Eu sempre me espanto ao ver muita gente (que se diz cristã, inclusive) preocupada com os direitos humanos no Irã e em Cuba, mas completamente cega ao racismo e ao abuso policial no Brasil. Ambas as situações deveriam ter o mesmo peso e a mesma medida (principalmente para o cristão), pois dão motivos de sobra a que a humanidade se revolte e proteste, independentemente de país, fé ou ideologia. Entretanto, muitas pessoas se mostram publicamente como as guardiãs dos direitos humanos em Teerã e Havana, ao mesmo tempo em que defendem a ditadura e a tortura por aqui, mesmo que não seja de forma explícita, já que tanto o silêncio como a negação do óbvio e a indignação seletiva são maneiras férteis e muito úteis de se aceitar tacitamente a ilusão de que está (e esteve) tudo bem. Para muitos brasileiros, infelizmente, o pelourinho ainda é um fenômeno alienígena. A notícia abaixo, ocorrida no Estado do Paraná, é daquelas que deixam qualquer pessoa envergonhada de compartilhar a condição humana com sujeitos que deveriam proteger a população, mas perpetram barbáries dessa espécie. A "sorte" do rapaz negro (e deficiente físico - foto acima) é que ele continua vivo porque é protegido de uma família pobre, mas branca, que não desistiu dele e conseguiu acionar uma advogada imediatamente, que fez de tudo para tirá-lo das garras dos monstros fardados. Não fosse por isso ele teria sido "desovado" como acontece com tantos outros no país, vítimas não só da desumanidade dos facínoras, mas também do silêncio dos "bons", principalmente dos hipócritas que aproveitam a ida à igreja no domingo para fazer política quando lhes convém. E ainda vai ter gente que diz que não existe racismo no Brasil, que a discriminação é "econômica" (o que talvez seja um subproduto da contradição esquizofrênica em negar o que se é). A notícia vem da Gazeta do Povo:
OAB denuncia PMs por tortura
Jovem de 19 anos, morador do Uberaba [PR], diz ter sido agredido e acusado de roubo por policiais. Comando admite culpa e afasta dois suspeitos
Desde que foi liberado da delegacia, na madrugada de domingo, o servente de pedreiro Ismael Ferreira da Conceição se limita a andar do quarto para a sala. O jovem de 19 anos, que tem um problema na perna esquerda, passou a caminhar com ainda mais dificuldade. Ele se queixa de dores causadas por uma sessão de agressões e choques que durou cerca de cinco horas.
Em um relato corroborado pela família, vizinhos e advogada, Ismael diz ter sido seguidamente torturado por policiais militares – após supostamente ser confundido com um assaltante – dois dias depois da ocupação de 12 comunidades do Uberaba, ocorrida na última quinta-feira, na capital. O caso foi denunciado ontem pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná. O Comando da Polícia Militar reconheceu o fato e informou que dois PMs foram afastados preventivamente.
“Tu tá preso”
Ismael conta que às 17 horas do último sábado recebeu um telefonema de um amigo convidando-o para sair. Ele havia acabado de chegar em casa após o fim da jornada de trabalho. De banho tomado, montou na bicicleta e foi em direção ao ponto de encontro, na casa de um deles.
Após pedalar por algumas quadras, foi avistado por uma viatura da PM que participa da Unidade do Paraná Seguro (UPS). Segundo ele, o veículo fez a volta e bloqueou a passagem. “Passou por nós, azar o seu. Cadê a arma?”, perguntou um dos policiais saindo da viatura. Ismael disse que não tinha qualquer arma. Outro policial o derrubou da bicicleta e, com o servente no chão, apertou-lhe a garganta. Outro deu um chute nas costelas e perguntou mais uma vez sobre uma arma.
Ismael respondeu pedindo para que os policiais o acompanhassem até em casa, onde poderia apresentar documentos. Foi então colocado no camburão. Segundo ele, xingamentos racistas começaram a pipocar, e se tornaram a forma-padrão de tratamento até o fim do cativeiro. O rapaz demonstrou preocupação com a bicicleta, que permanecia tombada na rua. “Tua bike já era. Tu tá preso”, comunicou um policial.
Dez minutos depois, a viatura chegou à casa de Ismael. A família do jovem vive em Piraquara, no entanto ele mora com os patrões. Cinco anos atrás, Ismael conheceu Cristiano, o filho cadeirante de Lairi Inez Campiol, 52 anos, e Celso Luís Pereira, de 36 anos, proprietários de uma pequena empresa de acabamentos em construção civil. Cristiano convidou Ismael para participar do time de basquete em cadeira de rodas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Quando os pais se mudaram para a região metropolitana, o que impossibilitaria a rotina de treinamentos, os pais do amigo o acolheram. E lhe deram um emprego.
Segundo Lairi, os policiais entraram na casa e começaram a vasculhar os cômodos, abrindo armários e jogando objetos no chão. Disseram que estavam procurando armas. “Temos um flagrante. Ele confessou que fez um assalto e a vítima já o reconheceu”, disse um PM. Enquanto isso, Ismael permanecia trancado na viatura estacionada do outro lado da rua. Ninguém podia vê-lo. Celso perguntou pelo funcionário. Os policiais foram até o camburão e retiraram o rapaz. Levaram-no até o quintal, mas não deixaram ninguém tocá-lo ou conversar com ele.
Violência
“Fui espancado, sufocado e levei choques”, diz vítima
Após a busca no imóvel, que se revelou infrutífera, a patrulha foi embora levando Ismael. Os donos da casa perguntaram o que seria feito do garoto. Os policiais informaram que ele estava preso, mas não revelaram para qual delegacia seria levado.
No meio da confusão que se formou na rua, um vizinho passou para o casal o número de telefone de uma advogada. “Nunca precisamos de um profissional da área criminalística, então não sabíamos o que fazer”, lembra Lairi Inez Campiol.
A advogada Raquel Farah, 46 anos, atendeu à ligação de Lairi enquanto se preparava para atender a uma ocorrência no 8º Distrito Policial. Ao ouvir a história, se comprometeu a tentar descobrir o paradeiro de Ismael.
O jovem, entretanto, não foi levado a uma delegacia. A primeira parada foi em um descampado. O servente diz ter identificado cinco policiais, que se alternaram distribuindo chutes, socos e estrangulamento. “Se você contar onde é a boca, a gente te solta”, teria dito um deles.
Após um tempo que o agredido é incapaz de estimar, foi mais uma vez trancado no carro. Ele lembra que ficou um bom período na viatura parada, dentro do porta-malas, como se os policiais tivessem retornado ao posto.
A próxima parada foi em uma construção pequena, com duas camas, três armários e um computador. Ismael supõe que se trata de um posto policial. Ali, segundo ele, voltou a ser agredido. Alguns rostos eram novos. Também foi submetido a choques no peito, nos genitais e na língua. “Vamos levar ele para a desova”, teria dito um dos homens. Ismael começou a rezar.
Na delegacia
“Eles desistiram de você”
Eram 21 horas quando Ismael da Conceição foi levado algemado até o Hospital Cajuru para tratar dos ferimentos. “Não diga que você está sentindo dor”, ameaçou o homem que o escoltava. Às 22h30, foi finalmente entregue ao 8º DP. A advogada Raquel Farah havia sido informada da chegada apenas 15 minutos antes.
Na delegacia, os PMs apresentaram uma arma de brinquedo como pertencente a Ismael. O que se seguiu, segundo a advogada, foi uma discussão entre policiais civis e militares, ouvida ao longe também por Lairi Campiol e Celso, que haviam acabado de chegar. Os agentes da delegacia apontavam a inconsistência da prova.
A vítima do assalto chegou para fazer o reconhecimento. Ismael foi colocado ao lado de dois outros detidos. Apesar de a roupa ser semelhante à do autor do roubo (tênis branco, calça jeans e camisa xadrez), o biotipo não batia. O assaltante era alto e magro, Ismael é mediano e troncudo.
A delegada de plantão o liberou às 4 horas da madrugada de domingo. Ismael não conseguia andar sozinho e estava zonzo. Foi embora carregado. “Eles simplesmente desistiram de você”, justificou um policial civil.
Pânico e revolta
Ao longo das 36 horas seguintes, Ismael e Lairi não voltaram a sair para a rua. A dona da casa não acredita que eles possam ser ameaçados novamente, mas Ismael está em pânico. Sua conversa é calma, mas os olhos permanecem sempre arregalados. Lairi entoa indignação. “A gente não pode aceitar isso. Senão vai ter mais vítimas”, avalia.
Ela lembra que na quinta-feira, dia da ocupação, a família ficou feliz ao ver a polícia no bairro. Imaginava que aquele seria o começo de um prolongado período de tranquilidade. “Nos tornamos vítimas, quando deveríamos estar recebendo proteção.” Na manhã de domingo, dois policiais da Unidade do Paraná Seguro – que nada têm a ver com o ocorrido – visitaram cada uma das casas da rua para perguntar aos moradores como eles avaliavam a atuação do destacamento. Lairi discorreu longamente sobre o que se passou com seu protegido. “Isso nós não estamos sabendo”, ponderou o patrulheiro.