Artigo de Sérgio Telles - publicado no Estadão no último dia 21 de janeiro - faz um resumão muito interessante das ideias centrais sobre religião é ética, de como os filósofos (ateus, em sua maioria) buscam uma alternativa que - se não consegue substituir uma pela outra - pelo menos procure conciliar os dois conceitos. Não deixa de ser curioso, entretanto, ver que pensadores ateus rotineiramente busquem alternativas humanistas para a fé, sem que (e aí reside o grande mérito do artigo) essa "fé" deixe de ser fé. Pode parecer um monte de redundâncias o que acabei de escrever (o que de fato é!), mas com a leitura do artigo você entenderá facilmente o que estou querendo dizer. Aliás, não só eu, porque me parece que esta é a ideia central que o autor quis passar. Não conheço Sérgio Telles, e pelo que ele escreve, me parece que é ateu (o que não considero ser nenhum defeito, diga-se de passagem), até pelo último parágrafo em que ele diz que "os que defendem a religião como necessária para a estabilidade social [...] esquecem que ela muitas vezes coloca em risco o laço social. No momento em que dogmas diferentes entram em choque, impera a violência, instala-se a intransigência e intolerância". Aparentemente, Telles faz mais uma generalização típica do discurso ateísta. Ninguém nega que religiões entram em choque, a história está aí para confirmar a tragédia das "guerras santas", mas elas têm períodos de convivência e até colaboração muito maiores dos que os de conflitos. Só que essas fricções gritam muito mais alto do que os momentos de paz, até porque contrariam o discurso das religiões e expõem a hipocrisia de quem fala em seus nomes. É de se imaginar também que o contrário da afirmação de Telles não seja necessariamente verdade. Se imaginarmos um mundo sem religiões em que a ética impere, isso necessariamente não significa que não haverá violência ou desinteligência entre os homens e os povos (cá entre nós, quem manda no mundo mesmo é a economia, não é verdade? - risos constrangidos). A cobiça, a luxúria, a miséria, a exploração do outro, a maldade enfim, são inerentes ao ser humano, e aí - olha só! - voltamos ao terreno da religião... com sair dessa enrascada, então?
Religião e ética
Sérgio Telles - O Estado de S.Paulo
Nao li Religião para Ateus (Ed. Intrínseca), de André de Botton, e sim a recente resenha que lhe dedicou Terry Eagleton, filósofo e crítico literário inglês. Eagleton diz que, ao contrário de Marx e Nietzsche, que diretamente combatiam a religião, muitos filósofos, como Maquiavel, Voltaire, Rousseau, Diderot, Tolland, Gibbon, Matthew Arnold, Auguste Comte e o contemporâneo Habermas, compartilham a descrença nos dogmas religiosos, mas, ainda assim, consideram que a religião é útil para manter sob controle a ralé, a plebe, o populacho, a massa, a chusma... De forma irônica, Eagleton resume a postura desses pensadores, entre os quais inclui Botton, num mote - "eu mesmo não acredito, mas, do ponto de vista político, é mais prudente que você acredite". A seu ver, uma contraditória forma de pensar por aqueles que, enquanto filósofos, deveriam zelar pela integridade do intelecto.
Se Eagleton está correto em sua leitura, Botton e demais autores citados parecem incorrer no erro decorrente de uma indiscriminação entre os campos da religião e da ética, confusão sobre a qual Jacques Derrida se debruçou no Seminário de Capri, em 1994.
A maioria das pessoas pensa que os valores mais elevados da humanidade - o amor, o respeito ao outro, a abdicação da agressividade, o desejo de estabelecer a paz na comunidade - estão depositados e resguardados na religião. Por esse motivo, qualquer crítica que se lhe faça é entendida como um ataque a esses valores fundamentais para a civilização. Ao não se discriminar o que é próprio da religião e o que é próprio da ética, conclui-se apressada e erroneamente que o não religioso, o ateu, é um ser aético e antimoral.
No empenho de estabelecer o que é estritamente do domínio do religioso, Derrida pinça duas experiências especificas - a da fé e a do sagrado. À primeira vista, seriam elas exclusivas da religião. Mas Derrida mostra que não é bem assim. Em primeiro lugar, se entendemos a religião como a prática ligada ao trato com o divino e suas revelações, logo percebemos que a fé não se restringe a esse campo. A fé se faz imprescindível em qualquer contato entre os homens. É preciso ter fé no outro, é preciso crer no que ele diz, acreditar que ele fala a verdade. De forma semelhante, o sagrado também não se limita ao divino, pois a consideração à vida e ao outro deve ter essa conotação. A vida, diz Derrida, é algo que deve permanecer "indene, sã, a salvo, intocável, sagrada".
Na medida em que evidencia que a fé não é uma experiência própria e exclusiva da religião e sim algo inerente e indispensável no relacionamento humano, Derrida desfaz a incompatibilidade entre fé e razão, oposição tradicional mantida com grande vigor desde o Iluminismo por aqueles que julgam nela se apoiar a possibilidade do pensamento científico. Derrida afirma o contrário. É justamente por ter fé na palavra do outro que a transmissão de conhecimento se faz possível.
Qualquer relação humana se baseia na possibilidade de aliança com o outro, na crença de ouvir dele a verdade e, em retribuição, para ele também falar a verdade, de ter com ele uma "fé jurada". Esses atos de grande importância nas relações pessoais geram quase automaticamente a figura necessária de uma testemunha, aquele que garante e dá credibilidade às sempre frágeis e incertas promessas e alianças entre os homens. Ninguém melhor do que um deus para cumprir essa função.
O que Derrida propõe é que aquilo que aparece simbolizado, idealizado e "purificado" na religião, e que se acredita ser específico dela, na verdade são aspectos essenciais das relações entre os homens. Aponta para uma religião não "religiosa" no sentido comum, "ateologizada", fruto de necessidades humanas. Nesse sentido, o título do livro de Botton, uma religião para ateus, parece apontar para a mesma direção, mas por vias não coincidentes.
Freud também concebia a religião como fruto de necessidades humanas, atendendo a anseios arcaicos por um pai poderoso que garantisse amor e proteção contra os perigos existentes e a ameaça onipresente da morte. Na religião, são reencontrados os pais fortes da infância e dos quais não se quer abrir mão, na relutância em se assumir a própria autonomia na vida adulta.
Ao fazer a discriminação entre religião e ética, persiste uma questão. Muitos pensam que a ética decorre de preceitos religiosos, seria ela um depurado leigo dos mandamentos divinos. Entretanto, Freud mostrou que a ética decorre de procedimentos humanos necessários para a sobrevivência. Cada homem deve conter sua sexualidade e sua agressividade para que seja possível a convivência em comum, para que o grupo social sobreviva. No correr do tempo, essa contenção se codifica em normas de conduta que regem as relações humanas.
O filósofo Philip Kitcher diz algo semelhante no artigo Ethics without Religion, ao enfatizar a importância de compreender as raízes históricas de nossas práticas éticas. Afastando-se da ideia de que mandamentos semelhantes possam ter sido enunciados por diferentes deuses em épocas e culturas diversas, pensa que tais mandamentos teriam surgido como soluções práticas para problemas sociais. Posteriormente teriam sido absorvidos pelos diferentes contextos religiosos, o que lhes teria dado uma força suplementar. Ou seja, a ética não decorreria de preceitos divinos revelados e sim da codificação de procedimentos e condutas impostos pela necessidade de viver em grupo. Essas regras humanas teriam sido absorvidas pela religião e transformadas em mandamentos divinos.
Mostra Kitcher que entender a natureza humana da ética nos possibilita ter uma ideia do trajeto percorrido e do estágio que atingimos - de hordas de primatas às nossas complexas sociedades -, dando-nos forças para continuar melhorando um projeto jamais acabado, em permanente processo de aprimoramento.
Os que defendem a religião como necessária para a estabilidade social, como Eagleton diz que fazem Botton e outros filósofos citados, esquecem que ela muitas vezes coloca em risco o laço social. No momento em que dogmas diferentes entram em choque, impera a violência, instala-se a intransigência e intolerância.