sexta-feira, 13 de julho de 2012

Ficha suja se lava em casa

Excelente artigo de Sandra Helena de Souza, professora de Filosofia e Ética da Unifor - Universidade de Fortaleza -, sobre a indiferença com que a população vê as notícias sensacionalistas na TV, que expõem e exploram o mundo cão e o sofrimento alheio sem nenhum constrangimento ou senso de cidadania.

Por outro lado, tanto os telespectadores (com sua arma poderosa, o controle remoto) como os apresentadores de programas populares mostram muita indignação com a corrupção na política, mas não cobram de si próprios o mesmo respeito e tratamento ético quando veem outras tragédias pessoais e familiares expostas em praça pública.

No fundo, não percebem que a execração do outro na vitrine asséptica de sua sala é uma maneira muito eficiente de mantê-lo ideologicamente dominado e manipulado ao constatar - morbidamente satisfeito - que sua desgraça é um pouco menos ruim do que a do barraco vizinho.

O artigo foi publicado n'O Povo:

Eu escolho meus fichas sujas

Cena I. Diante de uma mulher pobre, desalinhada, devastada pela dor do brutal assassinato do filho de 11 anos, um microfone intrépido e a voz falsamente solidária do repórter: “eu sei que esse momento é difícil, mas a senhora poderia nos dizer em que situação estava o corpo?”. A mulher leva as mãos ao rosto num constrangimento evidente, tentando conter as lágrimas. Obviamente não consegue responder. Enquanto isso a câmera passeia pelo ambiente doméstico miserável e apresenta uma dezena de pessoas, todas muito constritas, num sofrimento lacrimejante e silencioso. Uma música soturna ao fundo. Um caboclo sertanejo, no primeiro plano: braços fortes, curtidos pelo sol, sustentam o corpo num armador de rede, punhos cerrados, cabeça baixa. A legenda da imagem informa: menino de 11 anos morto a pauladas e facadas.

Cena II. Diante de uma mulher absurdamente semelhante à primeira, devastada pela dor de descobrir que o filho de 17 anos matou cruelmente o amigo, ambiente doméstico idem, pessoas igualmente atônitas, o mesmo microfone, o mesmo repórter: “eu sei que a senhora está sofrendo, mas e o sofrimento da outra mãe? a senhora sabia que seu filho era capaz disso?”. A mulher consegue responder entre lágrimas: “eu pelo menos ainda tenho o meu, e ela... coitada”. A voz embarga e sem esconder a vergonha leva as mãos ao rosto e esconde os olhos. A legenda da imagem informa: adolescente matou o menino a pauladas e facadas.

Tem me incomodado deveras o fato de que sob regimes de “liberdade” caímos sob outra tirania: a do lugar-comum, da indiferença diante do aviltamento da dignidade humana desde que travestida paradoxalmente da “liberdade” de expressão e informação.

O que é absurdo nos que procuram a simples liberdade é que imaginam saber de pronto o que é o bem e o mal. Enquanto nossa psique nacional, não sem boas razões, identifica o mal nos corruptos do setor público, ignorando quase solenemente os corruptores do setor privado e suas razões pragmáticas, me dou o direito de recuperar livremente a ausência de bom senso “consensuado”. Escolho os meus próprios fichas sujas. E eles não estão entre os corruptos que amamos odiar. Estão entre todos aqueles que fazem esse tipo de “jornalismo policial” que afronta nossa consciência cidadã anestesiada, porque nos imaginamos protegidos de microfones e câmeras criminosas que invadem privacidades simples, desprotegidas, e que sob o álibi de mostrar “a realidade como ela é”, locupletam-se da dor e miséria dos desvalidos, com a conivência dos órgãos de comunicação, anunciantes, audiência, descaso dos governos, justiça e partidos, em geral. Vivem da violência que falsamente denunciam.

Candidatos bem sucedidos, âncoras e repórteres desses programas infestam os parlamentos e defendem vigorosamente a Ficha Limpa. Sublime escárnio que denuncia involuntariamente nossas conformadas boas intenções.



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