quinta-feira, 31 de março de 2011

As tuitadas sinistras do Marco Feliciano

Confesso que não tenho mais paciência para lidar com esses pop stars que se dizem "evangélicos" e envergonham o evangelho com suas demonstrações públicas de misticismo barato, sabedoria fingida, apego ao dinheiro e macumbaria cóspel. 

Impressiona-me a quantidade de pessoas que os seguem sem exercer o discernimento espiritual que Deus concede aos cristãos pelo Espírito Santo (1 Coríntios 2:15; 1 João 4:1). 

A dedução lógica e óbvia é que quem segue esses falsos profetas NÃO tem o Espírito Santo, lamentavelmente, e estão se deixando levar por algum tipo de sentimentalismo gospel inconsequente. 

Agora, alguém precisa dar um chazinho pra acalmar o Marco Feliciano. Ontem o "pastor" estava com a macaca, para usar uma gíria que talvez o infelicite, mas tem tudo a ver com a sua "prédica", infelizmente. 

O pregador pirotécnico eleito deputado federal (PSC) por 211.855 paulistas, talvez em solidariedade ao também deputado Jair Bolsonaro, que na última segunda-feira criticou negros e gays em entrevista ao programa CQC da Rede Bandeirantes e foi acusado de racismo, resolveu ontem formular uma teoria supostamente bíblica para também atacar negros e gays. Primeiramente, ele recorre a Gênesis 9:

20 E começou Noé a cultivar a terra e plantou uma vinha.
21 Bebeu do vinho, e embriagou-se; e achava-se nu dentro da sua tenda.
22 E Cão, pai de Canaã, viu a nudez de seu pai, e o contou a seus dois irmãos que estavam fora.
23 Então tomaram Sem e Jafé uma capa, e puseram-na sobre os seus ombros, e andando virados para trás, cobriram a nudez de seu pai, tendo os rostos virados, de maneira que não viram a nudez de seu pai.
24 Despertado que foi Noé do seu vinho, soube o que seu filho mais moço lhe fizera;
25 e disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos será de seus irmãos.
26 Disse mais: Bendito seja o Senhor, o Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo.
Gen 9:27 Alargue Deus a Jafé, e habite Jafé nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por servo.

Depois, Marco Feliciano resolve explicar o texto e nos brinda com os seguintes ensinamentos:






Interessante que o próprio Marco Feliciano diga que sua interpretação é "polêmica". 

De fato, não há nenhuma certeza absoluta a respeito desse texto de Gênesis 9. Um ou outro erudito levanta a possibilidade remotíssima de Cão ter algum interesse sexual no corpo idoso do pai, mas a imensa maioria dos estudiosos entende, até pela brevidade do relato, que se trata de um desrespeito de Cão ao pai, não só por ter entrado em sua tenda sem autorização como por tê-lo ridicularizado aos irmãos. 

É muito perigoso que um líder religioso que se apresenta como "evangélico" (ainda que seja reconhecido como tal apenas por seguidores de uma religião feliciana e talvez não tenham se convertido ainda ao cristianismo puro e simples) venha a público, com base em um texto bíblico pré-mosaico, ou seja, antes da própria Lei ser dada ao povo hebreu, e dele fazer inferências sobre cor da pele e práticas sexuais que NÃO estão explícitas no texto. 

Sequer poderia se referir às leis do Levítico, porque elas seriam dadas a Moisés séculos DEPOIS. É um clamoroso atestado de ignorância bíblica, portanto. 

Em sua tentativa de "esclarecer" o seu "pensamento", Feliciano chegou a publicar no seu site uma referência ao historiador dos judeus Flávio Josefo, elevando-o à categoria de escritura divinamente inspirada, para "justificar" sua opinião de que a maldição de Cão teria chegado à Etiópia, e daí - por extensão - a todos os africanos. 

E é justamente este texto polêmico que serviu para justificar a escravidão dos africanos, por exemplo, por séculos a fio. 

A própria Igreja Católica o abandonou no século XIX, mas Feliciano faz questão de reavivá-lo. Não muito tempo atrás, o mesmo texto serviu para os mórmons excluírem os negros de qualquer investidura sacerdotal em sua religião. 

Depois da repercussão de suas declarações, Marco Feliciano voltou a fazer o seu papel preferido, o de vítima, como já fez em outra oportunidade, mas é claro que era só ceninha de mimimi e ele já voltou ao twitter tentando justificar o injustificável:


Ao que parece, tanto Bolsonaro como Feliciano se aproveitam de sua imunidade parlamentar para propagar sandices que, na boca de gente comum, os submeteria a um processo criminal. 

Felizmente, não há imunidade divina para quem toma o santo nome de Deus em vão, nem para aqueles que se dizem (auto)"ungidos". 

Como nada no palco gospel é o que parece, não duvido que o Feliciano esteja levantando toda essa poeira só pra tirar do seu desafeto Silas Malafaia o comando do discurso antigay no meio evangélico. Isto rende!

Ocorrências como esta deixam o tempo em que ele fazia merchan gospel no chinelo. E o engraçado é que, apesar da chapinha, o Marco Feliciano deve se considerar europeu...





Leia e veja a defesa do pastor-deputado em

A autovitimização reveladora de Marco Feliciano

O Luan Santana cóspel

Bom, ele se considera a versão gospel do Luan Santana, embora o ursinho de pelúcia em cima da cama denuncie que ele tá mais para "a gatinha do Dudu". Confira você mesmo:







quarta-feira, 30 de março de 2011

"Eichmann em Jerusalém", por Hannah Arendt

Hannah ArendtLer Hannah Arendt é um desses raros prazeres que todo bom leitor deveria ter na vida, mesmo que sua primeira impressão seja que os temas que ela aborda em seus livros não lhe digam respeito. 

A filósofa judia de origem alemã (1906-1975) tem uma capacidade de observação e análise que torna a sua escrita ao mesmo tempo simples e profunda, tornando acessíveis ao leigo os assuntos aparentemente mais impenetráveis. 

Em “Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal” (Companhia das Letras, 1999), ela se dedica a tentar entender todas as múltiplas facetas envolvidas no julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, também nascido em 1906 e executado por enforcamento em 1º de junho de 1962, justamente como resultado do processo penal do qual foi réu em Jerusalém. 

Eichmann foi sequestrado em Buenos Aires em 11 de maio de 1960 e levado secretamente para Israel 10 dias depois, gerando uma crise diplomática com a Argentina, que não demorou a ser resolvida, aproveitando o fato de que Eichmann vivia com identidade falsa em terras portenhas e era, portanto, apátrida segundo os acordos internacionais então vigentes. 

O governo israelense, liderado à época por David Ben-Gurion, queria aproveitar a ocasião e mostrar ao mundo o julgamento de um criminoso nazista no solo do país para, sobretudo, fazer com que o holocausto judeu não caísse no esquecimento (e os crimes correspondentes não fossem alcançados pela prescrição) 15 anos após o fim da Segunda Guerra, razão pela qual permitiu que o julgamento fosse transmitido pela TV a todos que se interessassem. 

Tudo isto contribuiria, imaginava Ben-Gurion, para a educação cívico-histórica da primeira geração de jovens e crianças israelenses, bem como para o fortalecimento de uma “consciência judaica”, tese à qual se opõe Hannah Arendt nesses termos: “Se o primeiro-ministro Ben-Gurion, que para todas as finalidades práticas, era o chefe do Estado judeu, pretendia fortalecer esse tipo de ‘consciência judaica’, ele estava mal orientado; pois uma transformação nessa mentalidade é, de fato, um dos pré-requisitos indispensáveis para o Estado de Israel, que por definição fez dos judeus um povo entre os povos, uma nação entre as nações, um Estado entre os Estados, dependendo agora de uma pluralidade que não mais permite a antiquíssima dicotomia, infelizmente religiosa, entre judeus e gentios” (pp. 21-22). 

Outra circunstância do julgamento chama a atenção de Hannah Arendt, e de certa forma revela muito sobre a formação do Estado de Israel e sua postura belicosa em relação aos países árabes vizinhos e ameaçadores de sua existência (pp. 22-23):


O contraste entre o heroísmo israelense e a passividade submissa com que os judeus marcharam para a morte - chegando pontualmente nos pontos de transporte, andando sobre os próprios pés para os locais de execução, cavando os próprios túmulos, despindo-se e empilhando caprichosamente as próprias roupas, e deitando-se lado a lado para ser fuzilados - parecia uma questão importante, e o promotor, ao perguntar a testemunha após testemunha 'Por que não protestou?', 'Por que embarcou no trem?', 'Havia 15 mil pessoas paradas lá, com centenas de guardas à frente - por que vocês não se revoltaram, não partiram para o ataque?', elaborava ainda mais essa questão, mesmo que insignificante. Mas a triste verdade é que ela era tomada erroneamente, pois nenhum grupo ou indivíduo nao judeu se comportou de outra forma. Dezesseis anos antes, ainda sob o impacto dos acontecimentos, David Rousset, ex-prisioneiro de Buchenwald, descrevia o que sabemos ter acontecido em todos os campos de concentração: 'O triunfo da SS exige que a vítima torturada permita ser levada à ratoeira sem protestar, que ela renuncie e se abandone a ponto de deixar de afirmar sua identidade. E não é por nada. Não é gratuitamente, nem por mero sadismo, que os homens da SS desejam sua derrota. Eles sabem que o sistema que consegue destruir suas vítimas antes que elas subam ao cadafalso... é incomparavelmente melhor para manter todo um povo em escravidão. Em submissão. Nada é mais terrível do que essas procissões de seres humanos marchando como fantoches para a morte' (Les Jours de Notre Mort, 1947). A corte não recebeu nenhuma resposta para essa questão tola e cruel, mas qualquer um poderia facilmente encontrar uma resposta se deixasse sua imaginação deter-se um pouco no destino daqueles judeus holandeses que, em 1941, no velho bairro judeu de Amsterdã, ousaram atacar um destacamento da Polícia de Segurança alemã. Quatrocentos e trinta judeus foram presos em represália e literalmente torturados até a morte, primeiro em Buchenwald, depois no campo austríaco de Mauthausen. Durante meses sem fim, morreram milhares de mortes, e todos eles deviam invejar seus irmãos que estavam em Auschwitz e até em Riga e Minsk. Há muitas coisas consideravelmente piores do que a morte, e a SS cuidava que nenhuma delas jamais ficasse muito distante da mente e da imaginação de suas vítimas. Sob esse aspecto, talvez até mais significativamente do que sob outros, a tentativa deliberada de contar apenas o lado judeu da história no julgamento distorcia a verdade, até mesmo a verdade judaica. A glória do levante do gueto de Varsóvia e o heroísmo dos poucos que reagiram estava precisamente no fato de eles terem recusado a morte comparativamente fácil que os nazistas lhes ofereciam - à frente do pelotão de fuzilamento ou na câmara de gás. E as testemunhas que em Jerusalém depuseram sobre a resistência e a rebelião e sobre o 'lugar insignificante que desempenharam na história do holocausto' confirmaram mais uma vez o fato de que só os muito jovens haviam sido capazes de tomar 'a decisão de não ir para o sacrifício como carneiros'.


Foi nesta condição de espectadora (e também articulista da revista The New Yorker) que Hannah Arendt se dirigiu a Israel para testemunhar in loco o longo julgamento de Eichmann, sobre o qual pesavam várias acusações concernentes ao seu papel na logística de transporte das populações judias em vários países da Europa durante o regime de terror perpetrado por Hitler. 

Burocrata ao extremo, considerado pela elite nazista um “especialista na questão judaica”, Eichmann desempenhou com afinco suas funções, facilitando assim o extermínio de centenas de milhares de judeus, mesmo sabendo exatamente que fim levavam as pessoas para as quais ele zelosamente providenciava o transporte macabro. 

Assim o descreve Arendt (p. 45):
“o que Eichmann deixou de dizer ao juiz presidente durante seu interrogatório foi que ele havia sido um jovem ambicioso que não aguentava mais o emprego de vendedor viajante antes mesmo de a Companhia de Óleo a Vácuo não aguentá-lo mais. De uma vida rotineira, sem significado ou consequência, o vento o tinha soprado para a História, pelo que ele entendia, ou seja, para dentro de um Movimento sempre em marcha e no qual alguém como ele – já fracassado aos olhos de sua classe social, de sua família e, portanto, aos seus próprios olhos também – podia começar de novo e ainda construir uma carreira. E se ele nem sempre gostava do que tinha de fazer (por exemplo, despachar multidões que iam de trem para a morte em vez de forçá-las a emigrar), se ele não adivinhou antes que a coisa toda iria acabar mal, com a Alemanha perdendo a guerra...”
É a derrota final que escancara um traço comum de Adolf Eichmann com seu xará Führer (e outros líderes nazistas), como já comentamos na resenha da biografia de Hitler por Ian Kershaw, que é a necessidade mórbida que esses desajustados tinham de pertencer a um grupo, como constata a escritora ao se referir às próprias palavras de Eichmann (pp. 43-44) diante do Reich destruído: “Senti que teria de viver uma vida individual difícil e sem liderança, não receberia diretivas de ninguém, nenhuma ordem, nem comando me seriam mais dados, não haveria mais nenhum regulamento pertinente para consultar – em resumo, havia diante de mim uma vida desconhecida”.

No quesito “consciência”, Hannah Arendt atribui a Heinrich Himmler o papel de “solucionador de problemas de consciência” com seus slogans vazios, do tipo “Minha Honra é Minha Lealdade”, “esta batalha as futuras gerações não terão mais que lutar” e a suprema confissão: “sabemos que o que esperamos de você é ‘sobretudo’, é ser ‘sobre-humanamente’ desumano”. 

Relata ainda que “os assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza; ao contrário, foi feito um esforço sistemático para afastar todos aqueles que sentiam prazer físico com o que faziam” (p. 121), um dos pontos que reforçam a tese de Arendt sobre a “banalidade do mal”, sobre a qual nos estendemos um pouco mais em outro artigo, intitulado "Quando a tentação é ser bom". 

Revela também (p. 150) que “o próprio Hitler conhecia 340 ‘judeus de primeira classe’ que ele fez assimilar ao status de alemães ou a quem concedeu privilégios de meio-judeus. 

Milhares de meio-judeus tinham sido eximidos de todas as restrições, o que pode explicar o papel de Heydrich na SS e o papel do Generalfeldmarschall Erhard Milch na Força Aérea de Göring, pois "era do conhecimento geral que Heydrich e Göring eram meio-judeus”. 

Assim ficamos estupefatos ao saber que teria havido algum tipo de arrependimento de pessoas que julgamos monstros, pois “dos principais criminosos de guerra, apenas dois se arrependeram diante da morte: Heydrich, durante os nove dias que levou para morrer dos ferimentos provocados por patriotas tchecos, e Hans Frank, em sua cela de morte em Nuremberg. Esse fato incomoda, porque é difícil não desconfiar que Heydrich se arrependeu não pelo assassinato, mas pela traição a seu próprio povo”.

Um dos melhores momentos do livro é aquele em que Hannah Arendt vasculha a Europa e faz uma análise longa e detalhada de como o holocausto se deu, palmilhando país por país, com destaque a todos os esforços que foram feitos por muitos deles para salvar da fornalha os seus judeus nacionais. 

Destaque para França, Itália, Bélgica e Holanda, que, apesar das leis antijudaicas que foram obrigadas a adotar, enquanto puderam resistir à violência, conseguiram salvar boa parte dos seus judeus. 

Na Dinamarca, todo o povo resistiu de maneira engenhosa, a ponto dos próprios oficiais nazistas encarregados da ocupação fornecerem informações secretas e valiosíssimas aos dinamarqueses para salvar os judeus, avisando-os das operações “surpresa”. 

Enquanto puderam, evitaram a extradição e chegaram a esconder em suas casas os compatriotas judeus e mesmo os estrangeiros que haviam conseguido chegar lá. 

Depois, quando não havia mais o que fazer para fugir ao rolo compressor genocida, utilizaram a própria frota de barcos pesqueiros para providenciar uma “ponte marítima” no Mar Báltico para levar 5.919 judeus à neutra Suécia, onde estariam a salvo da perseguição, e muitos cristãos dinamarqueses pagaram pelo transporte dos judeus pobres (pp. 192-193), numa bela página da história da humanidade em meio a tanto horror. 

Os nazistas conseguiram prender 477 judeus dinamarqueses desavisados, mas tiveram que alojá-los no campo de concentração de Theresienstadt (reservado aos judeus mais influentes ou abastados), onde eram melhor tratados não só pelas visitas constantes (dissimuladas e cenográficas) da Cruz Vermelha, como pela pressão que os dinamarqueses fizeram para que não fossem mortos, de maneira que, no fim da guerra, apenas 48 dessas pessoas morreram, o que é um número incrivelmente baixo em relação aos outros grupos nacionais. 

A Bulgária, entretanto, é um capítulo à parte, infelizmente esquecido e que merece ser sempre relembrado e louvado (pp. 206-207). Nenhum dos 6.000 judeus búlgaros foi deportado. 

O bispo metropolita ortodoxo Stephan de Sófia se envolveu pessoalmente e escondeu o rabino-chefe da capital búlgara, declarando publicamente que “Deus havia determinado a sorte dos judeus, e os homens não tinham o direito de torturar judeus e persegui-los”. 

A Romênia é o destaque espantosamente negativo, a "ironia" tétrica que - pasme! - escandalizou os próprios nazistas, como lembra a autora: “e no entanto, à luz do que ocorreu na Romênia, a coisa é de se pensar. Aí também foi tudo uma mixórdia, mas não como na Dinamarca, onde até os homens da Gestapo começaram a sabotar as ordens de Berlim; na Romênia, até a SS ficou perplexa, e às vezes assustada, com os horrores dos pogroms espontâneos, antiquados, de escala gigantesca; muitas vezes eles intervieram para salvar judeus da mais pura barbárie, para que o assassinato pudesse ser feito de maneira que, segundo eles, era civilizada” (p. 210). 

A suprema estupidez consistia no fato de que a burocracia nazista conseguia identificar níveis de civilidade na barbárie. 

Na Hungria (pp. 214-222), houve até uma tentativa de proteger sua população judaica, mas o próprio Eichmann foi a Budapeste para enfrentar e demover a resistência húngara à deportação de seus 800.000 judeus, isso já em meados de 1944, e conseguiu transferi-los para os famigerados campos de concentração, a pé mesmo, pois já faltavam veículos, trens e combustível para a missão, de maneira que apenas 130.000 judeus húngaros sobreviveram ao holocausto e à "logística" da caminhada suicida de Eichmann. 

Por sua vez, a então república-fantoche da Eslováquia (que havia sido separada da Tchecoslováquia por acordo com os nazistas) tratou de espoliar os bens dos cerca de 90.000 judeus eslovacos (pp. 223-226), mesmo mantendo-os no país, mas gradualmente eles foram sendo deportados e dizimados, de maneira que no fim da guerra restavam ali apenas 20 mil deles.

Na questão do julgamento, Hannah Arendt dá destaque (p. 153) à defesa que Eichmann fez de seus atos invocando o imperativo categórico de Kant, que “tinha vivido toda a sua vida de acordo com os princípios morais de Kant, e particularmente segundo a definição kantiana do dever”, ao que a filósofa, com sua arguta percepção, rebate: “isso era aparentemente ultrajante, e também incompreensível, uma vez que a filosofia moral de Kant está intimamente ligada à faculdade de juízo do homem, o que elimina a obediência cega”, concluindo que “ele distorcera seu teor para: aja como se o princípio de suas ações fosse o mesmo do legislador ou da legislação local – ou, na formulação de Hans Frank para o ‘imperativo categórico do Terceiro Reich’, que Eichmann deve ter conhecido: ‘Aja de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude, a aprove’ (Die Technik des Staates, 1942, pp. 15-6)”. 

Poderia se imaginar que a condição de judia de Hannah Arendt comprometeria a sua isenção na análise que fez do julgamento de Eichmann, mas essa é uma impressão completamente distante da realidade. 

Arendt oferece ao leitor um exame nu e cru de todas as ideologias que se confrontam no processo de Jerusalém, razão que inclusive a levou a escrever um posfácio nas edições seguintes à lançada em 1963, para esclarecer e defender seu ponto de vista ante as críticas que recebeu, sobretudo de setores judaicos. 

Isto em boa parte porque criticou o fato das autoridades executivas e judiciárias de Israel relevarem a participação de uma pequena parcela dos próprios judeus no holocausto, mediante a colaboração que Eichmann recebeu dos Conselhos Judaicos que eram formados em cada região por membros influentes da comunidade para organizar o seu próprio extermínio. 

Ainda que concorde com a sentença condenatória do nazista, e reconheça parcialmente que o genocídio perpetrado por Hitler é um fato sem precedentes (pelo menos em números) que requeria um julgamento também sem precedentes (apesar de Nuremberg), Arendt faz críticas contundentes à maneira como o processo foi conduzido, sobretudo quanto à sua fundamentação legal, ou seja, aquilo que ela chama de “inadequação dos conceitos jurídicos para lidar com os fatos criminosos que foram objeto desses julgamentos” (p. 315) e “inadequação do sistema legal dominante e dos conceitos jurídicos em uso para lidar com os fatos de massacres administrativos organizados pelo aparelho do Estado”. 

Toda a discussão jurídica que Arendt levanta é altamente interessante não só para os estudiosos do Direito Constitucional e Penal, mas para todo leigo que queira entender o sagrado princípio do “devido processo legal”. 

O julgamento, conclui a filósofa, “devia acontecer no interesse da justiça e nada mais” (p. 310) e é esta questão inefável da Justiça como valor absoluto, ainda inalcançável aos filósofos e aos seres humanos em geral, que rege a análise de Hannah Arendt sobre o processo de Jerusalém, a ponto dela se sentir autorizada (também pelo leitor que desfruta desta obra) a formular a sua própria sentença, este primor de julgamento (pp. 300-302) em que se dirige a Eichmann e assim conclui o livro e esta resenha:




“Suponhamos, hipoteticamente, que foi simplesmente a má sorte que fez de você um instrumento da organização do assassinato em massa; mesmo assim resta o fato de você ter executado, e portanto apoiado ativamente, uma política de assassinato em massa. Pois política não é um jardim de infância; em política, obediência e apoio são a mesma coisa. E, assim como você apoiou e executou uma política de não partilhar a Terra com o povo judeu e com o povo de diversas outras nações – como se você e seus superiores tivessem o direito de determinar quem devia e quem não devia habitar o mundo -, consideramos que ninguém, isto é, nenhum membro da raça humana, haverá de querer partilhar a Terra com você. Esta é a razão, e a única razão, pela qual você deve morrer na forca.”



Leia mais um trecho de "Eichmann em Jerusalém" no texto

Quando a tentação é ser bom


Freira chilena acusada de pedofilia

A notícia é um tanto quanto inusitada, talvez por estarmos mais acostumados (lamentavelmente) a lê-las e ouvi-las quando envolvem homens no papel de abusadores. 

Agora, a Igreja Católica do Chile está em polvorosa diante das denúncias que envolvem Isabel Margarita Droguett, mais conhecida como "madre Paula", hoje com 66 anos de idade, e que desempenhou por longo tempo as funções de madre superiora (Soror) da Ordem Ursulina naquele país, segundo informa o jornal chileno La Nación

A principal denunciante é uma mulher que tem hoje 40 anos de idade, e que estudou na década de 80 no Colégio Santa Úrsula de Maipú, na região metropolitana de Santiago. Indicando possíveis testemunhas, diz ela que "a madre Paula me tocava debaixo da calcinha quando eu tinha 12 anos", além de humilhá-la e submetê-la a outras condutas impróprias. 

A Soror Paula foi removida de seu cargo pelo Vaticano, que alegou "exercício ilegítimo como superiora religiosa". 

Do ponto de vista jurídico, de acordo com as leis chilenas, o caso não terá boa sorte na Justiça, já que se encontraria prescrito. 

O escândalo, entretanto, envolve ainda a remoção da freira para um convento na Alemanha após sua destituição do cargo de soror da ordem, justamente pela denúncia de uma ex-noviça que, ao que tudo indica, teria delatado abusos parecidos com o que sofreu a atual vítima. 

Pesam ainda contra a ex-soror queixas contra seu autoritarismo, sua intenção de perpetuar-se no cargo e ainda há suspeita de desvio de recursos financeiros da congregação. 

Isto tudo num país como o Chile, em que a Igreja Católica tem uma enorme influência, sem paralelo nos outros países latino-americanos. 

Basta dizer que até 2004 o Chile era um dos 3 únicos países no mundo que proibia o divórcio (fonte: BBC), face a oposição ferrenha da Igreja Católica local. 

A solução criativa dos chilenos (o "divórcio à chilena") era informar dados calculadamente errados no cartório por ocasião do casamento civil, contando com a providencial "vista grossa" do oficial do cartório ("notario" em español). 

Qualquer problema depois, era só pedir a sua anulação, facilmente conseguida pelo (oh céus! quem diria...) "erro" cometido quando de sua realização. 

E você que achava que só brasileiro dava "jeitinho" em tudo, né...

Abaixo você pode ver o vídeo de uma entrevista com a madre Paula, feita em 2008, por ocasião da comemoração dos 70 anos da presença da ordem ursulina naquele país:


terça-feira, 29 de março de 2011

Descobertos textos cristãos do primeiro século

A se confirmarem as notícias que chegam hoje do Oriente Médio, teremos uma verdadeira revolução na historiografia do início do Cristianismo, bem como novas e profundas evidências no debate a respeito da historicidade de Jesus. Um beduíno teria encontrado numa caverna da Jordânia mais de 70 "livros" que poderiam ser textos cristãos do primeiro século, escritos numa forma antiga do idioma hebraico, e - além disso - utilizando um código secreto. Segundo informa a matéria publicada pela BBC, eles seriam datados de aproximadamente 2.000 anos. Diz-se "livros" entre aspas porque cada um deles tem entre 5 e 15 folhas de chumbo (pequenas) ligadas por anéis do mesmo metal (já tem gente chamando-os de "iPad de Jesus"), o que dá uma conotação ainda mais espetacular ao achado, já que normalmente se esperaria que se tratassem de papiros, que dadas as dificuldades de conservação, teriam poucas chances de sobreviver aos elementos do ambiente.




Por isso mesmo, sabe-se que os textos mais antigos que recebemos do Novo Testamento, por exemplo, são datados do século II, e estão em condições sofríveis de conservação. Eles já seriam cópias dos pergaminhos originais, perdidos pelo desgaste do tempo e do manuseio constante. A descoberta atual teria acontecido entre 2005 e 2007, quando um beduíno israelense encontrou, por acaso, dois nichos em uma caverna no deserto remoto da Jordânia, cuja entrada havia sido desenterrada depois de uma enchente. Um dos nichos estava marcado com um menorah (o candelabro judeu). O governo jordaniano protestou contra o que chama de "contrabando de relíquias", mas o beduíno agora afirma que o tesouro arqueológico estaria na sua família há mais de 100 anos. O que está em jogo, segundo Ziad al-Saad, diretor do Departamento de Antiguidades da Jordânia, são textos provavelmente escritos por seguidores muito próximos de Cristo, tanto no tempo como no espaço, que poderiam revelar detalhes preciosíssimos sobre sua crucificação e ressurreição, algo que tornaria este novo achado muito mais importante do que os famosos manuscritos do Mar Morto, encontrados em 11 cavernas de Qumran entre 1947 e 1956.

Ainda segundo al-Saad, "talvez isso conduzirá a uma outra interpretação e verificação da autenticidade do material, mas a informação inicial é muito encorajadora, e parece que estamos olhando para uma descoberta muito importante e significativa, talvez a mais importante descoberta na história da arqueologia". David Elkington, um estudioso de arqueologia religiosa antiga que chefia a equipe britânica que investiga o fato, também diz que esta pode ser "a grande descoberta da história do cristianismo", acrescentando: "É de tirar o fôlego pensar que temos acesso a esses objetos que poderiam ter sido realizadas pelos santos nos primórdios da Igreja". Ele acredita que a maior evidência de uma origem cristã encontra-se nas imagens que decoram as capas dos livros e algumas das páginas das que já foram abertas.

Outro estudioso britânico, Philip Davies, professor emérito de Estudos do Antigo Testamento da Universidade de Sheffield, afirma que a evidência mais forte indicando uma origem cristã encontra-se num mapa que mostra a imagem da cidade santa de Jerusalém. São suas essas palavras: "Assim que eu vi isso, fiquei mudo. Isso me pareceu tão obviamente uma imagem cristã. Há uma cruz em primeiro plano, e por trás dele é o que tem de ser o túmulo [de Jesus], uma pequena construção com uma abertura, e por trás dela estão os muros da cidade. Também há muros retratados em outras páginas desses livros e eles certamente se referem a Jerusalém". E é a cruz que é a característica mais notável, na forma de um T maiúsculo, como as cruzes usadas pelos romanos para a crucificação. [observação: este é um detalhe que, se confirmado, derrubará definitivamente o dogma das Testemunhas de Jeová de que Jesus foi morto numa estaca e não numa cruz]

Acrescenta Davies ainda: ""[Outra] das evidências mais fortes que indicam uma origem cristã é que não se trata de pergaminhos, mas de livros. Os cristãos foram particularmente associados com a escrita em forma de livro ao invés de pergaminhos ou papiros [tipicamente judeus] e selar os livros, em especial, fazia parte da tradição secreta do cristianismo primitivo".

Estamos, portanto, diante de uma descoberta realmente sensacional, sobre a qual veremos e ouviremos muitas coisas nos próximos meses e anos. Entretanto, é sempre bom ter cautela, pois muitos achados já causaram furor na mídia e se revelaram fraudes, como as muitas vezes em que a arca de Noé teria sido encontrada. Em seu blog, o erudito Larry Hurtado, professor de Novo Testamento da Universidade de Edinburgh, na Escócia, recomenda muito cuidado na avaliação dos artefatos, e se diz hesitante justamente por causa da sua inusitada confecção mediante placas de metal. Recomenda um profundo exame público e isento dos "livros" para que seja estabelecida a sua autenticidade. Por outro lado, fica a pergunta: por que um eventual falsificador utilizaria este método tão estranho? Agora, se essas informações vindas também de fontes confiáveis se confirmarem, estaremos sim diante da maior descoberta arqueológica dos últimos tempos, senão de toda a história da humanidade. Aguardemos, então, com um misto de ansiedade e precaução, o desenrolar dos fatos.



Você pode ver mais fotos no site da BBC


Djokovic joga tênis em cima do avião

Tudo bem, trata-se só de uma propaganda com efeitos especiais e, ao que parece, o carismático tenista sérvio Novak Djokovic, atual nº 2 do mundo no ranking da ATP, realmente ficou em cima da asa do avião para gravar a publicidade. Como tudo que envolve o Djokovic, não deixa de ser uma boa diversão. Confira:

segunda-feira, 28 de março de 2011

Ateu Christopher Hitchens pode ser "salvo" por adversário cristão

É o que informa hoje o diário britânico The Telegraph. O conhecido militante ateu Christopher Hitchens, 61 anos de idade, autor do livro "Deus Não É Grande - Como a Religião Envenena Tudo", sofre de câncer no esôfago, e está se submetendo a um novo tratamento com o geneticista cristão Francis S. Collins, autor do livro "A Linguagem de Deus". Os dois já participaram - como adversários cordiais - de vários debates sobre fé e ateísmo, e se tornaram amigos neste processo, o que é algo que deve ser enaltecido porque religião (ou a falta dela) não deveria separar ninguém. Agora o cientista cristão, da mesma idade de Hitchens e que foi diretor do renomado Projeto Genoma Humano, selecionou o militante ateu como um dos poucos beneficiários no mundo que terá seu genoma completamente mapeado, tudo obviamente na tentativa de proporcionar-lhe uma cura para o câncer agressivo que enfrenta. Hitchens diz na entrevista que se sente um experimento de laboratório (uma verdadeira cobaia) e deixa claro que não busca um milagre mas uma cura pela ciência.

Entretanto, outro trecho da entrevista é bastante revelador sobre o estágio em que se encontra o movimento chamado "neoateísta" no mundo. Hitchens diz que tem muitos seguidores que estão pedindo para que ele oficie seus casamentos, numa espécie de "cerimônia religiosa ateia", se é que se pode utilizar esta expressão. Acrescenta que esta estranha procura começou há uns 2 anos atrás e que "isto é algo que ele tem que resistir enquanto sobreviver e mesmo que não consiga". Talvez este seja um claro sintoma de que os neoateístas estejam fundando, contrariamente ao que defendem, uma nova religião, o que não é exatamente uma surpresa, já que suspeito que a maior parte da população mundial professa, na verdade, uma espécie de "ateísmo funcional", ou seja, até dizem acreditar nesta ou naquela divindade ou espiritualidade, participam de suas cerimônias religiosas, mas no fundo tocam suas vidas como se nenhuma delas existisse. Pode ser que esta surpreendente confissão de Hitchens, de que o estão convidando para desempenhar as funções de um "sacerdote ateu" de casamentos, seja o ponto de contato entre o ateísmo militante e sua versão funcional. Vai entender...

Já criaram o anti-Hélio

Hélios de todo o mundo, somos super-heróis e não sabíamos. [se bem que só deve ter cara chamado Hélio no Brasil; se pelo menos pudéssemos incluir os Elliots na conta...] Temos até direito ao mundo bizarro, pois já criaram o anti-Hélio, conforme a notícia abaixo da NewScientist, traduzida pelo HypeScience:

Cientistas criam forma de antimatéria mais pesada já vista

Recentemente, um colisor (RHIC) em Nova York, EUA, criou a maior e mais complexa antimatéria vista até agora; antinúcleos de hélio, cada um contendo dois anti-prótons e dois anti-nêutrons.

O RHIC colide núcleos atômicos pesados, como chumbo e ouro, para formar bolas microscópicas, onde a energia é tão densa que muitas novas partículas podem ser criadas.

Antipartículas têm carga elétrica oposta às partículas ordinárias da matéria (os antinêutrons, que são eletricamente neutros, são compostos de antiquarks que têm carga oposta aos seus homólogos normais).

Essas partículas se aniquilam no contato com a matéria, tornando-as notoriamente difíceis de se encontrar e trabalhar. Até recentemente, a unidade mais complexa de antimatéria já vista era o contraponto do núcleo de hélio-3, que contém dois prótons e um nêutron.

No ano passado, cientistas anunciaram a criação de uma nova variedade de antimatéria. Chamada de anti-hiper-tríton, ela é feita de um antipróton, um antinêutron e uma partícula instável chamada anti-lambda. O anti-hiper-tríton era a antipartícula mais pesada conhecida até agora.

Porém, a nova criação não ajuda a responder uma grande questão da física, que é por que o universo, em geral, não é cheio de antimatéria. Na verdade, as teorias padrão dizem que a matéria e a antimatéria foram criadas em quantidades iguais nos primeiros instantes do universo, mas, por razões desconhecidas, a matéria prevaleceu.

Um experimento chamado Espectrômetro Magnético Alfa, previsto para ser lançado para a Estação Espacial Internacional em abril, vai tentar resolver o problema.

Os cientistas acreditam que os antiprótons ocorrem naturalmente em pequenas quantidades entre as partículas de alta energia que atingem a Terra, chamadas raios cósmicos.

O experimento também irá procurar antipartículas mais pesadas. Se o anti-hélio for produzido apenas raramente em colisões, a busca não deve encontrar anti-hélio. Se o experimento encontrar níveis mais elevados de anti-hélio, isso poderia reforçar a teoria de que a antimatéria não foi inteiramente destruída no início do universo, mas apenas “separada” em uma parte diferente do espaço, onde não entra em contato com a matéria.

O segundo maior antielemento, o anti-lítio, pode, em teoria, formar antimatéria sólida à temperatura ambiente, entretanto, os pesquisadores acreditam que isso será muito mais difícil de identificar. A equipe calcula que o anti-lítio irá ocorrer em suas colisões menos de um milionésimo de vezes que o anti-hélio, colocando-o fora do alcance dos grandes colisores.

domingo, 27 de março de 2011

Elite paulistana agora contrata babás paraguaias

Cuidado, bandeirantes! Os séculos passaram e agora - quem diria! - são os guaranis que vão criar as vossas crianças, ainda que vosmecês pensem que vão escravizá-los de novo. Parodiando um conhecido político paulista de nome e sotaque árabe que os senhores até elegeram prefeito da vossa cidade, "escraviza, mas não mata!". Uma das senhoras patroas diz que "as nacionais são caras e pouco comprometidas com o serviço", justo elas que a-do-ram pagar os pedágios mais caros do mundo. O que as nobres senhoras se recusam a admitir, mesmo em sonhos, é que, com o desenvolvimento do Nordeste, a elite paulistana teve que se dar ao trabalho de "importar" babás do Paraguai, além de criar um "comando anti-terrorismo" contra as babás "malvadas" que querem que elas respeitem seus direitos trabalhistas, segundo informa o Estadão de hoje em duas notícas:

Notícia 1:

Famílias paulistanas contratam babás paraguaias

PAULO SAMPAIO - Agência Estado

Há cerca de duas semanas, quando recebeu do filho Mateus, de 5 anos, uma lembrança trazida da escola, a advogada Renata, de 34, ouviu espantada ele dizer: "Un recuerdo para mamá". Mateus se tornou "bilíngue" pela convivência com uma babá paraguaia. Renata, três filhos, empregou a estrangeira depois de uma experiência razoavelmente longa e traumática com brasileiras.

"As nacionais são caras e pouco comprometidas com o serviço", diz a administradora de empresas Monica, de 36, precursora de um grupo de mais de dez amigas endinheiradas que usam os serviços de babás paraguaias. A dela foi indicada por uma conhecida que morou alguns anos naquele país.

Mônica e Renata têm duas "importadas" em casa. As amigas preferem dar a entrevista no anonimato (os nomes estão trocados), porque as funcionárias nem sempre estão legalizadas.

Um estrangeiro tem 90 dias para ficar no Brasil como turista e, a partir daí, caso pretenda empregar-se, deve sair, tirar o visto de trabalho na Embaixada do Brasil em seu país e voltar. Mas nem sempre isso acontece.

"Esse cenário (da ilegalidade) é comum até entre executivos de multinacionais. Eles saem a cada três meses para renovar o visto de turista. Os empregados domésticos em geral permanecem na ilegalidade", diz o professor de Direito Internacional da Universidade de São Paulo (USP) Pedro Dallari.

As empregadoras das babás afirmam que querem tudo legalizado. Dizem que a primeira providência é encaminhar a doméstica ao consulado paraguaio para tirar atestados de antecedentes. De acordo com a consulesa paraguaia em São Paulo, Maria Amélia Barbosa, a quantidade de imigrantes que procuram o consulado para o serviço só aumenta. "Há dois anos, não tinha notícia de paraguaias que pretendiam ser babás no Brasil. Hoje há um número razoável delas."

Como ocorre com domésticas que vêm das regiões mais pobres do Brasil, a babá paraguaia costuma indicar para as amigas de sua patroa a irmã, a prima, a tia. "O salário compensa bastante", diz Noeli, de 21 anos, uma das duas paraguaias que trabalham na casa de Renata. Ela conta que em seu país ganharia no máximo o equivalente a R$ 400. Aqui, é possível tirar R$ 1.000 - sem contar o câmbio favorável da moeda: R$ 1 vale dois guaranis e meio.

Por sua vez, o salário de uma babá brasileira, de acordo com números do Sindicato dos Empregados e Trabalhadores Domésticos da Grande São Paulo (Sindoméstico), subiu mais, proporcionalmente, do que o de qualquer outro da categoria. "Em média, em São Paulo, ela ganha R$ 1.500. O piso vai para R$ 600 em abril, mas ninguém mais ganha isso. Se não tem experiência, já começa com R$ 800", afirma Eliana Menezes, presidente do sindicato.



Notícia 2:


Mães criam grupo ''antiterrorismo'' contra empregadas

Elas trocam e-mails com observações sobre sua relação com funcionárias ''ingratas'', que as deixam até ''meio tontas''

Paulo Sampaio - O Estado de S.Paulo

Indignadas, cerca de 20 mães com sobrenomes tão colunáveis como Gasparian, Vidigal, Pignatari, Souza Aranha e Flecha de Lima se juntaram há cinco anos para fundar o GATB: Grupo Anti-Terrorismo de Babás.

A ideia era se proteger da "petulância" das funcionárias, dar dicas sobre o que fazer em caso de "abuso de direitos" e ainda trocar ideias sobre cabeleireiros, temporadas de esqui em Aspen e veraneios em condomínios do litoral norte.

Hoje, o grupo antiterrorista agrega por volta de cem mulheres que disparam e-mails diariamente. No campo "assunto", leem-se frases como: "É necessário pagar feriado??", com várias interrogações ou exclamações, inclusive em inglês, dependendo do tema. "Help!!"

Decisões em relação às empregadas são contadas como bravatas: "Girls, mandei a copeira e a cozinheira embora numa tacada só. Além de diversos furtos ao longo do ano, Rolex, roupas, etc, comprovamos um furto numa sexta à noite que só pode ter sido uma das duas", diz a integrante.

Dadas a rasgos de generosidade, elas passam adiante babás que não quiseram: "Oi, queridas amigas, é o seguinte: minha babá quebrou o braço e a irmã da minha folguista veio cobrir. Eu tinha até falado que se eu gostasse ia ficar com ela, mas o D. não quer duas irmãs juntas. O bom é que é daquelas que topam tudo: lava louça, passeia com os cachorros e até cozinha. Não é casada, mas tem um filho de 15 anos que se vira sozinho. Bom, quem tiver interessada o telefone é..."

Em autorreferências, as "girls" se ufanam: "Chique é ser GATB, onde meninas ajudam às outras sem pedir nada em troca!!"

TRECHO

"Meninas", diz uma das mensagens. "Minha babá veio com uma história sem pé nem cabeça, de que eu estou devendo todos os feriados em dinheiro, porque existe uma lei agora, onde ela tem esse direito. Estou meio tonta com a atitude, decepcionada com a falta de educação e gratidão por tudo que já fiz por ela, mas gostaria de saber se sou obrigada a pagar. Quando achamos que estamos com uma babá ótima, lá vêm as bombas!"





Aproveitando o nonsense e o mau gosto da notícia acima, me lembrei dos Inimigos do Rei cantando "Adelaide, a anã paraguaia", que dedico às senhoras paulistanas:


Série da TV Brasil terá protagonista evangélica


É o que informa a Folha de S. Paulo na sua edição de hoje:

TV Brasil terá séries com personagens de classes C, D e E

"Natália", que estreia em maio, conta a história de menina virgem, evangélica e moradora do subúrbio

As produções foram escolhidas por edital que buscava "visão original" sobre jovens de estratos mais pobres

ROBERTO KAZ
DE SÃO PAULO

No dia 1º de maio estreia, na TV Brasil, "Natália", minissérie em 13 capítulos sobre uma jovem carioca descoberta pelo mundo da moda. Virgem, pobre, evangélica, mulata e noiva, Natália, a protagonista, mora em um bairro de subúrbio.

Não é um acaso. Com outras duas séries -"Brilhante Futebol Clube" e "Vida de Estagiário"-, a história foi escolhida entre 225 ideias apresentadas ao Ministério da Cultura, em 2008, no concurso de fomento a seriados para TVs públicas.

O edital apontava que "45 milhões de jovens estão nas classes C, D e E, imersos em realidades socioeconômicas desfavoráveis", e notava "a ausência de programação voltada para os temas" deles.

Por isso, o MinC, em parceria com a Empresa Brasil de Comunicação, que coordena a TV Brasil, anunciou a seleção "de minisséries que proponham uma visão original sobre a(s) juventude(s) brasileira(s) das classes C, D e E, desconstruindo os estereótipos". Cada projeto aprovado recebeu R$ 2,6 milhões. "Natália", o primeiro a ir ao ar, será transmitido semanalmente, às 22h30.

Mario Borgneth, coordenador-executivo do edital, conta que o concurso refletiu uma política do governo Lula, "focado em populações de baixa renda e áreas de vulnerabilidade social".

Ele diz que, hoje, a juventude das classes menos favorecidas só costuma aparecer na TV em filmes como "Notícias de uma Guerra Particular" e notícias de crime. "Qual foi a última vez que vimos um caso de amor entre um office boy e uma manicure na TV?", pergunta. "Isso surge, no máximo, em núcleos paralelos de novelas."

"Tem o "Hermes e Renato", na MTV, e "Malhação", na Globo, mas a última coisa nova nesse campo foi "Confissões de Adolescente", que mostrava o universo da classe média", aponta, esquecendo-se de mencionar "Turma do Gueto", da Record, que já em 2002 enfocava a vida de jovens da periferia.

Borgneth credita a lacuna ao fato de as emissoras verem o público como consumidores em potencial. "E não sei se existe mercado anunciante para um público jovem que não o da "Malhação" no horário da tarde", diz.

Mas ressalva: "Esses jovens que deixam de ver TV para ir a lan-houses estão dando um recado: "O que está aí não nos interessa'".

Entrevista com o Zangief Kid do bullying

O garoto que ficou mundialmente conhecido como o Zangief Kid ao revidar o bullying que sofria na escola se chama Casey Heynes, e deu uma entrevista ao programa A Current Affair do canal de TV australiano Nine. É muito interessante ver o vídeo abaixo e constatar como se trata de um garoto bem articulado, a surpresa que seu pai teve ao saber que seu filho era vítima constante de bullying, e como foi importante a ajuda que sua irmã mais velha lhe deu nos seus piores momentos. É um daqueles vídeos que você deveria ver e debater na sua casa, no seu trabalho e na sua igreja. São só 12 minutos repletos de lições para a vida toda:

Financial Times sugere anexação de Portugal pelo Brasil

Antes que os portugueses reclamem da piada de mau gosto, cumpre lembrar que sua autoria é do jornal britânico Financial Times, em nota ("Portugal and Brazil: role reversal - There is an out-of-the-box way for the EU to deal with the situation in Portugal: annexation by Portuguese-speaking Brazil - algo traduzido como "Portugal e Brasil: papéis trocados - Há um plano B para a União Europeia lidar com a situação de Portugal: anexação pelo lusófono Brasil") exclusiva para assinantes, segundo informa o Portal Imprensa:

Financial Times sugere que Portugal seja anexado ao Brasil para sair da crise

Redação Portal IMPRENSA

Em artigo publicado na edição desta sexta-feira (25), a equipe de colunistas da seção Lex do Financial Times sugere que Portugal seja anexado ao Brasil para sair da crise econômica e política em que vive: "Aqui vai uma maneira 'out-of-the-box' para lidar com o problema: anexação pelo Brasil (uma década de 4% de crescimento anual do PIB, muito mais elevado recentemente). Portugal seria uma grande província, mas longe de ser dominante: 5% da população e 10% do PIB", lê-se na coluna mais influente do jornal britânico de negócios e finanças.

O premiê socialista José Sócrates renunciou ao cargo, na última quarta-feira (23), após ver seu plano de austeridade ser rejeitado pela Assembleia Nacional Portuguesa, pela quarta vez. De acordo com o presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Juncker, Portugal precisaria de um empréstimo de 75 bilhões de euros (cerca de R$ 175 bilhões) para solucionar os elevados endividamento e déficit públicos. Antes de renunciar, Sócrates resistia aceitar ajuda externa.

Para o FT apesar da perda de status, Portugal sairia ganhando caso tornar-se uma província brasileira: "A antiga colônia tem algo a oferecer, mesmo para além da diminuição dos 'spreads' de crédito e, proporcionalmente, déficits e contas correntes governamentais muito mais baixos. O Brasil é um dos BRIC, o centro emergente do poder mundial. Isto soa melhor lar que uma cansada e velha União Europeia", escreve o FT, em tradução feita pelo portal luso Económico.

Para o diário britânico, a União Européia vê em Portugal um membro problemático: "Sem governo, elevada resistência à austeridade e crônico desempenho econômico".



Atualização de 04/04/11

Coluna de Patricia Campos Mello, publicada na Folha.com em 01/04/11:

Portugal, colônia do Brasil? Uma proposta

O jornal inglês "Financial Times" saiu com uma proposta inusitada nesta semana: o Brasil deveria anexar Portugal, que se tornaria uma província brasileira, abandonando a União Europeia. O jornal não poupou críticas ao estado atual da nação portuguesa, mergulhada em dívidas, desemprego recorde e com um primeiro-ministro demissionário porque não conseguiu apoio para seu plano de austeridade.

Já o Brasil, antiga colônia portuguesa, cresceu humilhantes 7,5% ano passado e é mercado cobiçado e garantidor de resultados das multinacionais portuguesas como a Portugal Telecom. Enquanto Portugal o Brasil saiu da lista de devedores do Fundo em 2005, e hoje em dia é credor líquido internacional. Daí a ideia de inverter os papéis entre antigos metrópole-colônia.

A proposta do "FT", obviamente, é uma piada.

Mas é fato que a presidente Dilma Rousseff foi recebida em Portugal nesta semana com ecos de sebastianismo. "Dilma veio com um discurso de parceria estratégica com Portugal, mas tudo o que os portugueses queriam era garantia de que o Brasil vai financiar a dívida portuguesa", contou-me uma influente jornalista portuguesa. "Queríamos o Brasil salvando Portugal, a Dilma chegando com o cheque e investimentos."

Portugal está tentando vender seus títulos até para o Timor. Mas, com o rebaixamento pelas agências de classificação de risco --estão a apenas dois degraus da nota 'junk'-- está difícil achar cliente. O país precisa de financiamento de € 21 bilhões entre abril e dezembro. A China, com US$ 3 trilhões de reservas internacionais, comprou apenas US$ 300 milhões de dívida pública portuguesa.

"Os discursos de Dilma e de Lula tiveram de incorporar a disponibilidade para ajudar Portugal na crise da dívida, embora, como se temia, além de palavras de circunstância e de vagas promessas, pouco de substancial tenha sobrado", dizia o editorial de quinta-feira do jornal Público.

Quiçá os portugueses esperavam do Brasil a mesma generosidade que o caudilho Hugo Chávez demonstrou com a Argentina. Quando os portenhos eram párias absolutos no mercado internacional e o regime bolivariano estava no auge da riqueza dos petrodólares, Chávez foi era p único a financiar a dívida argentina, embora a taxas não muito camaradas.

Mas Dilma foi pragmática e não se comprometeu com nada. "No caso dos títulos, nós temos de cumprir os requisitos que dizem respeito ao uso das reservas do Brasil. Quais são os requisitos do banco central? Que sejam títulos triplo A", disse. A Standard & Poor's baixou a nota de risco de Portugal para BBB-. "A única alternativa é a possibilidade de comprar títulos que não são triplo A com garantia. Ou garantia real ou de algum ativo que supra essa deficiência", completou Dilma.

Integrante da comitiva de Dilma em Portugal, o assessor internacional da presidência, Marco Aurélio Garcia, sublinhou que o Brasil precisa ser generoso com seus vizinhos, em entrevista a Assis Moreira, do Valor Econômico. Ele se referia à negociação das tarifas pagas aos paraguaios pela energia de Itaipu.

A ver se essa generosidade se estende aos países não vizinhos, mas historicamente irmãos.

sábado, 26 de março de 2011

"O Livro de Mórmon" vira musical da Broadway

Os criadores do desenho animado (e debochado) South Park, Matt Stone e Trey Parker, escreveram (com a participação de Robert Lopez) e produziram o musical "The Book of Mormon" ("O Livro de Mórmon") que estreiou esta semana no circuito da Broadway em Nova York, segundo informa o blog Belief da CNN. A exemplo da animação criada pela dupla, criatividade é o que não falta no roteiro do musical. Além do fundador da Igreja mórmon, Joseph Smith Jr., estão lá representados Jesus Cristo, Satanás, um senhor da guerra da África, Darth Vader, mestre Yoda, Hitler, Gengis Khan e dois hobbits (haja imaginação!!!). A ideia básica deles é fazer uma sátira da religião fundada por um profeta norteamericano que encontra placas douradas misteriosas, e isto fica claro na propaganda da obra (vídeo abaixo), em que eles usam a palavra "moronic" para descrever o musical, aproveitando um jogo de palavras entre "moron" (o termo tipicamente americano para "idiota", "babaca") e Moroni, que além de ter sido o último escritor do Livro de Mórmon, teria se tornado o anjo que levou Joseph Smith Jr. a encontrar as placas douradas que o próprio Moroni havia enterrado séculos antes. Por isso, é comum ver uma estátua do anjo Moroni no topo das torres dos templos mórmons.



O roteiro do musical conta a história de dois jovens mórmons, Elder Price e Elder Cunningham (o prenome Elder identifica os missionários de tempo integral), que têm que cumprir seu trabalho evangelístico de dois anos, e em vez de irem para Orlando, na Flórida, terminam indo parar em Uganda. A vida na vila africana para a qual foram destinados não é nada fácil, diante das ameaças, mutilações e assassinatos praticados a mando do senhor da guerra local. Além da AIDS, da violência e da diarreia, eles têm que interagir com a verdadeira salada de referências criada pelos autores, que, em entrevista ao Late Show de David Letterman (vídeo abaixo), disseram que esperam que o musical "seja mais divertido que o Livro de Mórmon".




A Igreja mórmon não se pronunciou oficialmente, seguindo a sua tradição de não comentar sátiras midiáticas e evitar polêmicas, prática que já seguia por ocasião da série "Big Love" da HBO ou mesmo em relação a alguns episódios de South Park (vídeo abaixo). Segundo os criadores disseram a David Letterman na entrevista acima, houve até uma reação positiva de alguns mórmons que viram a pré-produção, e a imprensa de Salt Lake City, onde fica a sede mundial da igreja, qualificou a obra como "doce". A crítica do The New York Times, assinada por Ben Brantley, por sua vez, considera o musical "nojento e lindo" ao mesmo tempo (se é que isso é possível) e o chama de "blasfemo", embora veja virtudes, como as referências a outros musicais do nível de "Os Produtores" e "A Noviça Rebelde". Entretanto, se você quiser conferir por si mesmo, vai ter que aproveitar sua próxima viagem a Nova York.




A Broadway tem uma longa tradição em óperas-pop sobre temas bíblicos, das quais "Jesus Christ Superstar" e "Joseph and the Amazing Technicolor Dreamcoat", ambas de Andrew Lloyd Weber, talvez sejam as mais famosas (veja as versões filmadas abaixo), embora "José e a Maravilhosa Capa Sonhadora em Technicolor" seja praticamente desconhecida no Brasil, o que é uma pena, pois tem músicas belíssimas como a mostrada no último vídeo, "Close Every Door" ("Fechem todas as portas", "as crianças de Israel nunca estão sozinhas"), na brilhante interpretação de Donny Osmond como José preso na masmorra. Mesmo se você não entender inglês, vai ser difícil não se emocionar no minuto 04:00. Difícil também é separar o que é profano nessas obras, mas fica a critério de cada um identificar o que é belo e o que é feio nessas manifestações tipicamente humanas. Tarefa, aliás, que temos que desempenhar nas circunstâncias mais corriqueiras da vida.









⓿⓿⓿⓿⓿⓿ Atualização de 27/03/11:


A Folha de S. Paulo de hoje publica uma crítica de Lucas Neves sobre "The Book of Mormon", com vários detalhes (alguns muito blasfemos, devo alertar) sobre o enredo <<spoiler>>. Não leia se você não quiser saber ou se ofender:

Musical reflete acidez de "South Park"

Dupla de criadores do desenho estreia na Broadway espetáculo sobre jovens mórmons que atuam em Uganda

Autor de "Avenida Q" completa trio que aborda temas tabus como Aids, estupro e mutilação feminina


LUCAS NEVES
ENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK


A metralhadora giratória do desenho "South Park" acaba de ganhar atiradores de carne e osso. Não se engane: Kyle, Kenny e cia. continuam desfiando impropérios em suas encarnações 2D, achatadas.

O que saltou da TV é o espírito anárquico, sem papas na língua, dos diálogos e situações criados por Matt Stone e Trey Parker.

À frente de "The Book of Mormon" (o livro de Mórmon), que estreou nesta semana na Broadway com repercussão na mídia americana inferior apenas à do desafortunado "Spider-Man: Turn Off the Dark", renovam o arsenal de torpedos contra o politicamente correto.

Para contar a história de dois jovens missionários mórmons despachados para os confins de Uganda, enfileiram piadas sobre o depauperado país africano.

A livre circulação de milícias pelas ruas, o sono profundo do poder público e o atraso tecnológico daquelas bandas -uma das personagens manda mensagem para os amigos via máquina de escrever- são objeto de tiradas ácidas. Mas Stone e Parker vão bem mais longe.

Assuntos como Aids e mutilação sexual feminina circulam pelas conversas do povoado ugandense em tom de aterradora trivialidade.

Alguns portadores do vírus, inclusive, estão convictos de que podem se curar fazendo sexo com bebês. A ignorância conduz ao abjeto, ao grotesco, que desemboca no riso estupefato.

Os autores poderiam passar por ianques cruéis a tripudiar sobre a desgraça alheia. Esquivam-se da armadilha ao guardar parte considerável de sua pólvora para o "fogo amigo".

A trupe americana que tenta catequizar os africanos acha que o tal livro -escrito por Joseph Smith Jr. em 1830, a partir de placas de ouro apontadas por um anjo- guarda respostas para todas as aflições daquela terra.

SOBROU PARA DEUS


Essa ingenuidade é exposta (e devidamente ridicularizada) já de saída, quando o grupo que acolhe a dupla de Salt Lake City exibe um hino escapista cujo refrão ecoa um "vá se foder, Deus!".

É a expressão de quem sente que "lá tem Jesus que está de costas", parafraseando a canção de Chico Buarque sobre o subúrbio carioca.

Diante dos fatos, Price, o mais aplicado da dupla recém-chegada, observa, em tom desolado, que a animação "O Rei Leão" incorporou liberdades poéticas demais ao retrato do continente africano. Pede para sair.

O gordinho Cunningham, misto de Jack Black e personagem saído de comédia teen à "Superbad", divisa outra saída: interpretar de modo heterodoxo as palavras do livro sagrado para que ressoem com o rebanho local.

Pinça dali referências obtusas (e imaginárias) à Aids, às práticas sexuais com bebês e à amputação feminina. Dá à retórica mórmon algum sentido naquela latitude.

O projeto de "The Book of Mormon" existe desde 2003, quando Stone e Parker conheceram Robert Lopez, o criador do (também desbocado) musical "Avenida Q" -que já teve montagem brasileira, assinada por Charles Möeller e Claudio Botelho.

Acertada a parceria, o trio inicialmente cogitou produzir uma animação ou um filme com atores de carne e osso. Acabou se decidindo por uma montagem depois de um workshop.

No espírito boquirroto de "South Park", Lopez contou ao "New York Times" o que o atraiu no imaginário mórmon: "É uma bobajada enorme [a história da escritura do livro de Mórmon]. Mas as pessoas creem tanto nisso, e suas vidas são efetivamente melhoradas por essa fé".

Ceticismo com uma ponta de sentimento: é de um musical que se trata, afinal, e cabe saber declarar armistício.



⓿⓿⓿⓿⓿⓿ Atualização de 03/05/11:

O blog CNN Belief informa hoje que o musical "The Book of Mormon" foi indicado ao prêmio Tony (uma espécie de Oscar do teatro nos EUA) em 14 categorias, inclusive na de melhor musical, liderando as nomeações entre os espetáculos em cartaz na Broadway.

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