1.17]. Pois, ainda que nos sacrifícios antigos foi, na verdade, prometida a expiação, e a Arca da Aliança foi seguro penhor do paterno favor de Deus, tudo isso teria sido enganoso, salvo se fundado na graça de Cristo, em quem se acha sólida e eterna estabilidade.
Contudo, que isto fique estabelecido: ainda que os ritos legais tenham deixado de ser observados, entretanto, por seu próprio fim, melhor se conhece quão grande tenha sido a sua utilidade antes da vinda de Cristo que, ao abolir seu uso, por sua morte, lhes selou a força e efeito.
(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 2, pp. 126)
Ainda dentro do contexto da parábola anterior, em que a usura proibida pela Lei era contornada pelos judeus (principalmente pelos fariseus, que era a camada mais rica da população) mediante o escrito de uma dívida muito maior do que a que havia sido pactuada, Jesus censura também os fariseus por eles facilitarem o divórcio segundo suas interpretações de conveniência. Aparentemente, o v. 18 está deslocado no meio dessas duas parábolas, mas se repararmos bem, Jesus exemplifica com o divórcio para mostrar a hipocrisia dos fariseus, tão zelosos das coisas mínimas, mas tão "liberais" em relação a temas que lhes convinham. É nesse contexto que deve ser entendido também o "esforçar-se" do v. 16. Os fariseus viviam uma vida cômoda, fácil, e muitas vezes "esplêndida e regalada" como o rico da parábola (v. 19), enquanto o povo vivia na miséria e, realmente, se esforçavam no meio da multidão para encontrar e tocar Jesus, como acontecera com a mulher que tinha uma hemorragia que não estancava (Lucas 8:42 -"as multidões o apertavam"-48). Outro detalhe importantíssimo do evangelho de Lucas é que ele gosta dos pobres, não por um mórbido prazer socialista extemporâneo, mas para ressaltar a elevação da importância de um povo jogado na miséria material e espiritual pelos seus líderes pomposos e formalistas. Neste sentido, o evangelho de Lucas pode ser lido, sim, como socialista, embora não se deva perder nunca, a sua ótica eminentemente espiritual.
Jesus não perde a oportunidade e lhes conta a parábola do rico e Lázaro (vv. 19-31), uma das mais belas e profundas de seu ministério. O Mestre começa comparando o estilo de vida luxuoso e inconseqüente do homem rico (v. 19) e do mendigo que, coberto de chagas, jazia à sua porta (v. 20). Este mendigo se chamava Lázaro, o único personagem chamado pelo nome em todas as parábolas que Jesus contou. Houve até uma tentativa de dar ao rico um nome também, Dives, segundo a antiga tradição latina, mas realmente o rico não tem nome nenhum nesta parábola, o que não deixa, desde já, de ser um contraste marcante. Tanto a sociedade antiga como a atual tende a prezar os ricos, chamando-lhes por nome e principalmente pelo sobrenome, e os pobres são o que são: pobres, e, geralmente, indignos de terem sequer o seu apelido lembrado. Isto deve ter chamado a atenção dos ouvintes de Jesus, muitos acostumados a ouvir suas parábolas, e que agora constatavam que um dos personagens (justo o pobre) tinha um nome, Lázaro. Sua situação era tão desesperadora que se alimentava das migalhas que caíam da mesa do rico e mesmo os cães vinham a lamber-lhes as feridas (v. 21). Neste momento, há uma ruptura na história: o mendigo morre e é levado pelos anjos ao seio de Abraão, e também morre o rico e é sepultado (v. 22). Nesta comparação entre os dois quanto ao destino comum de todo ser humano, a morte, fica claro que o mendigo deve ter morrido e, se alguma alma caridosa ainda teve o cuidado de jogá-lo num buraco, certamente isso já seria uma certa surpresa, já que todos o desprezavam. Já o rico deve ter tido um funeral com direito a toda pompa e circunstância, enquanto Lázaro nem sepultura teve. Teve algo melhor, entretanto: foi carregado pelos anjos (em espírito) ao "seio de Abraão", que é uma linguagem metafórica que indica grande honra, da pessoa que se assenta em um banquete ao lado do anfitrião, como João, o discípulo amado, recostado no seio de Jesus (João 13:23, 21:20). A idéia de encontrar os patriarcas no paraíso era recorrente no imaginário judaico e o próprio Jesus confirmara esta visão após o encontro com o centurião romano que o surpreendeu com sua fé:
Mat 8:11 Mas eu vos digo que muitos virão do oriente e do ocidente, e assentar-se-ão à mesa com Abraão, e Isaque, e Jacó, no reino dos céus;
Mat 8:12 E os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes.
A morte dos dois personagens da parábola gera um problema para os espiritualistas e os aniquilacionistas (que não crêem na imortalidade da alma). Para estes, se a história tivesse parado no "foi sepultado" do v. 22, vindo a seguir o juízo final, sem nenhum estado intermediário, tudo se encaixaria na sua pregação; para aqueles, se ao invés de ter sido levado pelos anjos ao paraíso com Abraão, Lázaro tivesse ascendido a outro plano espiritual onde se prepararia para a próxima reencarnação, a sua pregação seria legitimada. Entretanto, não é isso o que acontece. Logo após ter sido sepultado, o rico se encontra afligido no inferno (no Hades) e de longe vê Lázaro com Abraão ao seu lado (v. 23). Este versículo também mostra que existe o inferno como um lugar de tormento, como o próprio Jesus havia se referido anteriormente ao Hades, relacionando-o com a visão de Abraão, Isaque e Jacó (Lucas 13:27-29). O rico pede, então, a Lázaro que lhe refresque a língua com um dedo molhado, pois não agüentava mais o calor da chama (v. 24), e é Abraão que lhe responde dizendo que ele havia tido os seus bens em vida enquanto a Lázaro coubera os males (v. 25). Ademais, havia um enorme abismo entre ambos, e ainda que fosse possível a comunicação verbal, o mesmo não acontecia com o transporte pra lá e pra cá (v. 26). Aterrorizado com sua situação, o rico quis, pelo menos, salvar sua parentela, seus cinco irmãos, pedindo que Abraão lhe permitisse comunicar-se com eles (vv. 27-28), ao que o patriarca respondeu que eles tinham Moisés e os Profetas, ou seja, a Palavra de Deus, e deviam ouvi-los (v. 29). Conhecendo bem seus parentes, o rico tentou argumentar dizendo que era melhor que um morto fosse ter com eles, ao que Abraão, sabiamente, contestou dizendo que se não ouviam nem Moisés nem os Profetas, nem que alguém ressuscitasse eles se converteriam. Aqui está, portanto, uma negação peremptória da possibilidade de comunicação entre mortos e vivos, como o espiritismo defende. Nem que quisessem, os mortos poderiam se comunicar com os vivos. Também está negada a possibilidade de batismo pelos mortos, como os mórmons pregam, pois, a contrario sensu, se alguém não se converteu em vida, certamente não o fará depois de morto. Tanto os espíritas como os aniquilacionistas se defendem dizendo que esta parábola é uma alegoria apenas, e que seria imprestável para contrariar as suas doutrinas, mas dizer isto, com o devido respeito às opiniões divergentes, é atribuir a Jesus um falar sem sentido, uma verborragia inconseqüente. Admitir que uma parábola não tem a intenção de ensinar uma profunda verdade espiritual subjacente é o mesmo que assemelhar a Bíblia a histórias da carochinha. Supondo o absurdo de que Jesus tivesse contado, por exemplo, histórias de ficção científica, com viagens interestelares, para uma audiência que nem imaginava o que isto significava, mesmo assim, haveria alguma verdade profunda a ser comunicada, como o próprio Mestre dissera aos seus discípulos em Lucas 8:10, relacionando as parábolas aos mistérios do reino de Deus. Não se pode negar, portanto, que os ouvintes originais desta parábola sabiam muito bem do que Jesus estava falando, e Ele não fez esforço algum em desmentir a visão que eles tinham da imortalidade da alma
[1], da existência de um céu e um inferno após uma única vida neste mundo, e da impossibilidade de comunicação entre mortos e vivos. Lutero assim se manifesta:
Assim, quer dizer aqui que deve existir uma vida diferente daquela que procuram e têm em mente, e que um cristão tem que contar com tristeza e sofrimento no mundo. Quem não admite isso, pode perfeitamente ter bons dias nesta terra e viver conforme todos os seus desejos, depois, porém, haverá de sofrer eternamente, conforme diz em Lucas 6[.25]: "Ai de vós que, aqui, estais rindo e se alegrando, pois tereis que lamentar e chorar", como aconteceu com o homem rico em Lucas 16[.19], que viveu todos os dias esplendidamente e em alegria e se vestia com seda preciosa e púrpura; pensava consigo mesmo que era um grande santo e que estava muito bem com Deus, por lhe ter dado tantos bens. Não obstante, deixava o pobre Lázaro atirado diariamente diante da porta, coberto e úlceras, passando fome, aflição e grande miséria. Mas qual foi a sentença derradeira que alguém ouviu quando se encontrava no fogo do inferno? "Lembra-te que recebeste coisas boas em vida, mas Lázaro recebeu males. Por isso, agora, és torturado; ele, porém, está consolado", etc. [Lc 16.25].
(Martinho Lutero, "Prédicas Semanais sobre Mateus 5-7", in Obras Selecionadas – Interpretação do Novo Testamento – Mateus 5-7 – 1 Coríntios 15 – 1 Timóteo, Eds. Sinodal/Ulbra/Concórdia, 2005, vol. 9, pp. 35-36)
Concluindo, é de se perguntar: qual é a mensagem central de Lucas 16?
A meu ver, no contexto em que estão inseridas essas duas parábolas, é preciso lembrar que Lucas 15 termina com aquela que é, talvez, a maior das parábolas sobre a infinitude do amor e da graça de Deus, a do filho pródigo, passando pela administração das coisas terrenas presentes (a do mordomo infiel) e terminando com a firmeza das promessas e as terríveis conseqüências da ira de Deus (a do rico e Lázaro). Em tudo isso, uma expressão se destaca: a "verdadeira riqueza" (Lc 16:11). Qual é ou qual deveria ser a nossa verdadeira riqueza? Enquanto depositamos nosso amor, nossa fé e nossa esperança em coisas e pessoas vãs e passageiras, ainda que seja em nós mesmos, certamente seremos miseráveis. A verdadeira riqueza está, portanto, na salvação propiciada por Jesus, e esta é, a meu ver, a mensagem central de Lucas 16.
[1] Para uma visão do que pensa Calvino respeito da imortalidade da alma, em especial no último parágrafo do seu texto, clique
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