segunda-feira, 23 de julho de 2012

Deuses esquecidos na poeira dos tempos

Matéria interessante com destaque para as afirmações: "a religiosidade é possivelmente o único critério que realmente distingue o ser humano dos outros animais" e “Quando uma pessoa é enterrada, existe a suposição de que há uma vida após a morte. Essa atitude, que também é uma crença, caracteriza o ser humano. Nenhum animal é capaz de tal abstração”.

Há também, a meu ver, uma aparente contradição (que merece ser melhor investigada) entre a afirmação de que - no que diz respeito à sexualidade - "a diferença de religiosidade entre os povos nos faz entender que a nossa religiosidade não é algo natural, mas sim cultural", e - posteriormente - a constatação de que "a única regra religiosa comum a elas talvez tenha sido o incesto, que somente muito tempo depois ganhou também uma dimensão genética".

De qualquer maneira, o artigo - do Jornal UNICAMP e repercutido na História Viva - abaixo transcrito é leitura obrigatória para quem se interessa pelo tema:

As religiões que o mundo esqueceu

Organizado por docente do IFCH, livro mostra como determinados povos cultuavam seus deuses

MANUEL ALVES FILHO

A religião egípcia era obcecada pela perpetuação da alma. Os sumérios, por sua vez, criaram as primeiras histórias sobre o dilúvio. Já os albigenses formularam a ideia do mundo dividido entre dois poderes antagônicos, representados pelo bem e o mal. Esses e muitos outros aspectos relacionados à religiosidade humana são abordados no livro As Religiões que o Mundo Esqueceu. A obra, organizada pelo historiador Pedro Paulo Funari, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, reúne artigos de 13 especialistas, entre eles o próprio Funari, sobre religiões que desaparecem ou são praticadas por um reduzido número de pessoas na atualidade. “O objetivo do livro é mostrar a importância dessas religiões em suas respectivas épocas e os legados que elas nos deixaram”, afirma o docente.

A proposta do livro surgiu, conforme Funari, durante uma conversa entre ele e Jaime Pinsky, ex-professor da Unicamp e dirigente da Editora Contexto. “Como a Contexto já havia publicado um livro chamado Os Monoteístas, traduzido do inglês, que fala do cristianismo, judaísmo e islamismo, nós consideramos que seria interessante lançar uma obra que tratasse de outras religiões que foram relevantes no passado, mas que ou desapareceram ou permanecem esquecidas pelo grande público. Para isso, recorremos a especialistas brasileiros, a maioria deles vinculada ou que realizou parte da sua formação acadêmica na Unicamp”, explica o historiador. Ao todo, são abordadas 13 religiões, que são apresentadas em ordem cronológica. O texto, segundo ele, é acessível a qualquer pessoa que se interesse pelo tema. O primeiro capítulo, escrito por Julio Gralha, é dedicado à religião egípcia. Na sequência são tratados aspectos das manifestações religiosas dos povos sumérios, gregos, romanos, gnósticos, arianistas, persas, celtas, vikings, albigenses, maias, astecas e índios brasileiros. Aos autores, destaca Funari, foi pedido que trabalhassem as informações dentro do contexto histórico de cada época. Também foi solicitado que explicassem os ritos, mitos e a estrutura de poder eventualmente existente em cada uma das religiões. Questionado se existe algum ponto em comum entre as culturas religiosas contempladas no livro, Funari informa que não exatamente. O aspecto que de certa forma as aproxima é o fato de a religiosidade ser uma manifestação exclusiva do humano.

De acordo com o docente do IFCH, uma definição corrente dá conta de que o ser humano pode ser caracterizado pela sua capacidade de produzir instrumentos. Ocorre, porém, que alguns macacos também têm essa “habilidade”, visto que conseguem transformar galhos de árvores em ferramenta ou arma. Outra, ainda, considera que uma expressão exclusiva do humano é o uso da linguagem. Mais uma vez, existem espécies animais, como as baleias ou golfinhos, que conseguem se comunicar com eficiência, embora obviamente suas “linguagens” não sejam tão desenvolvidas ou sofisticadas quanto a dos homens. “Sendo assim, a religiosidade é possivelmente o único critério que realmente distingue o ser humano dos outros animais”, analisa o organizador do livro.

Funari lembra que existe a compreensão de que o homem começou a produzir cultura quando realizou o primeiro enterramento de parentes mortos, o que constituiu uma manifestação de religiosidade. “Quando uma pessoa é enterrada, existe a suposição de que há uma vida após a morte. Essa atitude, que também é uma crença, caracteriza o ser humano. Nenhum animal é capaz de tal abstração”, acrescenta o professor da Unicamp. No que toca aos ritos, o historiador esclarece que eles também são próprios de cada religião e época. “Esse aspecto comprova que a religiosidade é historicamente determinada. Tomemos como exemplo as três grandes religiões monoteístas que predominam na atualidade. Nelas, a sexualidade é reprimida e frequentemente associada ao pecado. Somente é aceita para fins de reprodução. Na Mesopotâmia, porém, era bem diferente. Havia inclusive a prostituição sagrada, que fazia parte da religião. Para os gregos, a fertilidade também era sagrada e, portanto, cultuada. Ou seja, a diferença de religiosidade entre os povos nos faz entender que a nossa religiosidade não é algo natural, mas sim cultural”.

Ademais, prossegue Funari, boa parte dessas religiões deixou legados às manifestações atuais. A ritualidade grega e romana, com mais destaque para esta última, está muito presente nas celebrações cristãs, o catolicismo em particular. “A gestualidade dos sacerdotes, a repetição das palavras e o ato de ajoelhar-se são fundamentais para que as pessoas sintam que tudo está funcionando como deveria ser. Não raro, esses aspectos são até mais importantes que o conteúdo das mensagens, haja vista que ainda há missas rezadas em latim, língua que poucos dominam”, compara o organizador do livro.

O conceito de pecado também varia de povo para povo, como detalha a obra. A rigor, algumas religiões antigas sequer o consideravam, pelo menos não como o fazemos hoje. “A palavra pecado vem do grego hamartia, que significa erro. Ou seja, não tinha o significado nem a dimensão que lhe damos atualmente”. O mesmo ocorre com o que classificamos de dogma. A maioria das religiões tratadas no livro, se não todas, não trabalhava com essa perspectiva. “Num certo sentido, elas podem ser consideradas como antidogmáticas, visto que não tinham uma forte estrutura hierárquica e não adotavam livros sagrados. A única regra religiosa comum a elas talvez tenha sido o incesto, que somente muito tempo depois ganhou também uma dimensão genética”, detalha Funari.

Um dado interessante abordado pelo docente da Unicamp, e que aparece de alguma forma no livro, é o fato de as religiões destacadas na obra não fazerem oposição entre fé e ciência. Tal postura, segundo Funari, vem do século 18. Antes disso, não havia essa separação. “Ao contrário, o desenvolvimento da ciência deu-se em boa parte dentro das religiões. Os maias, por exemplo, criaram um calendário religioso a partir da observação dos astros e da realização de cálculos matemáticos complexos. O mesmo ocorreu em relação aos egípcios, no que toca à construção das pirâmides. Tais templos foram erigidos em homenagem aos faraós, que por sua vez eram considerados a materialização dos deuses. Para que fossem construídos, os monumentos exigiram cálculos matemáticos igualmente sofisticados”.

Excertos

“Obcecada pela vida eterna e pela perpetuação da alma, a religião egípcia fascina por seu caráter místico. As pirâmides são o testemunho mais perene dessa busca pela eternidade”

“Os sumérios criaram as primeiras histórias do dilúvio, tiveram o primeiro Noé. Seus deuses viviam cada qual como patrono de sua cidade e brigavam como brigavam as cidades entre si”

“Os gregos concebiam o mundo como parte de um relato, o mito. Os mitos tratavam do surgimento do mundo, do seu funcionamento e da sorte dos humanos”

“Zoroastro foi o primeiro a conceder ao próprio homem o livre-arbítrio, a responsabilidade por seus atos e pensamentos. Também foi o pioneiro ao contemplar o julgamento individual baseado na ética pessoal”

“Eles [celtas] acreditavam na imortalidade e no renascimento das almas. O outro mundo dos imortais era paralelo ao mundo visível e as almas dos parentes mortos ou dos guerreiros de batalha permeavam todo o espaço fatual”

“A religiosidade nórdica era de natureza tolerante, sem fanatismos nem adoração extremada. Foi fruto de uma sociedade profundamente rural, realista e pragmática, que concedia privilégio a uma magia determinista”

“O movimento albigense era dualista, compreendendo o mundo dividido entre dois poderes antagônicos, dois deuses ou entidades espirituais que se opõem: um o Deus do bem e da espiritualidade e, no contraponto, um deus maligno, o Diabo, inserido no mundo material e carnal”

Título: As Religiões que o Mundo Esqueceu
Editora: Contexto
Número de páginas: 224
Organizador: Pedro Paulo Funari
Autores: Júlio César Gralha, Luiz Alexandre Solano Rossi, Pedro Paulo Funari, Renata Senna Garraffoni, Paulo Nogueira, Júlio César Magalhães de Oliveira, Flávia Galli, Ana Donnard, Johnni Langer, Sérgio Feldman, Alexandre Guida Navarro, Leandro Karnal, Betty Mindlin.




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