segunda-feira, 30 de junho de 2008

Eclesiastes - capítulo 7


Leitura anterior: Eclesiastes - capítulo 6

O capítulo 7 é o mais longo de Eclesiastes, e talvez seja o mais belo e o mais injustiçado, já que muita atenção se dá a Eclesiastes 3 e se esquece a profundidade dos ensinamentos do Pregador em Eclesiastes 7. 

Para mim, este é o momento de sua pregação em que aquilo que parecia etéreo, excêntrico, filosófico (ou distante) demais, começa a ter uma aplicação mais prática, mais "pé no chão", ao alcance das atormentadas almas mortais. 

Assim, ele lista uma série de situações em que a nossa vaidade é despertada, em que nos sentimos importantes e especiais, como no caso de um ungüento precioso (7:1), o banquete na casa (7:2 - na companhia de várias pessoas supostamente felizes, portanto), a canção do insensato (7:5), e - a cada uma dessas circunstâncias específicas em que a vaidade é realçada -, o Pregador contrapõe outra situação em que a sabedoria verdadeira está sendo negligenciada, talvez porque é mais cômodo se ater apenas à própria solidão. 

Temos, portanto, uma sabedoria que se apresenta, se deixa conhecer, aplicando-se às cenas cotidianas de todos nós, e este é o momento em que o Pregador [Qohéletcomeça a dizer a que veio, e qual é sua real intenção.

Assim, a preocupação do primeiro versículo é com a reputação, com a "boa fama", a qual o Pregador considera melhor do que um perfume caro, o "ungüento precioso", o que não deixa de ser uma comparação bastante atual, já que muitas pessoas preferem camuflar a sua reputação atrás de perfumes sensuais e roupas caríssimas, como se elas tivessem o condão de modificar o que lhes vai por dentro. 

A estes Jesus chamaria de "sepulcros caiados" (Mateus 23:27), e alguns de nós poderiam usar o provérbio "por fora bela viola, por dentro pão bolorento". 


Na sabedoria prática de Qohélet, é melhor o dia da morte do que o do nascimento, porque a morte, sobretudo para o cristão, não deixa de ser um momento de redenção, uma tarefa cumprida, uma volta para casa, um encontro marcado com a eternidade, enquanto o nascimento é apenas o começo de uma vida sujeita a todas as vaidades debaixo do sol. 

Neste diapasão, é melhor ir a um velório do que a um banquete (v. 2), pois diante da morte do outro (seja ele querido ou não) é que compartilhamos da humanidade que nos une, do destino comum a todos nós, e aí podemos refletir como estamos, de fato, levando a nossa própria vida. 

Afinal, só temos um vaguíssimo vislumbre da morte pela experiência dela pelo outro.  Curiosamente, nenhum de nós passará - em vida - pela experiência da morte, razão pela qual ninguém sabe exatamente o que seja o fim que a todos é reservado, e é nos velórios que somos lembrados de que ela existe e nos espera. 

Não que os banquetes não sejam bons, mas a comida e a bebida tendem a entorpecer os nossos verdadeiros objetivos nesta vida. 

Ainda nesta lógica, digamos, esquisita, é melhor magoar-se do que rir (v. 3), porque a mágoa, em geral, é conseqüência do conhecimento de algo ou de alguém que até então se apresentava como verdadeiro e agora vemos que é falso, enquanto rir pode ser algo meramente inconsequente. 

O sofrimento e a dor, se devidamente encarados, vividos, apreendidos e aprendidos, sem vitimização, purificam e nos fazem crescer. É por isso que "o coração dos sábios está na casa do luto, mas o dos insensatos, na casa da alegria" (v. 4). 

Embora a maioria das pessoas não goste, é melhor ser repreendido pelo sábio do que juntar-se à cantoria dos insensatos (v. 5), cujas gargalhadas se comparam a espinhos crepitando debaixo de uma panela (v. 6). 

Ora, o que mantém o fogo aceso são as achas de lenha e não os espinhos, que apenas crepitam, fazendo o efeito sonoro, mas inútil para o cozinhar.

A seguir, o Pregador volta a um tema que lhe preocupa bastante durante todo o livro de Eclesiastes, a opressão, que chega a enlouquecer o sábio, e a corrupção dos subornos (v. 7). 

O mundo é corrupto, ele não cansa de dizer, e "melhor é o fim das coisas do que o seu princípio" (v. 8), o que contraria, até certo ponto, o senso comum, de que o fim das coisas é sempre triste, mas Qohélet tem outros olhos para isso, vê as coisas de outra perspectiva, que é a eternidade, como já havia deixado claro em Eclesiastes 3:11. 

No seu prisma, as coisas que realmente importam não têm princípio nem fim, pertencem a outra dimensão, mas neste mundo tudo é temporal e se desgasta naturalmente. 

Ele ainda encontra lugar para admoestar-nos que devemos ser tardios em irar-nos (v. 9), uma característica geralmente atribuída a Deus no Velho Testamento (Números 14:18; Salmos 103:8, 145:8; Joel 2:13, por exemplo) e que Tiago (1:19) nos aconselha a cultivar. 

Salomão já havia dito isso em Provérbios 19:11 – "a sabedoria do homem lhe dá paciência; sua glória é ignorar as ofensas" – NVI. Então, no v. 10, o Pregador dá um conselho que contraria ainda mais aquilo que estamos acostumados a pensar:


"Jamais digas: Por que foram os dias passados melhores do que estes? Pois não é sábio perguntar assim."

No nosso mundo, a juventude é admirada, louvada, apreciada, benquista. O envelhecimento é tido como algo feio, sujo, fétido, ruim, malvado, que devemos evitar a todo custo, embora seja o curso natural (e inevitável) das nossas vidas. 

Por isso mesmo, nos cercamos de saudosismo e nostalgia. Ficamos a lembrar-nos, morbidamente, de como éramos felizes e não sabíamos, de como o que passou tem mais valor do que o que estamos vivendo, de como o passado é melhor do que o presente. 




O Pregador se indigna com este tipo de pensamento, e eu acho que ele está certo. O envelhecimento, visto como amadurecimento, é uma bênção de Deus

Não podemos nos trancar no baú de recordações do passado, recusando-nos a envelhecer e, assim, nos esquecermos de que temos que viver hoje, e hoje a nossa vida é mais feliz do que foi alguns ou muitos anos atrás. 

Não podemos nos esquecer, também, de que a memória é traiçoeira, e ela tende a apagar os maus momentos e reforçar, adoçar, açucarar mesmo as boas lembranças. 

Qohélet se insurge contra esta atitude na vida, pois o que verdadeiramente importa é o hoje, o presente. Como eu já havia dito no primeiro capítulo, o Pregador é existencialista no melhor sentido da palavra, e o que lhe importa é o aqui e o agora, não o que passou. 

O elixir da juventude é a eternidade no nosso coração.

Nos vv. 11 e 12, o Pregador faz uma comparação interessante entre sabedoria e dinheiro. Pela primeira vez, ele diz que herança e dinheiro podem ser coisas boas, para aqueles que vêem o sol, mas somente a sabedoria preserva a vida. 

Muitas vezes, tanto a herança como o dinheiro causam a morte de quem os recebe. A sabedoria é muito melhor. 

O v. 13 mostra a impotência do homem diante dos decretos de Deus, já que ninguém pode endireitar o que ele torceu. 

É no v. 14 que o Pregador retoma um dos pilares de seu discurso, a providência divina, pois Deus tanto faz o dia da prosperidade como o da adversidade. 

Os bons morrem, e muitos maus vivem bastante (v. 15), logo não há razão para imaginar que a providência de Deus seja uma lógica matemática. 

Somente Ele sabe os seus desígnios e, principalmente, o que passa dentro de cada coração humano. Portanto, o equilíbrio deve ser buscado em tudo na vida. Todos os extremismos devem ser evitados. 

Não devemos ser demasiadamente justos nem exageradamente sábios (v. 16), mas também não podemos ser demasiadamente perversos ou loucos (v. 17). Estes dois versículos deviam ser mais lidos na igreja para evitar tanto o farisaísmo como a licenciosidade. 





É o equilíbrio que, por assim dizer, é o amálgama dos 4 pilares onde se sustenta Eclesiastes: a sabedoria, a providência divina, a eternidade e o temor de Deus, pois "quem teme a Deus de tudo isso sai ileso" (v. 18). 

No v. 20, está uma declaração que embasa também o pensamento de Paulo em Romanos 3:10, pois "não há homem justo sobre a terra que faça o bem e que não peque". 

Para quê, então, viver à espreita de quem possa estar cometendo um erro ou falando mal de nós (v. 21), se somos todos sujeitos aos mesmos pecados (v. 22)?


Ainda com relação a Eclesiastes 7:16-17, sobre não ser demasiadamente justo, a palavra hebraica traduzida por justo aí é צדּיק - tsaddîyq - que quer dizer basicamente justo, legal, correto, no sentido de algo que está de acordo com a lei. 

Eu acho que "justo" não é uma boa tradução, já que ninguém pode definir exatamente o que seja justiça. Aquilo que é justo para um pode ser injusto para outro. Além disso, há muitas leis injustas. 

Então, eu concordo com alguns comentaristas que dizem que deve se entender essa palavra por legal, legalista, que cumpre a lei ao pé da letra. Desta maneira, não devemos ser legalistas como os fariseus, por exemplo. 

Com relação ao "exageradamente sábio", o significado me parece que seja também de não querer ser o sabe-tudo, o dono da verdade, alguém que não só dita mas detém o monopólio da interpretação das regras como se fosse o próprio Deus. 

Além disso, bem no espírito de Eclesiastes, o Pregador quer que se viva a vida sem grandes obrigações de ser a mais certinha das pessoas. O lema dele é "viva por prazer e não por obrigação". 

Por "demasiadamente perverso ou louco", eu acho que o contexto indica que não devemos ser alucinadamente materialistas, ou seja, que vivamos única e exclusivamente em função de aumentar o nosso prazer material, esquecendo-nos do espiritual e dos pequenos prazeres da vida. 

E entenda-se por "prazer material" aí tanto os excessos carnais como tudo aquilo que desrespeita, rouba, fere e mata os outros, apenas para que consigamos atingir os nossos objetivos mundanos pisando neles. 

É na mistura de todas essas qualidades que eu acho que temos que encontrar o equilíbrio na vida.




Como o Pregador já havia dito logo no começo (1:8), muito conhecimento é enfado. Logo, perseguir a sabedoria apenas por perseguir também é vaidade, pois ela sempre se afasta de nós (v. 23). 

Quanto mais sábios ficamos, menos sabemos, o que lembra a frase atribuída a Sócrates: "só sei que nada sei!". Ser sábio é ter consciência das próprias limitações e a elas se acomodar. 

Querer saber demais nos põe em contato com a perversidade, a insensatez e a loucura (v. 25). Talvez por isso Deus tenha dito a Moisés que "as coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus" (Deuteronômio 29:29) e Jesus tenha dito aos discípulos: "ainda tenho muito que vos dizer; mas vós não o podeis suportar agora" (João 16:12). 

Por fim, Qohélet faz um ataque aparentemente genérico às mulheres no v. 26, mas que deve ser entendido como uma autocrítica de Salomão a respeito de suas mulheres, o momento de introspecção de alguém que tinha 700 mulheres e 300 concubinas, "que lhe perverteram o coração" (1 Reis 11:3). 

As mulheres não devem se sentir desprestigiadas por esse trecho final do capítulo 7, mas talvez não seja tão difícil assim fazer um pequeno esforço para tentar entender a amargura de um homem poderoso que, no fim da vida, se viu "metido em muitas astúcias" (v. 29) que ele próprio causou.

Afinal, nunca é demais repetir a mensagem que todo o livro de Eclesiastes transmite desde o seu segundo versículo: "vaidade de vaidades, tudo é vaidade"...

E não é que é mesmo?







Leitura seguinte: Eclesiastes - capítulo 8


Justiça no pensamento aristotélico - 3

3) ÉTICA E JUSTIÇA EM ARISTÓTELES

Como lembra Paulo Nader, “diferentemente de seu mestre (Platão), que situava as questões filosóficas num plano de profunda abstração, Aristóteles procurava ligar-se mais aos fatos empíricos, na contemplação dos fenômenos sociais[1]. Para tanto, o estagirita concentra-se na questão da virtude (areté), do agir virtuoso, como referencial da conduta humana desejável e esperada. A sociedade grega, já significativamente desenvolvida para os padrões da época, não consegue mais ver-se explicada de maneira abstrata, etérea, e as antigas interpretações míticas não mais dão conta das necessidades reais da organização da vida em sociedade. Falando sobre a origem da democracia grega, Werner Jaeger traça o retrato dessa transformação:
“Antes de chegar a ela, assistimos ao desenvolvimento de uma série de graus intermediários, dos quais o mais antigo é uma espécie de aristocracia. Esta, porém, já não é a mesma de outrora. A diké constitui-se em plataforma da vida pública, perante a qual são considerados “iguais” grandes e pequenos. Os próprios nobres tinham de submeter-se ao novo ideal político que surgiu da consciência jurídica e se tornou medida para todos. Nas épocas seguintes de lutas sociais e violentas revoluções, até os nobres se viram constrangidos a procurar amparo nela. Na própria linguagem manifesta-se a formação do novo ideal. Encontramos, desde os tempos mais recuados, uma série de palavras que designam certos gêneros de delitos, como adultério, assassínio, rapto, furto. Mas falta-nos um conceito genérico para designar a propriedade pela qual evitamos aquelas transgressões e nos mantemos dentro dos justos limites. Para esse efeito a nova idade criou o termo abstrato Dikaiosýne, tal como na época do mais alto apreço pelas virtudes combativas se criaram substantivos correspondentes à destreza guerreira, à valentia nos combates pugilísticos, etc., termos ausentes nas línguas modernas. O novo termo proveio da progressiva intensificação do sentimento da justiça e da sua expressão num determinado tipo de homem, numa certa areté. Originariamente, as aretai eram tipos de excelências que se possuíam ou não. Nos tempos em que a areté de um homem equivalia à sua coragem, colocava-se no centro este elemento ético, e todas as outras excelências que um homem possuísse se subordinavam a ele, e deviam por ao seu serviço. A nova dikaiosýne era mais objetiva. Tornou-se a areté por excelência, desde o instante em que se julgou ter na lei escrita o critério infalível do justo e injusto. Pela fixação escrita do nomos, isto é, do direito consuetudinário válido para todas as situações, o conceito de justiça ganhou conteúdo palpável. Consistia na obediência às leis do Estado, como mais tarde a “virtude cristã” consistiria na obediência às ordens do divino.”[2]
Diante deste quadro, Aristóteles é o primeiro pensador sobre a questão da Justiça propriamente dita, em essência e como práxis. A ela dedica boa parte da sua monumental obra. Marilena Chauí o considera “o criador da filosofia prática. Não que antes dele as questões éticas não houvessem sido discutidas e tratadas... Aristóteles é o fundador da filosofia prática porque demarcou o campo da ação humana e distinguiu, pelo método e pelo conteúdo, o saber prático e a técnica fabricadora, assim como o saber teorético e o prático[3]

Para Aristóteles, o conhecimento (e a prática) da justiça passa pelo viver ético, pelo agir virtuoso. Já no Livro II de sua Ética a Nicômacos, há um trecho em que o estagirita expressa o intuito, o propósito, o objeto e o sujeito do estudo da ética:

“Estou falando da excelência moral, pois é esta que se relaciona com as emoções e ações, e nestas há excesso, falta e meio termo. Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança, desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e sofrimento, demais ou muito pouco, e, em ambos os casos, isto não é bom: mas experimentar estes sentimentos no momento certo, em relação aos objetos certos e às pessoas certas, e de maneira certa, é o meio termo e o melhor, e isto é característico da excelência. Há também, da mesma forma, excesso, falta e meio termo em relação às ações. Ora, a excelência moral se relaciona com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um acerto; ser louvado e estar certo são características da excelência moral. A excelência moral, portanto, é algo como eqüidistância, pois, como já vimos, seu alvo é o meio termo. Ademais é possível errar de várias maneiras (com efeito, o mal pertence à categoria do limitado, segundo a imaginação dos pitagóricos, e o bem à categoria do limitado), ao passo que só é possível acertar de uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil acertar – fácil errar o alvo, e difícil acertar nele); também é por isto que o excesso e a falta são características da deficiência moral, e o meio termo é uma característica da excelência moral, pois
‘a bondade é uma só, mas a maldade é múltipla’[4]
Percebemos, pois, que por virtude, Aristóteles entende uma prática. A virtude não é, portanto, apenas e tão-somente natureza; e não haveria um aprendizado suficientemente eficaz para garantir a ação virtuosa. A virtude, contudo, seria a plenitude da excelência moral, e desta maneira não poderia existir em seres incompletos ainda em formação, como as crianças. A virtude não é congênita. A excelência moral, revelada pela prática da virtude, seria, antes de tudo, uma disposição de caráter. Para o exercício da virtude seria, pois, necessário conhecer, ponderar, julgar, discernir, raciocinar, calcular e também deliberar, o que implica numa atitude essencialmente prática. Contrariamente às tradições socrática e platônica, não se entende que o mero conhecimento do bem possa dirigir a ação justa. A virtude, vista como excelência moral, teria que corresponder à noção de uma razão reta relacionada às questões da conduta. Ora, tal disposição do caráter humano teria por pressuposto a precedência de uma escolha dos atos que devem ser praticados; e de um hábito afirmado e confirmado pela repetição, o que leva à ação reta. Nesse sentido, pode-se dizer que, na Ética de Aristóteles, a virtude é, antes de tudo, um hábito – hábito este construído pela íntima relação entre potência e ato:

“Além disso, em relação a todas as faculdades que nos vêm por natureza recebemos primeiro a potencialidade, e, somente mais tarde exibimos a atividade (isto é claro no caso dos sentidos, pois não foi por ver repetidamente ou repetidamente ouvir que adquirimos estes sentidos; ao contrário, já os tínhamos antes de começar a usufruí-los, e não passamos a tê-los por usufruí-los); quanto às várias formas de excelência moral, todavia, adquirimo-las por havê-las efetivamente praticado, tal como fazemos com as artes. As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as – por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente. Essa asserção é confirmada pelo que acontece nas cidades, pois os legisladores formam os cidadãos habituando-os a fazerem o bem; esta é a intenção de todos os legisladores; os que não a põem corretamente em prática falham em seu objetivo, e é sob este aspecto que a boa constituição difere da má.”[5]
Este excerto confirma a perspectiva aristotélica da virtude como algo essencialmente prático; uma razão prática, na exata medida em que a ação não depende necessariamente do conhecimento teórico; mas que é decorrência natural do hábito, pela ação propositalmente exercitada e repetida, mediante uma faculdade já existente, em potência, no caráter do homem. O comportamento seria, desta forma, o grande diferencial da ética; o modo de agir, a conduta perante os outros, perante si próprio, diante dos que são próximos, frente à Humanidade. A natureza da reta razão estaria potencialmente presente no homem; caberia à trajetória da vida, através de escolhas traduzidas em ações, realizar tal potência. Esta deliberação exige, entretanto, a presença de consciência e discernimento, além de uma disposição anterior para a mediania, para a mediedade – ou seja, uma predisposição para a moderação. Em geral, a escolha estaria subordinada às emoções e às faculdades da alma. Neste caso, a tendência mais prudente – e, conseqüentemente, mais sábia – seria recorrer àquilo que Aristóteles define como justo meio; uma conduta sempre eqüidistante entre dois extremos.

-------------------------------
[1] NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003, 14ª ed.,pág. 110
[2] JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 4ª ed., 2003, págs. 137/138.
[3] CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª ed., 2005, pág. 440
[4] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 144
[5] ARISTÓTELES. idem, ibidem, págs. 137/8

O evangelho de Lucas - parte 33

O capítulo 19 começa com a entrada de Jesus em Jericó. E é ali que Jesus encontra Zaqueu. Este não era apenas um publicano, mas era o chefe dos publicanos.

E como no capítulo 18 Jesus fala da dificuldade de um rico em entrar no reino dos céus, aqui a comparação é inevitável. O que chama mais atenção é comparar o que o rapaz do capítulo anterior devia fazer para herdar a vida eterna, e o que Zaqueu se propôs a fazer.

(Lc 18:22) Quando Jesus ouviu isso, disse-lhe: Ainda te falta uma coisa; vende tudo quanto tens e reparte-o pelos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, segue-me.

(Lc 19:8) Zaqueu, porém, levantando-se, disse ao Senhor: Eis aqui, Senhor, dou aos pobres metade dos meus bens; e se em alguma coisa tenho defraudado alguém, eu lho restituo quadruplicado.


Por que para o jovem Jesus pede que doe tudo, e para Zaqueu aceita a doação da metade? Podemos fazer uma comparação entre as atitudes dos dois para tentar compreender isto.

O jovem se aproxima de Jesus, chamando-o precipitadamente de "Bom Mestre", como se já o conhecesse. Zaqueu, pelo contrário, procurou ver Cristo, talvez para ver se o que diziam sobre Ele é verdade. O jovem pergunta a Cristo o que ele tem que fazer para herdar a vida eterna, justificando-se por já observar as leis. Zaqueu se alegra apenas de poder receber Cristo, e não pergunta nada para se justificar, mas toma a iniciativa de compensar o mal que tinha feito.

Nos dois casos, podemos perceber que Zaqueu se arrependeu sinceramente, enquanto que o rapaz do capítulo anterior apenas queria se justificar. E como a Graça alcança a todos, neste dia um rico entrou para o reino dos Céus. A riqueza não se torna um empecilho para a salvação, quando se coloca o Senhor em primeiro lugar. Zaqueu fez isto.

Note como há o murmuro da população quando Jesus resolve se hospedar na casa de Zaqueu. Em todas as épocas houve grupos de pessoas que são marginalizados pela sociedade. O publicano era considerado um pecador, por cobrar os impostos, muitas vezes de forma injusta, como deixa claro a promessa de Zaqueu. Hoje não consideramos mais publicanos como pecadores. Mas muito tipo de coisa é considerado como pecado pela maioria das pessoas. Muitos pecados de hoje podem prejudicar e muito famílias honestas, como o publicano no passado poderia prejudicar famílias ao cobrar mais do que necessário. Não devemos considerá-los como pecadores eternos, mas devemos sempre lembrar que Deus pode perdoar a todos, desde que todos tenham um arrependimento sincero, e a vontade de se aproximar de Deus como Zaqueu teve, enfrentando todas as dificuldades possíveis.

E imitando Cristo, não demos ouvidos à multidão. Pois muitas vezes os grandes pecadores do ponto de vista das pessoas são ou serão grandes fiéis.

Na casa de Zaqueu ainda, Jesus percebendo que sua ida a Jerusalém despertou a atenção de judeus ansiosos pelo reino terrestre do Messias, Jesus conta uma parábola para corrigir sua noção errada. Provavelmente os ânimos dos judeus se exaltaram ao ouvir o homem que chamavam de Messias chamar Zaqueu de filho de Abraão, e estar de partida para Jerusalém. Para eles, o reino messiânico imediatamente se instalaria, e é esta noção de algo muito próximo que Jesus pretende corrigir com a parábola.

Nela, um jovem que vai tomar posse de um reino (assim como Cristo) vai se ausentar até conseguir tomar posse. Aqui vemos que o reino de Deus não era para ser imediato, como os judeus daquela época achavam. Ao ir, o príncipe dá a 10 servos a posse de minas, para que negociassem. Alguns não queriam que o homem reinasse sobre eles, o que pode ser comparado a alguns judeus da época.

Ao voltar o homem pede contas do que todos fizeram. Quem foi adiante e negociou com os bens do rei, recebeu suas recompensas, proporcionalmente ao valor que obtiveram. Estes são os discípulos de Cristo, que usando os bens deste mundo, fizeram frutos. O que guardou as minas representa aqueles discípulos que não fizeram nada para produzir bons frutos com os bens de Cristo, mesmo sabendo do caráter de seu Mestre. Estes não terão mais estes bens, de forma que serão dados àqueles que obtiveram muitos bens. Por fim, aqueles que não quiseram ser reinados pelo rei, serão mortos diante dele. Isto indica as consequências da rejeição de Cristo. O que a parábola indica?

Indica que Cristo de fato reinará, mas não imediatamente como os judeus acreditavam. Ele teria que se ausentar por um tempo. Enquanto isto, seus discípulos, aqueles que querem ser governados por Cristo, devem empregar os bens recebidos para dar frutos. Eles não podem estar ociosos. Cristo governará de uma forma ou de outra. Não adianta não querer ser governado por Ele. Por isto, os judeus que esperavam o reino messiânico, que não esperassem com isto obter alegrias. Primeiro, que eles deveriam estar agindo da forma que seu Senhor os ordenou. O dia que Ele obteria o reinado não é sabido. Estejamos todos vigilantes.

A caminho de Jerusalém, Jesus dá ordens a seus discípulos para que eles preparem sua entrada. Como os discípulos se referiram a Jesus como "o Senhor" para os donos do jumentinho, é possível que eles fossem discípulos de Cristo.

Todos comemoravam a chegada de Cristo, como um Rei chegando na capital de seu reino. E provavelmente por isto os fariseus pediram para que Cristo os repreendesse. A resposta de Cristo mostra que o evento era memorável, que não havia como ficar em silêncio. O Messias havia chegado para consumar seu plano, não da forma que os judeus esperavam. Ali, vendo Jerusalém, Jesus prevê sua futura destruição. Jesus atribui isto à seu estado de cegueira, não identificando quem poderia trazer a paz.

Em Jerusalém, Lucas nos relata que Jesus vai então ao templo, onde ele expulsa os vendedores. Não seria este um ótimo recado para os pastores de igrejas defensoras da teologia da prosperidade, que vendem seus produtos milagrosos na igreja? Ou aqueles que transformam o culto a Deus em um negócio, como se a igreja fosse uma empresa?

E depois disto Lucas termina o capítulo falando que Jesus ensinava todos os dias no templo. Por isto os fariseus e doutores da lei procuravam matá-lo, no entanto o respeito que o povo tinha por Cristo tornava isto muito difícil.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Manto sagrado


Podiam ter tirado o "merchan" da Petrobrás, né?!



terça-feira, 24 de junho de 2008

Des belles chansons - 2

NON, JE NE REGRETTE RIEN

Edith Piaf
Composição: Michel Vaucaire / Charles Dumont



Non, rien de rien,
non, je ne regrette rien,
Ni le bien qu'on m'a fait,
ni le mal, tout ça m'est bien égal.
Non, rien de rien,
non, je ne regrette rien,
C'est payé, balayé, oublié,
je me fout du passé.

Avec mes souvenirs,
j'ai allumé le feu,
Mes chagrins mes plaisirs,
je n'ai plus besoin d'eux.
Balayés mes amours,
avec leurs trémolos,
Balayés pour toujours
je repars à zéro...

Non, rien de rien,
non, je ne regrette rien,
Ni le bien qu'on m'a fait,
ni le mal, tout ça m'est bien égal.
Non, rien de rien,
non, je ne regrette rien,
Car ma vie,
car mes joies,
Pour aujourd'hui
Ça commence avec toi


Grandes livros - 6



"José e seus Irmãos" é uma obra magistral de Thomas Mann em 4 volumes (na edição brasileira, os dois primeiros volumes - "A História de Jacó" e "O Jovem José" - estão reunidos em um só) que requer muita disposição e muito amor pela leitura, que não é nada fácil. 

O segundo volume é intitulado "José no Egito", e o terceiro, "José, o Provedor". 

Se as 986 páginas de "A Montanha Mágica" já representam um exercício hercúleo de leitura, as quase 1.500 dessa tetralogia requerem ainda mais. 

Para quem quiser se aventurar nessa maratona literária "thomasmanniana", talvez seja interessante ler o primeiro volume, para ver se lhe agrada a ideia de levar o desafio até o final.

Mann não é um escritor fácil, às vezes resvala no pedantismo (como, principalmente, em "Doutor Fausto"), mas sua literatura é essencial. 

É necessário, também, alguma familiaridade com a história bíblica de Jacó e seus filhos, em especial José, no qual se baseia praticamente toda a obra, com exceção da primeira parte, que conta a história de Jacó. 

É impressionante como, a partir da história de Jacó e José - que toma alguns capítulos de Gênesis -, Thomas Mann consegue reconstruir um mundo perdido do Crescente Fértil (e do Egito), além de imaginar um profundo perfil psicológico não só dos dois personagens bíblicos citados, mas de toda a família, recriando a trajetória de todos eles, até concentrar-se na escravidão de José no Egito e na sua, digamos, volta por cima depois de tanto sofrimento. 

Em geral, não há quem não se comova com a história de superação de José, e também o seu perdão aos irmãos, quando esses vão ao Egito comprar trigo para a família que passava fome em Canaã. 

Há um trecho do último volume, quando José se prepara para este reencontro dramático, em que ele comenta com Mai-Sachme (que, na ficção de Mann, foi o carcereiro da prisão e agora é o superintendente de sua casa) sobre a sua expectativa desse "acerto de contas" com o passado, que me parece que resume bem o irresumível, e dá uma pálida idéia da dimensão do pensamento de Thomas Mann quanto ao relato bíblico e sua interpretação: 

"Oh, querido Mai, que foste meu guarda e és agora o superintendente da minha casa, tudo isto é tão empolgante e solene que não pode ser expresso em palavras! E precisamente por ser tão solene deve ser tratado com alegre liberdade. Porque a alegria, meu amigo, e a troça astuta são o melhor dom de Deus ao homem, o mais profundo conhecimento que possuímos sobre essa coisa complexa e discutível que denominamos vida. Deus concedeu alegria à humanidade para que o rosto terrivelmente sério da vida se visse obrigado a mostrar um sorriso. Meus irmãos rasgaram minha vestimenta e me atiraram dentro do poço; agora deverão comparecer diante de mim, pois essa é a vida. E o problema é saber se teremos de julgar o ato pelo resultado e aprovar a má ação porque era necessária para o bom resultado. Tais são os problemas que nos propõe a vida. Não podem ser resolvidos com uma cara séria. Somente com jovialidade pode o espírito do homem elevar-se acima deles para que, ao ver-se na presença do que não tem resposta, possa, com um sorriso, fazer rir o próprio Deus, o magno Irrespondível."

sábado, 21 de junho de 2008

Grandes filmes - 5

Um corpo aparece no mar e a suspeita recai sobre um pescador japonês em um pequeno vilarejo da maravilhosa Costa Noroeste americana (com a beleza estonteante da região do Pacífico que abrange os Estados de Washington e Oregon) nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial. 

O que seria um bom motivo para um filme de tribunal, transforma-se no pretexto para uma linda história de um amor impossível contada pelo filme "Neve sobre os Cedros" ("Snow Falling on Cedars"), baseado no livro de mesmo nome, de David Guterson. 

Ethan Hawke, numa interpretação memorável, é o jornalista do pequeno jornal local que investiga o suposto assassinato, em que o principal suspeito é o marido da garota japonesa (interpretada por Youki Kudoh), pela qual ele foi apaixonado desde a adolescência. 

O filme conta ainda a discriminação pela qual passaram os japoneses nos EUA durante a Segunda Guerra, quando foram recolhidos em campos de concentração. 

Enfim, um elenco perfeito, numa direção segura de Scott Hicks, com uma linda trilha sonora de James Newton Howard, conta uma belíssima história de amor numa época em que não era possível vivê-lo na sua plenitude, seja pelo preconceito, seja pelas escolhas nem sempre tão livres que as pessoas fazem. 

A fotografia de Robert Richardson, alternando - com rara felicidade - claros, escuros e meia-luz, ajuda a sustentar o clima de névoa e mistério, ressaltando a neve caindo sobre os cedros, numa metáfora de um amor que, apesar de tudo, insiste em se manter vivo e fincado no chão.


Justiça no pensamento aristotélico - 2

2) ORIGENS DO PENSAMENTO GREGO


Muito se discute sobre a gênese do pensamento grego. A sua contribuição para a história da humanidade é de tal ordem que, em geral, tem-se a impressão de que, por assim dizer, os gregos nasceram prontos. Como lembra Werner Jaeger, “as origens do pensamento filosófico grego têm sido consideradas, geralmente, dentro do quadro tradicional da “história da filosofia”. Os pré-socráticos” constituíram, desde Aristóteles, o problema histórico e o fundamento sistemático da filosofia Ática clássica, isto é, o platonismo. Nos últimos tempos, esta conexão histórica teve uma tendência a passar a segundo plano devido ao desejo de compreender cada um daqueles pensadores em si mesmo, na sua própria individualidade, como filósofo original, assim destacando melhor relevo a sua verdadeira importância”[1].

Conhecemos, pois, uma versão, digamos, “condensada” da formação da civilização grega, em que a genialidade dos seus pensadores - e o seu legado estruturante da cultura ocidental - sobrepujam o desejo de se entender o estabelecimento dos gregos no seu território, e a maneira como o organizaram. Tradicionalmente, se divide a História Grega antiga em 4 períodos[2]:

1) Período homérico – 1.200 a 800 a.C. – período resumido pelas obras de Homero (Ilíada e Odisséia), em que aqueus, jônios e dórios conquistam e dominam Micenas, Tróia e Creta, instalando nessa região um regime patriarcal e pastoril, uma economia de subsistência que vai paulatinamente se tornando agrária e comercial com o intercâmbio com outras regiões do mundo então conhecido;

2) Período arcaico – 800 a 500 a.C. – período em que os gregos definitivamente se estabelecem e formam as primeiras cidades-estado, como Atenas, Esparta e Tebas, deixando a monarquia agrária para trás e dirigindo-se por uma oligarquia marcantemente urbana e comerciante, em que a influência grega se espalha pelo Mediterrâneo;

3) Período clássico – 500 a 400 a. C. – conhecido como “o século de Péricles”, em que a civilização grega atinge o seu apogeu, com o intercâmbio não apenas de mercadorias, mas principalmente de idéias. Nessa época se consolida a democracia ateniense, e o império grego se consolida no Mediterrâneo;

4) Período helenístico – 400 a. C. ao início da civilização cristã – em que o domínio macedônio, especialmente com Alexandre, o Grande, faz com que a civilização e, principalmente, a cultura e a língua grega se tornem hegemônicas no mundo então conhecido, influenciando para sempre os rumos do Ocidente.

Dentro desse quadro cronológico, há uma crescente migração da explicação mítica, cosmológica, do mundo pelos primitivos, até um entendimento mais humano, realista, especialmente no que tange à multivocidade do termo “justiça”, que a princípio era mais conhecida pelo termo “thémis”, ligado a Zeus, e ao etéreo, e começa a ter mais força o termo “diké”, mais ligado às questões do mundo real, da sociedade humana que atinge um maior grau de desenvolvimento.

Como ensina o professor Eduardo C. B. Bittar:

“O termo diké, apesar de surgido provavelmente na mesma época do termo thémis, assume, com as modificações da civilização grega, uma carta de significação específica, revelando seu sentido como igualdade, como cumprimento da justiça, como bom julgamento, assumindo uma conotação social de grande relevo quando do surgimento dos primeiros movimentos sociais, em oposição às injustiças, que sulcavam abruptas diferenças entre os grupos sociais, as classes dominantes e as classes campesinas. Nesse sentido, ampla contribuição foi dada pelo poeta do povo, Hesíodo, responsável pela exaltação do trabalho, do esforço e dos valores populares ligados ao modo campesino de vida.
Perceba-se que o processo de transformação da idéia de justiça entre os gregos corresponde a um movimento de passagem contínua e lenta, entre os vocábulos thémis, diké e dikaiosýne[3]. Se a justiça estava depositada sobre a autoridade de thémis, atribuída pelas próprias mãos de Zeus aos dirigentes e governantes, como investidura divina e sagrada, significando o bom conselho ungido sobre o que é humano, com sua passagem para diké, constrói-se um novo baluarte da realização material de um maior igualitarismo, na medida em que não somente diké assume um sentido de justiça mais próximo e igualitário, como poder humano de decisão sobre as coisas humanas, como também se dessacraliza e destrona, como desafio, a autoridade de thémis.” [4]
Entretanto, pouco espaço foi reservado, nas primeiras eras formadoras do pensamento grego, à discussão da Justiça como valor central da organização da sociedade. Ela foi pensada, basicamente, como virtude dentro das relações interindividuais e coletivas, mas de maneira apenas perfunctória. Quando se consolida a organização política das cidades gregas, é natural que essa discussão cresça em importância, e é nessa transição fundamental da cultura grega que Aristóteles surge no cenário ateniense, não por acaso logo após Platão e Sócrates, seus antecessores. De todos os filósofos da antiguidade, foi o estagirita que desenvolveu mais a fundo os conceitos relacionados à Justiça, e é no seu pensamento que vamos nos debruçar a partir de agora.


---------------------------
[1] JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 4ª ed., 2003, pág. 190
[2] CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª ed., 2005, págs. 16/17
[3] sobre dikaiosýne, vide nota 6, infra
[4] BITTAR, Eduardo C. B., A Justiça em Aristóteles. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 3ª ed., 2005, págs. 48/49

sexta-feira, 20 de junho de 2008

João Nerval, um "herói" brasileiro

Frases para a posteridade:

"Se eu não roubar, ninguém de vocês tem trabalho..."

"estou contribuindo para o bem de todos..."

"aqueles lá são mais pecador do que eu, porque Deus permitiu que eu roubasse eles, é porque eles são pecadores, véio..."

"Deus permite porque ele sabe da minha necessidade..."

"o meu relacionamento é com o Senhor Jesus..."

"Ele não aprova, mas ele passa
o pano, né, veio..."

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Eclesiastes - capítulo 6

Leitura anterior: Eclesiastes - capítulo 5

Eclesiastes 6 é o segundo menor capítulo do livro, com apenas 12 versículos (o 11 tem 10), e funciona como um complemento do que o Pregador vinha anunciando no capítulo anterior. 

O foco inicial está nas bênçãos patriarcais, que marcaram a origem do mundo: uma vida longa cheia de filhos, como os patriarcas bíblicos tiveram. 

No fundo, até hoje, de alguma forma, a maioria das pessoas tem esse desejo de viver bastante e poder ver a casa recheada de filhos, netos e bisnetos. Aqui há um contraste interessante com o Salmo 92:

12 Os justos florescerão como a palmeira, crescerão como o cedro no Líbano.
13 Estão plantados na casa do Senhor, florescerão nos átrios do nosso Deus.
14 Na velhice ainda darão frutos, serão viçosos e florescentes,
15 para proclamarem que o Senhor é reto. Ele é a minha rocha, e nele não há injustiça.


Aparentemente, o Pregador nega as bênçãos da longevidade e da fertilidade, mas o salmista valoriza uma vida "plantada", construída, na presença de Deus. 

O discurso do capítulo 6, entretanto, menospreza aqueles que buscam essas bênçãos apenas por buscá-las, como se houvesse na longevidade e na fertilidade algum bem intrínseco que pudesse ser vivido à parte do Senhor. 

De fato, muitos de nós queremos prolongar a nossa vida mediante todo tipo de atividades e cuidados com a saúde, quando não sabemos exatamente que fim teremos. 

O pregador considera um mal (v. 1) a pessoa que tem de tudo na vida, mas não pode comer, por exemplo (v. 2), talvez em função de alguma doença grave. 

De nada adianta, também, alguém gerar 100 filhos, se a sua alma permanece insaciável e incompleta, e nem sepultura ele tem (v. 3). 

Aqui, o Pregador faz uma comparação extremamente negativa: "um aborto é mais feliz que ele". Este versículo (6:3) tem gerado muita polêmica no Brasil ultimamente porque foi com base nele que Edir Macedo justificou o seu apoio ao aborto, numa entrevista à Folha de S. Paulo (acesso aqui para quem tem UOL), dizendo o seguinte:

O que a Bíblia ensina é que se alguém gerar cem filhos e viver muitos anos, até avançada idade, e se a sua alma não se fartar do bem, e além disso não tiver sepultura, digo que um aborto é mais feliz do que ele (Eclesiastes 6.3). Não acredito que algo, ainda informe, seja uma vida.
Esta é uma posição que não condiz com o texto e o contexto de Eclesiastes 6. Primeiramente, a palavra traduzida por "aborto" na Almeida (tanto a Atualizada como a Corrigida) é נפל - nêphel – literalmente, "algo que cai, caído", como se fosse um bebê natimorto, morto antes de nascer. 

Ainda que, mesmo em hebraico, seja uma palavra relativamente vaga, nas duas outras vezes em que ela aparece no Velho Testamento (Jó 3:16 e Salmo 58:8) fica mais claro que não se está falando de um aborto induzido, sobretudo se nos lembrarmos da beleza do Salmo 139:

15 os meus ossos não te foram encobertos, quando no oculto fui formado e entretecido como nas profundezas da terra.
16 Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda.


O grande problema da tradução para o português é que a palavra "aborto" tanto serve para o natimorto (aborto natural) como para o aborto provocado, mas dentro do contexto de Eclesiastes 6 a retórica do Pregador utiliza a imagem de um aborto natural apenas como ferramenta argumentativa. 

A Bíblia de Jerusalém e a do Peregrino seguem a mesma linha da Almeida. A Bíblia na Linguagem de Hoje e a NVI são mais felizes nesta tradução: "que adianta um homem viver muitos anos e ter cem filhos se não aproveitar as coisas boas da vida e não tiver um enterro decente? Eu digo que uma criança que nasce morta tem mais sorte que ele" (BLH). 

A NVI inverte um pouco a tradução, aplicando o enterro à criança (o que é uma interpretação possível, mas solitária): "se não desfrutar as coisas boas da vida, digo que uma criança que nasce morta e nem ao menos recebe um enterro digno tem melhor sorte que ele". 

A Tradução Ecumênica (TEB) escolhe um caminho que me parece mais dúbio: "porém, por muitos que sejam os dias de seus anos, não se sacia de felicidade e nem sequer ganha sepultura. Digo: o abortado vale mais do que ele".

Os versículos seguintes continuam falando do feto abortado, "pois veio em vão e para as trevas se vai e pelas trevas seu nome será coberto. Nem viu, nem conheceu o sol, mas descansa melhor do que o outro" (vv. 4-5 - TEB). 

Resulta, portanto, muito complicado construir uma "teologia do aborto legalizado" com base nesses versículos, já que o Pregador, dentro de sua argumentação até certo ponto sarcástica, está fazendo um contraponto grosseiro e extremamente negativo ao desejo humano de longevidade, que, diga-se de passagem, continua profundamente relacionado à eternidade que Deus colocou no coração do homem (3:11), que desde 2:16, Qohélet já vinha preparando o terreno, ao dizer que "nem o sábio, nem o tolo serão lembrados para sempre". 

No v. 6, ele ainda se vale de mais uma ironia ao lembrar disso, ao dizer que de nada adiantaria viver 2.000 anos, se não se desfrutar a vida, o que também remete ao tempo dos patriarcas, que viviam 800, 900 anos, (Matusalém bateu o recorde, com 969). 

Este desejo de longevidade, portanto, é a ponte que o homem tenta construir para alcançar a eternidade, quando esta é, na verdade, a ponte que Deus constrói para alcançar o homem. É o Senhor que a concede, assim como confere riquezas, bens, honra e, principalmente, o poder de desfrutar a vida (v. 2).

Os desejos e as fantasias do homem, a que o Pregador já havia se referido brevemente no v. 2, finalizam o capítulo 6. É preciso trabalhar para comer, mas o apetite nunca é satisfeito completamente (v. 7). O que comemos no almoço não nos sustenta no jantar, e muito menos no dia seguinte. O estômago é um eterno insatisfeito. 

A cobiça é ociosa (v. 9), pois também nunca se satisfaz, quanto mais tem mais quer. Logo, o sábio não tem vantagem sobre o tolo (v. 8), pois tanto um como outro precisam comer; a fome os iguala. 

A vida é curta, passa como uma sombra (v. 12), e a rotina do mundo é a mesma para todos; por que o homem vai se indispor com alguém mais forte (v. 10)? 

Este "alguém mais forte" pode ser entendido como o próprio Deus, o provedor, o doador de todos os bens. Podemos ter a imagem também de Jacó lutando com Deus em Peniel ("a face de Deus" - Gênesis 32:30). 

Depois do encontro face a face com Deus, Jacó continuou a viver na Terra, enfrentando a rotina do mundo: "Nasceu-lhe o sol, quando ele atravessava Peniel; e manquejava de uma coxa" (Gn 32:31). "Quem pode declarar ao homem o que será depois dele debaixo do sol?" (Ecl 6:12). 

O sol nasce para todos, é verdade, "mas para vós, os que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça" (Malaquias 4:2).



Leitura seguinte: Eclesiastes - capítulo 7


terça-feira, 17 de junho de 2008

Racionalismo estéril




Em minhas andanças pela internet, me deparo com uma grande variedade de doutrinas e suas defesas. Em um dos fóruns que freqüento, me deparei com um espírita pregando sobre a reencarnação para uma adepta da Igreja Universal do Reino de Deus. Lendo todo o tópico, me deparei com uma opinião dele, a qual não pude deixar de comentar. Ele dizia:


Tem as mesmas chances quem morre com 20 e quem morre com 40?

Tem as mesmas chances quem nasce numa família cristã pentecostal e quem nasce numa família islamita xiita?

Tem as mesmas chances quem tem que ralar a vida toda e quem não tem que fazer o mínimo esforço a vida toda?

Uma mulher negra e pobre tem as mesmas chances que um homem branco e rico?

Com a reencarnação temos. Sem, não temos.



Respondi-lhe com o texto que segue:



Recentemente estava lendo uma comparação feita entre Paul Tillich e Carl Jung, sobre a religiosidade em nossos dias. Segundo o estudo (da revista metodista Correlatio), "ambos estavam convencidos de que suas culturas se empobreceriam e cairiam em formas superficiais e sem sentido de vida se não fosse possível salvaguardar as profundezas humanas presentes na experiência religiosa". Ainda complementa que "os dois diagnosticaram os males de sua época situando-os nas rupturas do humano resultantes de sua redução à consciência separada de suas bases bem como das energias que possibilitariam seu renascimento e renovação. Achavam que a aliança peculiar entre as forças científicas, filosóficas e religiosas era responsável pelo atual estado da humanidade, reduzida ao racionalismo estéril e à abundante produção tecnológica incapazes de compensar o sofrimento espiritual que causaram".

Quando leio uma argumentação rasa e rasteira como esta que citei, não posso deixar de notar que falta nela alguma coisa, e que algo deve estar muito errado. Algo que a deixa assim como o texto acima descreve. Um texto racionalista e estéril. É obra de alguém pretensamente religioso, mas por incrível que pareça, não transmite a idéia de religiosidade. Pergunto-me, pois: falta exatamente o quê?

Analisando o tema discutido, lembro-me do que Paulo escreve aos Romanos. No início de sua carta, Paulo comenta sobre o fato de gloriar-se no Evangelho, iniciando seu discurso sobre o pecado humano:

Porque não me envergonho do evangelho, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego. Porque no evangelho é revelada, de fé em fé, a justiça de Deus, como está escrito: Mas o justo viverá da fé. Pois do céu é revelada a ira de Deus contra toda a impiedade e injustiça dos homens que detêm a verdade em injustiça. Porquanto, o que de Deus se pode conhecer, neles se manifesta, porque Deus lho manifestou. Pois os seus atributos invisíveis, o seu eterno poder e divindade, são claramente vistos desde a criação do mundo, sendo percebidos mediante as coisas criadas, de modo que eles são inescusáveis; porquanto, tendo conhecido a Deus, contudo não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes nas suas especulações se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se estultos, e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis. - Romanos 1:16-23

Para Paulo, o Evangelho é necessário para todos, pois todos pecam. E todos pecam de forma consciente, porque - de uma forma ou de outra -, todo mundo sabe que comete erros, todo ser humano sabe no seu íntimo que se desviou de Deus. É a própria criação que lhes testemunha que eles estão errados; a natureza anuncia que há um Deus cuja justiça vai cobrar-lhes por seus atos. Paulo acrescenta:

Porque: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como pois invocarão aquele em quem não creram? e como crerão naquele de quem não ouviram falar? e como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? assim como está escrito: Quão formosos os pés dos que anunciam coisas boas! Mas nem todos deram ouvidos ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem deu crédito à nossa mensagem? Logo a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Cristo. Mas pergunto: Porventura não ouviram? Sim, por certo: Por toda a terra saiu a voz deles, e as suas palavras até os confins do mundo. Mas pergunto ainda: Porventura Israel não o soube? Primeiro diz Moisés: Eu vos porei em ciúmes com aqueles que não são povo, com um povo insensato vos provocarei à ira. E Isaías ousou dizer: Fui achado pelos que não me buscavam, manifestei-me aos que por mim não perguntavam. Quanto a Israel, porém, diz: Todo o dia estendi as minhas mãos a um povo rebelde e contradizente. - Romanos 10:13-21

Paulo aqui fala sobre a pregação, e sobre a necessidade de alguém para pregar o Evangelho ao mundo. Nós, pela nossa lógica, poderíamos pensar a princípio que Paulo se limita a homens e mulheres - cristãos -, que possuem o conhecimento necessário do Evangelho para pregar a estas pessoas. A citação de Isaías aqui, entretanto, é curiosa. Paulo pergunta: "Porventura não ouviram?" Quero chamar a atenção para o tempo no passado, que, unido à declaração de Isaías ("por toda a terra saiu a voz deles, e as suas palavras até os confins do mundo"), vem reforçar aquilo que Paulo disse no início de sua carta: até a criação pode dar testemunho.

Por que estou dizendo tudo isto, então?

A razão humana aqui só acreditaria que as pessoas chegariam ao conhecimento do Evangelho, se os pregadores fossem os homens e mulheres que mencionei. A razão humana vai considerar que somente podemos ouvir algo, quando uma pessoa vier até nós e dirigir-nos a palavra. E esta razão, não encontrando saída para justificar a quantidade de pessoas que morreram sem conhecer a verdade, parte para justificações racionais como a que o espiritismo defende. Então, senhores, temos aqui o resultado deste racionalismo espírita.

Eles conseguiram transformar tudo em uma relação de causa-efeito, transformaram esta vida em uma luta para chegar à perfeição, luta que ninguém poderá dizer quando termina, se é que um dia acabará. Para eles, isto é uma demonstração do amor divino; para mim, por outro lado, acho que eles pensam que programaram um deus para amá-los. Este mesmo deus vê suas criaturas sofrendo e tentando se aperfeiçoar, como quem assiste televisão comendo pipocas. Todo mundo fala que ele é Todo-amoroso, Todo-poderoso, Todo-justiça, mas ninguém consegue explicar com profundidade o que Ele de fato faz. Parece-me, assim, que o deus espírita também é Todo-inerte.

E por causa desta mesma razão, que transformou deus em Todo-inerte, os seres humanos são obrigados a fazer todo o trabalho. Por isto é tão difícil, nesta visão racional, pessoas com 20 anos terem as mesmas chances que pessoas com 40 anos. Por isto é difícil que pessoas que nasçam em famílias cristãs pentecostais tenham as mesmas chances que uma pessoa que nasce em uma família islâmica xiita. Por isto é difícil que pessoas que "ralam" toda a vida tenham as mesmas chances que pessoas que não precisam fazer nada. Por isto que é difícil que uma mulher negra e pobre tenha as mesmas chances que um homem branco e rico. É por que todos eles estão participando dessa louca olimpíada para atingir os louros da perfeição. E o deus espírita, que é Todo-inerte, só admite ter junto de si os perfeitos. E aquele mundo discriminatório, onde alguns tem mais chance do que outros, recebe as características do deus discriminatório do espiritismo. O racionalismo não só justifica a discriminação, mas a torna necessária.

É quando surgem as palavras de Paulo: "Porventura não ouviram? Sim, por certo". Ouviram, senhores, não só por que os homens tiveram que se esforçar para levar as boas novas, mas por que a própria criação, como dito por Paulo, dá seu testemunho. Obviamente, depois que os homens começaram a pregar sobre o Evangelho, este recurso se tornou secundário. Mas vemos aqui que Deus está agindo. Vemos que, quando não há homens para pregar, Deus dá um jeito. Ele vai atrás, Ele chama todos. Ele cria condições também. Deus não é o Todo-poderoso? Deus não é justo? Por que Sua justiça não pode se dar instantaneamente a qualquer hora? Por que Sua justiça tem que levar inúmeras vidas para se concretizar?

Assim, de forma diferente do espiritismo, no cristianismo Deus se faz homem, mostrando que pode ficar ao lado dos imperfeitos, e batalha Ele próprio pelo aperfeiçoamento daquelas pessoas. Ele chora por elas, ele tem pena delas, ele as cura, ele vai até elas, ele sofre e morre por elas. Ele age. Ele as alcança. E a razão humana não conseguiu compreender nem aceitar isto. É bom demais para ser verdade. Está aí o espiritismo como prova.

Então, senhores, depois de tudo isto, eu já sei dizer o que é que falta naquele texto inicial. Falta a fé, a fé que Deus dá chance a todos, absolutamente todos, por pior que possa parecer a vida de cada um. Paulo, por esta mesma fé, declara que o mundo ouviu o Evangelho, e não é à toa que a carta aos Romanos é dedicada à fé. É pela fé que se salva, e é a fé que nos transforma em humanos.

Grandes canções - 2

Não... a razão de lembrar-me desta velha e boa guarânia não é a derrota da seleção do Dunga para o Paraguai, mas apenas para lembrar que nunca houve uma voz como a da Inhana na música brasileira. A combinação improvável da perfeição vocal de Inhana com a voz áspera do Cascatinha é mais uma prova de que beleza e simplicidade costumam andar juntos:


ÍNDIA

Cascatinha e Inhana
Composição: María Ortiz Guerrero - José Asunción Flores
(primeira letra por Rigoberto Fontao Meza)
Versão portuguesa: José Fortuna

Índia seus cabelos nos ombros caídos
Negros como a noite que não tem luar
Seus lábios de rosa para mim sorrindo
E a doce meiguice desse seu olhar
Índia da pele morena
Sua boca pequena eu quero beijar
Índia sangue tupi
Tens o cheiro da flor
Vem que eu quero lhe dar
Todo meu grande amor
Quando eu for embora para bem distante
E chegar a hora de dizer-lhe adeus
Fica nos meus braços só mais um instante
Deixa os meus lábios se unirem aos seus
Índia levarei saudade
Da felicidade que você me deu
Índia a sua imagem
Sempre comigo vai
Dentro do meu coração
Flor do meu Paraguai.

domingo, 15 de junho de 2008

Manchetes reveladoras

A imprensa brasileira está cada vez mais previsivel. Poder-se-ia dizer "cada vez mais tucana", mas já atingiram os píncaros da tucanagem faz muito tempo. A edição da Folha de S. Paulo de hoje traz como principal manchete a notícia "Governo quer mais imposto da mineração", e já adverte no subtítulo: "Ministro defende aumento da taxação sobre exploração; para mineradoras, isso afugentará investidores". Sob os holofotes, obviamente, está a Vale do Rio Doce, privatizada em circunstâncias controversas no governo FHC, e que hoje faz uma campanha institucional massiva na mídia para contrabalançar o enorme apoio popular à tese da sua reestatização. Nas páginas internas, a matéria de Valdo Cruz e Sheila D'Amorim (acesso para quem tem UOl aqui) traz argumentos que, a priori, justificam pelo menos uma análise favorável do projeto, como a opinião do deputado José Fernando Aparecido de Oliveira (PV-MG), que, segundo a Folha, "destaca que a Vale e a Petrobras têm atualmente uma lucratividade muito semelhante, só que a primeira 'paga muito menos tributos pela exploração das nossas riquezas do que a segunda'", ou ainda, a afirmação do ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, de que "a tributação média no setor de mineração, exceto petróleo e gás, é de 14%. Já a Petrobras paga 65%. Essa situação não pode prosseguir. O país tem de participar dessa riqueza no setor mineral". Chama a atenção, portanto, que a Folha se apresse em destacar - na primeira página - que "isso afungentará investidores", a mesmíssima desculpa que os maiores órgãos de imprensa do Brasil usaram para apoiar incondicionalmente a dilapidação do patrimônio público nas privatizações de FHC, feitas a toque de caixa, e que custaram aos tucanos uma desconfiança popular que se revelou devastadora nas urnas nas duas últimas eleições presidenciais. A elite brasileira, capitaneanda pela Folha, vai dizer que o povão não entende nada de política ou economia, e só eles têm o direito de dizer o que é bom ou ruim para o país, mas a gente já viu esse filme antes, de uma empresa estatal vendida a preço de banana para enriquecer alguns felizes gatos pingados. Soa no mínimo estranho que a mídia brasileira ainda acredite que nós acreditamos neles. Considerando, entretanto, os polpudos anúncios que a Vale continua publicando nos jornais, a Folha podia seguir a Veja e usar uma só palavra para auto-definir-se: previsível...

sábado, 14 de junho de 2008

A permanência da hipocrisia

Hélio Schwartsman escreveu um artigo na Folha de S. Paulo, intitulado "A volta da filosofia", em que aproveita o retorno da disciplina aos currículos escolares para fazer uma análise das causas da decadência do sistema educacional brasileiro. Custa-me comentar este artigo, porque ele é de um cinismo revoltante. É preciso muito estômago para ler até o final, mas vou tentar me limitar ao óbvio ululante que salta aos olhos mesmo dos mais desavisados. Primeiramente, não creio que o simples retorno da filosofia e da sociologia ao currículo das escolas, como medida isolada, sem estar inserida numa reestruturação profunda de todo o sistema educacional, represente a salvação da Pátria. Entretanto, não deixa de ser um passo interessante. Em segundo lugar, a filosofia ensina, sim, a pensar, e a ser ético; e a sociologia, ajuda a entender a sociedade em que vivemos. É óbvio também que, isoladas, sem um amparo conjuntural que envolva a família e a sociedade, ambas as disciplinas pouco podem fazer, sobretudo num país onde a impunidade é incentivada, o crime compensa, e essa dura realidade nos é jogada na cara todos os dias no país. Quando uma multidão de pais abandona, tortura, vende ou mata os seus filhos, alguma coisa muito grave está acontecendo com esta sociedade, algo que uma simples perícia criminal não conseguirá responder, e é preciso mergulhar nas entranhas de todo o processo social que nos trouxe a este estado de coisas.

E é nisso, basicamente, que o artigo falha. Entende uma resposta pontual, específica, mínima até, como é o retorno das duas matérias ao currículo escolar, como fruto de uma profunda agitação sindical de esquerda, revelando desconhecer que o sindicalismo brasileiro, como representante autêntico das bases, é um fenômeno em extinção, já que existe hoje, principalmente, para favorecer as suas estruturas dirigentes e não a massa trabalhadora. A CUT e a Força Sindical estão aí para comprovar esta afirmação, embora de vez em quando atirem algumas migalhas ao povão. O Brasil conseguiu criar uma versão original e perversa de plutocracia sindical. Assim, ao apontar um sindicalismo militante pretensamente esquerdista, praticamente inexistente no Brasil, o artigo passa a apontar algumas causas para a desgraça da Educação no país, causas essas muito simplistas e falaciosas, como a de que a explosão populacional do século XX foi uma das causas decisivas na degradação escolar. Resumo da ópera: o culpado é o povão, porque se procria! Deveriam ter-se contentado a viver como bichos nos latifúndios, perder 8 dos 10 filhos no parto, e morrer aos 30 anos de idade. A elite dominante do país assistiu a este fenômeno impávida. Não se preparou, não se ajustou à nova realidade que levou décadas para se instalar. Quando percebeu – surpresa das surpresas -, os coelhos haviam se multiplicado fora de controle (como se não precisassem de paus-de-arara e mão-de-obra barata para se sujeitarem aos seus caprichos e quase-escravidão). Este ocaso da educação, ocorrido não por acaso na ditadura militar, levou, segundo o artigo, à proletarização do professorado, assim, por gênese espontânea, como se não fosse um caso pensado e ideologicamente premeditado para solapar as bases da sociedade brasileira a partir das escolas.

Ora, bolas! Façamos uma analogia, então. Por vias tortas tentemos endireitar este caminho, já que, segundo o autor, ele está tão "esquerdizado". As ferrovias brasileiras floresceram durante toda a primeira metade do século XX, até a década de 60. Consideradas as condições tecnológicas da época, atendiam boa parte da população do país e se expandiam com constância e qualidade. Quando JK trouxe a indústria automobilística para o país, era necessário fazer estradas. Não por acaso, o traçado da imensa maioria das estradas federais brasileiras é dessa época e a maior parte delas foi traçada em Minas Gerais. Para fazer o Brasil entrar no ciclo econômico mundial em que o pólo principal era a indústria automobilística, o país precisava não só fabricar, mas também comprar automóveis e caminhões. Como fazer isto, se as nossas ferrovias eram tão boas? Com o regime militar instaurado a partir de 1964, é que começa o desmonte do sistema ferroviário, relegado ao abandono. Chegaram ao cúmulo de estatizar as ferrovias privadas, como aconteceu em São Paulo, em que as ótimas ferrovias privadas, como a Paulista (sobretudo), Sorocabana e Mogiana, foram reunidas numa estatal, a FEPASA, que tinha a mórbida missão de matá-las à míngua. A RFFSA (Rede Ferroviária Federal), além de ter-se tornado um antro de corrupção, deveria ter entrado para o Guiness como o maior pátio de ferro velho a céu aberto do mundo. Nisso, a direita brasileira é nefastamente curiosa. Quando o negócio é bom para o Estado e ruim para eles, eles estatizam para destruí-lo, recolhendo o rescaldo nas suas contas bancárias. Quando o negócio é bom para ambos, eles inventam todas as desculpas possíveis para privatizá-lo. Assim, os anos passaram, as ferrovias foram sucateadas, bilhões de dólares do povão foram jogados no lixo (para que outros bilhões recheassem poucos bolsos privados), e, salvo algumas ferrovias recentes e de transporte específico (como minério), o Brasil hoje roda sobre caminhões e não sobre vagões. Um única ferrovia que transporta passageiros resiste, entre Belo Horizonte e Vitória, talvez porque mineiro adore ir à praia de trem.

Guardadas as devidas proporções, o desmonte do sistema educacional brasileiro seguiu os mesmos trilhos. Não interessava à ditadura governar um país de pessoas que aprendessem a pensar. Um povo educado e politizado ameaça a supremacia da elite hegemônica, enquanto uma massa ignara desconhece seus direitos e aceita trabalhar por um prato de comida ou se deixa escravizar pelos mais "espertos". Era preciso evitar este perigo, senão pela perseguição, tortura e assassinato de quem se lhes opusesse, mas principalmente, pelo desestímulo a qualquer tentativa de melhorar a educação. Da mesma maneira que fizeram com as ferrovias, sucatearam a educação, no que foram muito ajudados pelos meios de comunicação, diga-se de passagem. Eu acho tragicômico quando a Globo hoje reclama da impunidade, da falta de educação, e dos índices sociais alarmantes do país. Ora, eles ajudaram a produzir esta triste realidade, ao domar a sociedade, e desviar a sua atenção, enquanto os monstrengos devoravam o patrimônio e a inteligência do país. Se boa parte da população hoje não tem pensamento crítico ou não sabe votar, ou, ainda, prefere assistir Sônia Abrão em vez de ler um bom livro, é porque assim foi (de)formada pela própria Globo, que apenas está colhendo o fruto dos anos de (des)serviço que prestou à sociedade brasileira.

O autor finaliza o artigo com uma lógica de mercado: "o 'segredo' do ensino de qualidade é a soma de um truísmo (bons professores formam bons alunos) com uma obviedade (para recrutar os melhores profissionais, é preciso oferecer uma carreira atrativa, senão financeiramente, ao menos em termos de valorização social). É exatamente o que não estamos fazendo". Esquece-se apenas de que isto tudo é exatamente o que não fizemos nas últimas décadas, muito mais por imperativos ideológicos do que mercadológicos, e que tentar apontar – ideologicamente – a esquerda como causadora dessa tragédia brasileira, continua sendo tão ideológico como hipócrita. Assim, fica fácil entender porque Hélio Schwartsman não quer que a filosofia e a sociologia voltem aos currículos escolares: para a geração vídeo-game, vai ficar fácil demais desmontar farsas ideológicas como a que ele propôs.

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails