quinta-feira, 17 de março de 2011

É bíblico rezar pelos mortos?

A recente campanha católica "Volta para Casa", que busca reconquistar fieis católicos que se converteram para outras religiões ou denominações cristãs, ou mesmo aqueles que abandonaram a fé, tem vários pontos em que faz apologética das doutrinas católicas, defendendo crenças como a da reza pelos mortos. Neste particular, o site Volta para Casa desenvolve a seguinte argumentação:

Por que os católicos rezam pelos mortos?


Porque a Bíblia ensina que é santo e salutar o pensamento e a prática de rezar pelos mortos. E por isso nos apresenta o Apóstolo São Paulo realizando essa salutar prática.

De fato, no 2º Livro dos Macabeus, capítulo 12, vers. 43 a 46, lemos: "(Judas Macabeu) tendo feito uma coleta mandou duas mil dracmas de prata a Jerusalém para se oferecer um sacrifício pelo pecado. Obra bela e santa, inspirada pela crença na ressurreição, porque se ele não esperasse que os mortos haviam de ressuscitar, seria coisa supérflua e vã orar pelos defuntos. Ele considerava que, aos falecidos na piedade está reservada uma grandíssima recompensa. SANTO E SALUTAR ESSE PENSAMENTO DE ORAR PELOS MORTOS, para que sejam livres dos seus pecados". Este texto do Antigo Testamento tem confirmação em vários outros do Novo Testamento, embora os protestantes o tenham por "apócrifo". ("Folh. Cat.", nº16) Vejamos:

Assim, São Paulo, na 2ª Epístola a Timóteo, cap. l, vers. 18, assim ora a Deus pelo amigo Onesíforo: "Que o Senhor lhe conceda a graça de obter misericórdia do Senhor naquele dia".

Nota: Comparando os vers. 15 a 18 do cap. 1º, com o vers.19 do cap.4º desta mesma Epístola, vê-se que Onesíforo já era morto, porque nestes textos, S. Paulo se refere nominalmente a outras pessoas, e quando seria ocaso de nomear Onesíforo, seu grande amigo e benfeitor, ele não o faz, mas só se refere "à casa" e "à família de Onesíforo". Daí se conclui que ele não era mais do número dos vivos. E S. Paulo reza por ele, pedindo ao Senhor misericórdia para ele.

Portanto, os católicos rezam pelos mortos, porque, com a Bíblia e toda a Tradição, desde os tempos apostólicos, crêem na existência do Purgatório.

Primeiramente, registre-se que os católicos têm todo o direito de pensar o que quiserem a respeito desta doutrina que lhes é tão cara e peculiar; o que se questiona aqui é fundamentá-la nos textos citados acima. Sabe-se que a Igreja Católica não considera a Bíblia como a única regra de fé e conduta, baseando-se também na tradição oral e escrita da Igreja, considerando-a igualmente inspirada por Deus e autorizada a estabelecer e corroborar seus dogmas. Neste sentido, a doutrina do Purgatório (razão central para se rezar pelos mortos) começa a ser formulada por Tertuliano, em sua obra "De Anima", com forte inspiração e vocabulário estoicos, e isso só na virada do século II para o III (aliás, a influência do estoicismo - e seu sistema de virtudes humanamente conseguidas e cultivadas - na Igreja primitiva é um capítulo à parte que merece ser estudado posteriormente). Curiosamente, entretanto, em "De Anima" Tertuliano não faz nenhuma referência explícita a rezar pelos mortos, o que era de se esperar se esta fosse uma doutrina relevante à época.

Na apologética católica em destaque acima, o primeiro texto citado é o de 2ª Macabeus 12:43-46. O problema é que os livros de Macabeus são deuterocanônicos ou apócrifos, ou seja, muitos judeus e cristãos não o consideram divinamente inspirados e os recomendam apenas para entender o contexto histórico e cultural do período intertestamentário. O maior problema dos livros de Macabeus, entretanto, se encontra no próprio texto, pois o final do segundo (e último) livro é marcado por um "pedido de desculpas" do escritor: "Se o fiz bem, de maneira conveniente a uma composição escrita, era justamente isso que eu queria; se vulgarmente e de modo medíocre, é isso o que me foi possível" (2ª Macabeus 15:38 - versão Bíblia de Jerusalém). É justo, portanto, que qualquer pessoa minimamente preparada tenha sérias dúvidas sobre a inspiração do autor, ainda que os apologetas católicos digam que se trata de um "epílogo do abreviador" que, estranhamente, não foi sacado do texto original.

Talvez por isso mesmo se apele para outro texto, agora do Novo Testamento, que fala de Onesíforo, inferindo que ele já estivesse morto por ocasião da 2ª carta de Paulo a Timóteo, o que levou o apóstolo a se referir e orar pela "casa de Onesíforo", conforme os versículos destacados acima. Ora, não há qualquer razão firme e insofismável para deduzir que Onesíforo estivesse morto àquela altura. Muitos estudiosos alegam, inclusive, que Onesíforo estaria, naquele momento, acompanhando Paulo (!!!), pois, segundo o próprio apóstolo diz, "muitas vezes me deu ânimo e nunca se envergonhou das minhas algemas" (2 Timóteo 1:16). Como Paulo ficava pouco tempo nas cidades por onde passava, e cartas não circulavam com facilidade, não se pode negar que a hipótese de Onesíforo ser seu companheiro de viagem não pode ser descartada. A questão se desloca, portanto, para a necessidade (e validade) de se fundar uma doutrina tão importante sobre essa hipótese tão questionável. É possível construir tamanho dogma sobre alicerces bíblicos tão frágeis? É esta a pergunta que não quer calar.

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