sábado, 13 de fevereiro de 2010

Direito Romano e Cristianismo

I – Doutrinas cristãs e direito romano – II. Direito romano e instituições cristãs.

Os problemas surgidos pelo impacto do cristianismo com o direito romano são muitos e complexos, e receberam respostas muito diferentes, tendentes umas a aumentar a influência das doutrinas cristãs sobre o direito romano no Baixo Império (I), as outras a reduzi-la a proporções mais justas. Com efeito, tratou-se de avaliar a influência do direito romano sobre a evolução do cristianismo em geral, e sobre as instituições eclesiásticas em particular (II).

I. Doutrinas cristãs e direito romano. A influência cristã sobre o direito romano derivou sobretudo da vontade do príncipe; a expressão mais direta foi sem dúvida a legislação imperial: a) os imperadores aceitaram e impuseram a nova religião; multiplicaram as instituições que favoreciam a Igreja; asseguraram o triunfo da fé cristã, tal como definida pelas autoridades da própria Igreja, ameaçando, em caso contrário, com as mais diversas sanções (exclusão das funções civis, incapacidade para suceder, etc.). Abundante legislação reprimiu as heresias, o paganismo e a religião judaica (CT XVI). Os imperadores se preocuparam também com regulamentar o estatuto dos clérigos e dos bispos, bem como as condições necessárias para aceder às ordens; em favor do clero prodigalizaram formalmente o primado romano (Novella 18, de 19 de junho de 448); b) deve-se notar ainda uma influência cristã na legislação sobre a família e sobre a sociedade. A Igreja lutou contra o aborto, o abandono dos recém nascidos, o comércio das crianças, os abusos da patria potestas [pátrio poder], e teria desejado também uma restrição oficial à liberdade do divórcio (Concílio de Cartago de 13 de junho de 407). Provocou sanções para quem rompia sem justo motivo o noivado (CT 3,5,2. Cf. Concílio de Elvira, cânon 54) e obteve a interdição dos matrimônios entre os parentes (CT 3,12,2-4; cf. Concílio de Elvira, cânon 61). Suportou a escravidão, mas esforçou-se para abolir o costume de marcar na testa os escravos, e de manter separadas as famílias dos servos; favoreceu a alforria e obteve o reconhecimento civil dos que eram alforriados in ecclesia. Lutou contra os jogos dos gladiadores e conseguiu obter a sua supressão. Chegou até mesmo a fazer modificar o calendário civil em função de suas festividades, e a substituir o domingo ao die solis; procurou manter intacto o cunho sagrado dos dias reserva dos a Deus, fazendo proibir nestes os jogos do teatro e do circo; c) menos incisiva foi a influência das doutrinas cristãs no campo econômico. Houve quem quisesse ver esta influência na legislação sobre lesões ou limitações das taxas de juros; na ampliação da noção de dolo; no enfraquecimento do formalismo em favor do cunho obrigatório do simples compromisso; nas sanções contra o enriquecimento injusto; mas é difícil avaliá-la em todos estes casos, sem ter, no entanto, de rejeitá-la totalmente; d) a legislação sobre os crimes, no Baixo Império, foi assinalada por mais forte severidade, quase por uma crueldade. Sobre esta o cristianismo influiu bem pouco, e apenas esporadicamente e de maneira inteiramente casual. A Igreja obteve a supressão do suplício da cruz, e a possibilidade de participar da vigilância das prisões, a fim de poder confortar os prisioneiros; e) os historiadores conseguiram descobrir também outros traços da influência cristã sobre a técnica jurídica romana, mas as coincidências evidentes são muito insignificantes (Gaudemet, 512).

II. Direito romano e instituições cristãs. A influência do direito romano sobre a sociedade eclesiástica se verificou principalmente na terminologia, na técnica jurídica, nas instituições: praticamente na transposição ou adaptação das regras romanas às necessidades próprias da igreja; a) Entre as permutas terminológicas, a de ordo, para designar os membros da hierarquia eclesiástica, é uma das mais significativas, já que este termo, desde o princípio, qualificava os quadros dirigentes da civitas e, propriamente, o senado municipal. Faz-se mister recordar também que os poderes do sumo pontífice, desde o princípio, foram definidos com os termos técnicos de auctoritas e de potestas. Quanto à terminologia das decretais, foi ela fortemente devedora daquela das constituições imperiais; b) Particularmente sentida foi a influência do direito romano na área da técnica jurídica. O poder legislativo do papa não foi certamente simples mudança das instituições romanas (permaneceu fundado na Escritura e provinha do primado); mas nem por isto foi menos devedor daquele a respeito da elaboração das decretais, na linha dos modelos do tempo. Doutro lado, os modos de se recorrer ao papa inspiraram-se claramente no direito imperial (relatio, provocatio). O mesmo se verificou quanto aos concílios. Esta instituição não foi simplesmente tomada do direito público romano, mas beneficiou-se muito com os modelos do tempo acerca de sua organização (modo de dirigir as sessões, processo nas votações, redação dos atos, etc.). Mas o direito canônico serviu-se mais amplamente dos modelos romanos no âmbito processual: retomou a técnica das praescriptiones (de persona, de mandato, de tempore) e da contestatio litis; adotou também as particularidades concernentes aos meios de prova e as condições relativas às testemunhas (como a da exclusão das infames personae). Nem é preciso explicar que o direito canônico deve ao direito romano todo o contexto do processo de apelo; c) A influência do direito romano sobre as instituições cristãs foi multiforme; claríssimo em matéria de matrimônio. A Igreja retomou, no essencial, a noção romana do matrimonium, e as condições para realizá-lo (dos, tabulae nuptiales); adotou sua doutrina sobre o matrimônio consensual, aliás logo aperfeiçoado (Munier, 17); conservou os noivados segundo as leis romanas, mas pouco depois os distinguiu nitidamente do matrimônio propriamente dito. Foi intransigente em seus princípios em matéria de fidelidade e de indissolubilidade. Muitas das normas relativas ao estatuto dos clérigos se inspiraram nas que regulavam as carreiras civis (proibição de passar de um posto a outro, promoção por graus, interstícios). E, enfim, os sinais exteriores do poder (vestes e insígnias) dos funcionários romanos foram adotados para significar os vários graus dos dignitários eclesiásticos (pontificalia, dalmática, pálio). Por último, mencionamos o paralelismo bem claro entre as circunscrições administrativas e as eclesiásticas.

(“Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs”, Ed. Vozes e Ed. Paulinas, 2002, pp. 417-8)

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