domingo, 5 de setembro de 2010

Tragicomédia jurídica

Na carreira profissional, há situações que um advogado enfrenta que não se enquadram em nenhum manual jurídico, e fogem completamente da estressante rotina cotidiana, às vezes numa mescla de comédia com tragédia. Muitos anos atrás, aconteceu um desses fatos inusitados comigo. Tinha sob minha responsabilidade várias ações de cobrança de um determinado banco, algumas com quantias mais vultosas, outras com valores pequenos. Um desses casos menores era de um contador humilde, a quem chamarei de “Francisco” para preservar sua verdadeira identidade. Ele tinha um pequeno escritório no centro de São Paulo e vivia com muitas dificuldades. Quando ele era apenas mais um nome na lista de devedores, movi a ação cobrando-lhe um valor em torno de R$ 4.000,00. Francisco constituiu advogado para defendê-lo e o processo tomou seu curso normal, até que o juiz pediu que o advogado dele se manifestasse sobre um determinado ponto. O prazo transcorreu e nada do advogado se manifestar. O juiz reiterou o despacho, abrindo novo prazo para o causídico, mas novamente ele preferiu o silêncio. O juiz, provavelmente, se irritou com o – digamos - pouco caso da parte e proferiu imediatamente uma sentença irada, condenando Francisco em todas as formas possíveis de multas e correção monetária, acrescentando verbas que eu sequer havia pedido inicialmente. Imaginei que, como acontece em 99,99% dos casos, a parte contrária fosse recorrer, mas não houve apelação, pelo que o processo transitou em julgado rapidamente.

Ainda irritado com o silêncio da parte perdedora, o juiz proferiu um despacho determinando que o banco executasse a dívida o mais rápido possível. Só aí fui ver o tamanho que a dívida tinha tomado depois da condenação do meritíssimo. Com todas as multas e correções, o valor devido agora somava mais de R$ 20.000,00. Aumentara 5 vezes em menos de 1 ano. Não querendo melindrar ainda mais o nobre julgador, tratei de peticionar rapidamente. Alguns dias depois, recebo a ligação de Francisco, na primeira ocasião que tive oportunidade de falar com ele. Sabedor da bola de neve em que havia se transformado aquela dívida, tratei de atendê-lo gentilmente:

- Pois não, Francisco!
- Oi, Dr. Hélio. Eu queria falar com o senhor sobre o caso do Banco X, acabei de receber o mandado de execução de um oficial de justiça aqui.
- Pois é, Francisco, infelizmente aconteceram algumas coisas neste processo e o seu advogado não respondeu os pedidos do juiz, nem recorreu, por isso o juiz ficou muito bravo e a dívida ficou deste tamanho...
- Sabe o que é, Dr. Hélio... é que o meu advogado.... MORREU!

Engoli em seco, tapei o fone e tive que segurar o riso causado pela surpresa da notícia inusitada. Depois de alguns constrangedores segundos, disse-lhe:

- Francisco, vamos fazer o seguinte. Eu vou analisar o caso, ver o que dá pra fazer e te ligo em seguida, me aguarde alguns minutos que eu já te ligo...

Desligado o telefone, saí pelo corredor do escritório dando gargalhadas, mal podendo me conter. Os colegas de trabalho logo quiseram saber a razão da piada, e quando eu lhes contei o ocorrido, todos tivemos a mesma reação e nos pegamos rindo de um caso que envolvia a morte de um colega, mas aí percebemos que não era a morte dele que provocava o humor negro – afinal, nem o conhecíamos ou tivéramos qualquer problema com ele -, mas da ira injustificada do juiz que havia se indignado com um advogado que não pudera defender seu cliente porque estava morto.

Depois de um tempo pensando nas questões processuais, éticas e filosóficas, afinal a partir dali teria que ser o advogado informal das duas partes para se atingir o valor maior do direito, que é a Justiça. Liguei para o banco e perguntei qual o máximo de desconto que eles podiam dar naquela dívida para pagamento à vista, e eles se contentavam com o valor de R$ 2.000,00. Em seguida, liguei para o Francisco e lhe disse:

- Francisco, não sei como você vai fazer, mas trate de arranjar R$ 2.000,00 em dinheiro e me traga amanhã aqui no escritório, que o banco aceitou este valor.

Ele imediatamente concordou e apareceu com o dinheiro no dia seguinte. Não lhe cobrei honorários e expliquei que eu simplesmente iria desistir da ação, já que não podia comunicar o juiz da morte do advogado, sob pena dele, além do constrangimento e do sentimento de culpa, querer anular todos os atos desde a data do óbito, o que levaria o coitado do Francisco a ter que contratar outro advogado e sujeitar-se a novas despesas e a um novo processo, o que certamente pioraria a sua já combalida situação financeira. À exceção do juiz e do advogado morto, todas as partes estavam satisfeitas: o banco, o devedor e eu. Por fim, expliquei-lhe outra razão que me levou a escolher o caminho da desistência da ação:

- É que nesta altura do processo, eu só posso desistir da ação se o seu advogado não discordar. Como nós sabemos que ele não vai dizer nada, só não dará certo se o juiz receber alguma mensagem do além...

Até hoje o advogado não discordou nem concordou, mas o processo, enfim, foi pro beleléu...

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