Vivemos tempos difíceis, em que os limites da dignidade humana são testados diariamente. A pretexto de chamar a atenção para o problema social dos sem-tetos, a empresa de marketing Bartle Bogle Hegarty (BBH) promoveu uma campanha no mínimo inusitada durante a realização do festival SXSW 2012, em Austin, no Texas: contratou mendigos para trabalharem como uma espécie de "pontos de acesso ambulantes" à rede wi-fi 4G durante a realização do evento multimídia de filmes e música. Eles se inscreveram no programa e circulam pela feira com aparelhos MiFi atados ao corpo, bem como com uma camiseta em que está escrito "Eu sou Fulano, um ponto de acesso 4G", com o número do destinatário de SMS que habilitará a conexão na rede. Seriam uma versão homeless ultramoderna dos homens-placa das grandes cidades brasileiras. No caso norteamericano, os eventuais usuários (e são muitos) são incentivados a contribuir com qualquer quantia para o mendigo, e o "preço" sugerido é de 2 dólares por cada quarto de hora de acesso à internet. Se fosse no Brasil, o sujeito já teria o discurso pronto: "eu podia estar pedindo, eu podia estar roubando, mas resolvi virar um tótem wi-fi". Como era de se esperar, a iniciativa esquisitona foi objeto de muitas críticas, pela, digamos, "coisificação" do ser humano, num território ao qual a mais avançada tecnologia ainda não havia chegado, pelo menos a esse extremo. As críticas se concentram no campo ético, ou seja, até que ponto é justificável se utilizar um ser humano que vive nas mais precárias condições para torná-lo um "provedor" provisório de sinal de internet? Isto, obviamente, considerando que a feira tem um período curto e ele não se transformará numa antena ambulante para o resto da vida, e no dia seguinte àquele em que perder o "emprego", estará de volta às ruas para cumprir o seu triste destino. Mesmo que houvesse uma preocupação com a sequência de sua vida, ou se se tratasse de outra pessoa em ótimas condições de saúde e moradia, o estranho caso daria margens a questionamentos éticos sobre a conveniência de alguém se transformar num mero utilitário wi-fi. Afinal, uma das maiores queixas de qualquer ser humano, independentemente de sua condição, é a rápida transformação de pessoas em objetos nas mais variadas situações. Assim, parece que um nervo exposto foi atingido. Talvez o que mais impressione nessa polêmica toda não é nem o fato da implementação de um projeto de marketing de gosto duvidoso, mas a ideia em si. Pensar que alguém possa ter engendrado isso na sua imaginação fértil não deixa de ser assustador. A representante da BBH, Saneel Radia, tenta se justificar dizendo que "a preocupação é que essas pessoas sejam vistas apenas como hardware. Mas, francamente, eu não teria criado isso se não acreditasse no oposto. Estamos abertos às críticas". É bom a BBH ficar bem aberta mesmo, porque críticas não vão faltar. Às vezes surgem situações em que o limite entre a genialidade e a aberração é muito tênue e cinzento. O risco de uma tragédia mercadológica é alto demais para um projeto questionável ser levado a cabo dessa maneira. Parece que a BBH resolveu corrê-lo e está pagando caro por isso. Esperamos que o Clarence tenha melhor (e duradoura) sorte...