“Hitler – A Study in Tiranny”, de Alan Bullock (Abridged Edition, Ed. Harper Perennial, 1994) é uma excelente biografia de Adolf Hitler que contrasta com os calhamaços de Ian Kershaw e Joachim Fest sobre o mesmo Führer.
Se as suas 490 páginas não podem classificá-la exatamente como “sucinta”, o fato é que Bullock busca se concentrar – tanto quanto pode – no que se passa dentro da mente de Hitler, que ao término do livro nem parece tão pavorosa e monstruosa como somos habituados a ouvir e imaginar.
Pelo contrário, era uma mente como a de qualquer um de nós, e talvez aí resida o perigo de que a história – essa insistente – torne a se repetir.
Meu interesse particular não só em Hitler, mas sobretudo sobre toda a conjuntura em que foi possível nascer e dominar o nazismo, é tentar compreender como a natureza humana pode, por assim dizer, absorver a maldade em essência nesse nível tão degradante, aspecto em que a biografia de Bullock, se não apresenta uma conclusão definitiva, pelo menos ajuda a entender um pouco mais esse período tão obscuro do percurso humano no planeta.
A conclusão é que — contra as nossas melhores expectativas — não há nada de extraterrestre no fenômeno do nazismo.
Como estamos cansados de saber, lamentavelmente, o mal continua presente no mundo, esperando somente o momento oportuno de se manifestar.
O livro não dispensa os acontecimentos paralelos à conturbada carreira do líder nazista, mas neles não se concentra. Eles são sempre referidos como um pano de fundo para a (de)formação emocional, intelectual e política de Hitler.
Daí, talvez, venha a fluência com que se lê o livro, que, pela aridez do tema a que se propõe, era de se imaginar que fosse difícil de ler, mas o autor domina a arte da concisão sem perder a riqueza de detalhes de um período tenebroso da história da humanidade.
O seu poder de síntese é notável e a escrita é fluida.
É uma pena que ainda não tenha sido traduzido para o português, a exemplo do que já aconteceu com Kershaw e Fest (apenas para citar os biógrafos mais famosos), mas se espera que alguma editora corrija esse grave erro e preencha essa lacuna importante nas estantes e prateleiras das bibliotecas e livrarias do país.
É uma biografia altamente recomendada.
O subtítulo “Um Estudo sobre a Tirania” cai muito bem ao propósito do livro, que basicamente busca entender que infeliz coincidência cósmica foi esse processo histórico em que um homem problemático que quer se tornar um déspota ao mesmo tempo encontra um povo ansioso e disposto a entregar cegamente o seu destino a um tirano.
Muito bem dividido em capítulos que falam dos anos de formação, de espera e de tomada do poder para levar a Alemanha e o mundo à tragédia da Segunda Guerra Mundial, Bullock não se detém muito na infância de Hitler, descrevendo-o apenas como “esquisito” e “solitário”, e prefere acompanhá-lo mais de perto já em Viena, em que o testemunho de Reinhold Hanisch, uma espécie de “malandro” alemão da época que o conheceu muito bem, beira o inacreditável.
Hanisch descreve a maneira como conheceu Hitler num pensionato barato de Viena em 1909: “no primeiro dia lá, se sentou perto da cama que havia sido reservada para mim um homem que não tinha nada senão um velho par de calças – Hitler. Suas roupas tinham sido limpas de piolhos, já que havia dias que ele estava perambulando sem um teto e numa condição terrivelmente negligente” (pág. 8).
O "andarilho" Hitler tinha então 20 anos de idade e era esse homem que 30 anos depois deflagraria uma guerra mundial que mataria entre 50 e 60 milhões de pessoas.
Alguns anos depois, ele já estava familiarizado com as ideias nacionalistas e antissemitas que circulavam em Viena, provindas das mentes doentias de Georg Von Schönerer, do Partido Nacionalista Pan-Germânico, e de Karl Lueger, do Partido Social Cristão.
Aprendeu com o erro de Schönerer, que atacou a igreja católica, escrevendo depois que “a arte da liderança consiste em consolidar a atenção do povo contra um único adversário e tomar cuidado para que nada desvie essa atenção. O líder genial deve ter a habilidade de fazer com que diferentes oponentes pareçam como se eles pertencessem a uma só categoria” (p. 19).
Lueger, por sua vez, não só evitou atritos com a religião como procurou fazer dela sua aliada, recebendo o reconhecimento de Hitler, que escreveu: “Ele foi rápido em adotar todos os meios disponíveis para ganhar o apoio das instituições estabelecidas há muito tempo, assim como extrair a máxima vantagem possível desse movimento daquelas velhas fontes de poder” (p. 20).
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Hitler soldado na 1ª Guerra Mundial |
A vida do jovem Adolf Hitler combinava mais com as suas perambulações miseráveis do que com a trajetória de um herói militar, até porque foi rejeitado pelo exército austríaco (sua pátria, é sempre bom lembrar) em 5 de fevereiro de 1914, devido ao seu lastimável estado de saúde (p. 21).
Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial em julho daquele ano, já em Munique, Hitler se alista como voluntário no exército alemão e no dia 21 de outubro é enviado ao front.
A guerra serviu para fazê-lo ver algum sentido em sua vida vazia, e enquanto ela durou, ele se sentia vivo e importante para o destino alemão.
Entretanto, a surpreendente rendição alemã em 1918, esgotada que estava em seus recursos para seguir lutando, tendo escondido esse fato da população até o momento derradeiro, fez com que Hitler perdesse seu chão.
Bullock comenta assim:
“Como muitos outros membros da massa de homens desmobilizados, que agora se viam despejados no mercado de trabalho numa época de extremo desemprego, ele tinha pouca possibilidade de encontrar uma ocupação. O velho problema de como encontrar um meio de sustento, convenientemente empacotado por 4 anos, reapareceu. Caracteristicamente, Hitler virou suas costas ao problema. Afinal, o que é que ele tinha a perder no limiar de um mundo no qual ele nunca tinha encontrado um lugar? Nada. O que ele tinha a ganhar no desconforto, na confusão e desordem geral? Tudo, se tão somente ele soubesse como virar os eventos a seu favor. Com um instinto certo, ele viu no cansaço da Alemanha a oportunidade que ele vinha procurando, mas que até então tinha falhado em encontrar.” (p. 32)
Bullock nota que na reunião que selou a entrada de Hitler no então incipiente Partido dos Trabalhadores Alemães, que mais tarde se tornaria o temido Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, o Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – NSDAP, ele se encantou com a atmosfera lúgubre da sala fechada, com meia-luz de lampião de gás (p. 35), ambiente soturno em que passaria boa parte da sua vida em bunkers, sobretudo aqueles espalhados pela frente oriental da Segunda Guerra, além do último buraco debaixo da Chancelaria de Berlim onde se suicidou.
Prossegue o autor dizendo que “Hitler foi o maior demagogo da história. Aqueles que dizem ‘somente um demagogo’ falham em apreciar a natureza do poder político numa era de política de massas. Como ele próprio disse: ‘Ser líder significa ser capaz de mover as massas’” (p. 37).
Por outro lado, Hitler se cercou de uma legião de escroques medíocres e oportunistas como Göring, Hess, Rosenberg e Goebbels, cuja cobiça ele soube manipular jogando uns contra os outros a seu bel prazer, não se importando com os reais motivos que os traziam até ele, porque “ele estava preparado para ser todas as coisas para todos os homens, porque para ele todos os homens representavam apenas uma coisa: um meio de se chegar ao poder” (p. 42).
Em 1929, outro nacionalista alemão, Alfred Hugenberg, que havia feito uma fortuna com a hiperinflação do país e com isso tinha comprado um império de propaganda, jornais e agências de notícias, além da indústria do cinema, e em 1928 passara a controlar o Partido Nacional Alemão, tentou cooptar Hitler para a sua causa, mas na verdade terminou promovendo-o, tornando-o conhecido e abrindo-lhe portas a uma elite econômica que ainda era refratária ao seu extremismo.
Todos esses jogos políticos internos do partido que ajudara a fundar contribuíram para que Hitler aprendesse intuitiva e empiricamente todas as técnicas de se manipular um eleitorado, sobretudo depois da fracassada tentativa de golpe em 1923 (o putsch da cervejaria de Munique), que serviu para que ele percebesse que deveria extrair o máximo das garantias que o sistema democrático constitucional então em vigor na Alemanha podia lhe fornecer, sem negociar ou repartir poder.
Um dia ele o abocanharia só para si.
Para Adolf Hitler, o único poder que interessava era o poder total, e uma série de eventos, muitos deles produtos do acaso, lhe alçaram ao poder em 30 de janeiro de 1933.
Todas as tentativas dos líderes alemães, de Von Papen, Sleicher até Hindenburg, em manipulá-lo, foram por terra abaixo, e eles se tornaram presas do monstro que criaram.
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Hitler e Hindenburg em panfleto de campanha |
Uma vez instalado no poder, restava ao nazismo ainda dobrar a resistência do Exército alemão, a mais poderosa instituição do país que, com toda a razão, não via naquele ex-cabo austríaco alguém de confiança para dirigir a humilhada, mas ainda poderosa nação alemã.
Acontece então, o que Bullock chama de “Revolução após o Poder”, em que, a pedido dos generais, as milícias nazistas da raiz do partido são desarmadas e as suas lideranças dizimadas, na Noite dos Longos Punhais, em 30 de junho de 1934, na qual Ernst Röhm, que havia sido útil para Hitler até a chegada ao poder, é descartado junto com outros comandantes das SA (Sturmabteilung), por também ter se tornado uma ameaça ao poder total do Führer.
A partir de então, entrega o comando da economia interna a Hjalmar Schacht, com o compromisso de promover o rearmamento da Alemanha a qualquer custo, o que contribui para resolver o problema do desemprego, enquanto se dedica a manobras diplomáticas nas relações exteriores a fim de soltar o dragão do expansionismo alemão sobre os países vizinhos.
A retirada da assinatura do Tratado de Versalhes em 30 de janeiro de 1937 faz Hitler se ver como o Messias teutônico, papel que ele imaginaria estar vivendo com mais força a partir de então.
No discurso ao Reichstag ele se gaba: “Eu devo humildemente agradecer à Providência, cuja graça me habilitou, eu que fui um soldado desconhecido na guerra, a trazer a um final exitoso à luta por nossa honra e direitos como nação” (p. 197).
Esse aspecto messiânico que Hitler atribuía a si mesmo corresponde, segundo Bullock, à sua necessidade mórbida de se impor pela força, destruindo o oponente.
Talvez esteja aqui a melhor passagem do livro (capítulo 7, pp. 207-232), da qual destacamos alguns trechos:
“Hitler sempre demonstrou uma desconfiança na discussão e nas críticas. Incapaz de discutir equilibradamente desde os primeiros dias em Viena, o seu único recurso sempre foi abater o oponente a gritos. O questionamento de suas afirmações ou dos fatos mexiam com ele; a introdução dos processos intelectuais do criticismo e da análise marcavam a intrusão de elementos hostis que perturbavam o exercício de manipular as emoções. Daí o ódio de Hitler pelos intelectuais: nas massas o ‘instinto é supremo e do instinto vem a fé... enquanto o indivíduo comum e saudável instintivamente fecha as suas fileiras para formar uma comunidade do povo, os intelectuais ficam rodeando, como galinhas no terreiro. Com eles é impossível fazer história; eles não podem ser usados como elementos que dão suporte a uma comunidade’.
[...]
Um dos segredos de seu domínio sobre uma grande audiência era a sua sensibilidade instintiva ao humor da multidão, uma queda por adivinhar as paixões, os ressentimentos e anseios ocultos nas suas mentes.
Um de seus maiores críticos, Otto Strasser, escreveu: ‘Hitler responde à vibração do coração humano com a delicadeza de um sismógrafo, ou talvez de um aparelho de recepção sem fio, o que lhe capacita, com uma certeza que nenhum dom consciente poderia endossá-lo, a agir como um alto-falante proclamando os desejos mais secretos, os instintos menos admissíveis, os sofrimentos e a revolta pessoal de toda uma nação... Adolf Hitler entra numa sala. Ele fareja o ar. Por um minuto ele apalpa, sente o seu caminho, percebe a atmosfera. De repente ele explode. Suas palavras viajam como uma flecha direto ao seu alvo, ele toca cada ferida particular na sua carne, liberando o inconsciente coletivo, expressando suas mais íntimas aspirações, dizendo a eles o que eles mais querem ouvir’.
(pp. 207-208)
O capítulo 7 é o mais contundente de todo o livro, e resume bem a construção do tirano e sua imposição sobre uma nação moderna e avançada para os padrões do começo do século XX.
Mereceria uma transcrição completa, mas diante da impossibilidade de levá-la a cabo, contentemo-nos com mais alguns trechos:
Tudo isso se combina para criar uma figura da qual a melhor descrição é a famosa frase do próprio Hitler: ‘Eu sigo o caminho que a Providência dita com a segurança de um sonâmbulo’. Hermann Rauschning escreve: ‘Dostoievsky podia bem tê-lo inventado, com o mórbido desarranjo e a pseudocriatividade de sua histeria’. Com Hitler, de fato, qualquer um está inconfortavelmente consciente de nunca estar longe do reino do irracional. (p. 209)
[...]
Uma das táticas mais habituais de Hitler era se colocar na defensiva para acusar aqueles que se opunham a ele de agressão e malícia, passando rapidamente de um tom de inocência ultrajada aos mais completos trovões de indignação moral. Era sempre o outro lado que devia ser culpado, e ele denunciava cada um deles: os comunistas, os judeus, o governo republicano, ou os tchecos, os poloneses e os bolcheviques, pelo seu comportamento “intolerável” que o forçaram a tomar medidas drásticas em legítima defesa. (p. 210)
[...]
Até os últimos dias de sua vida ele reteve um dom incomum de magnetismo pessoal que desafia a análise, mas sobre o qual muitos que o encontraram tentaram descrever. Isso estava ligado com o poder curioso de seus olhos, os quais são persistentemente descritos como tendo algum tipo de qualidade hipnótica. Similarmente, quando ele queria assustar ou chocar, ele se mostrava um mestre da linguagem brutal e ameaçadora. (pp. 210-211)
[...]
Hitler, de fato, era um ator consumado, com a facilidade do ator e do orador de se absorver a si próprio num papel e se convencer da verdade daquilo que ele estava dizendo no momento em que o dizia. Nos seus primeiros anos ele era frequentemente constrangedor e inconvincente, mas com a prática o personagem se tornou uma segunda natureza para ele, e com o imenso prestígio do sucesso no seu rastro, e os recursos de um Estado poderoso sob o seu comando, havia muito pouca gente capaz de resistir à impressão dos olhos perfurantes, da pose napoleônica e da personalidade “histórica”. (p. 211)
[...]
Ao fazer uso do seu poder formidável Hitler tinha uma vantagem suprema e, por sorte, rara: ele não tinha nenhum escrúpulo ou inibição. Ele era um homem sem raízes ou lealdades, e ele não sentia respeito por nenhum deus ou homem. Através da sua carreira ele se mostrou preparado a aproveitar qualquer vantagem que podia ser ganha através da mentira, astúcia, traição e falta de escrúpulos. Ele exigiu o sacrifício de milhões de vidas alemãs em prol da sagrada causa da Alemanha, mas no último ano da guerra estava pronto a destruir a Alemanha mais do que renunciar ao poder ou admitir a derrota. (p. 213)
[...]
Havia pouca cerimônia sobre a vida no Berghof [casa de veraneio de Hitler nas montanhas]. Hitler não era fã de formalidades nem de grandes ocasiões sociais. Muito embora ele tenha vivido com considerável luxo, ele era indiferente às roupas que ele usava, comia muito pouco, nunca tocava carne, nem fumava ou bebia. (p. 218)
Ainda no capítulo 7, Alan Bullock traça um perfil do pensamento religioso do Führer (p. 219):
Hitler tinha sido criado como católico e era muito impressionado pela organização e pelo poder da igreja. Pelo clero protestante, ele sentia apenas desprezo: “Eles são pessoinhas insignificantes, submissas como cães, e eles suam constrangidamente quando você fala com eles. Eles não tem uma religião que eles podem levar a sério, nem uma grande posição a defender como Roma”. Era a “grande posição” da Igreja que ele respeitava; em relação ao seu ensino ele mostrava a mais aguda hostilidade. Aos olhos de Hitler o cristianismo era uma religião adequada somente para escravos; ele detestava a sua ética em particular. O seu ensino, ele declarou, era uma rebelião contra a lei natural da seleção pela luta e da sobrevivência do mais forte. “Levado ao seu extremo lógico, o cristianismo significaria o cultivo sistemático do fracasso humano”. Devido a considerações de ordem política, ele reprimiu o seu anticlericalismo, percebendo claramente os perigos de acuar a igreja mediante a perseguição. Uma vez acabada a guerra, conforme prometeu a si mesmo, ele arrancaria as raízes e destruiria a influência das igrejas cristãs, mas até então ele ficaria circunspecto.
Esta constatação leva Bullock a investigar o darwinismo social de Hitler (pp. 224-225): “o fundamento das crenças políticas de Hitler era um darwinismo cruel. ‘O homem se tornou grande através da luta... qualquer que seja a meta que o homem tenha atingido, isso se deve à sua originalidade somada à sua brutalidade... A vida toda se resume em três teses: a luta é a mãe de todas as coisas, a virtude reside no sangue, e a liderança é primária e decisiva’. Disso se segue que ‘através de todos os séculos a força e o poder são os fatores determinantes... Somente a força comanda. A força é a primeira lei’. Força foi mais do que um fator decisivo em qualquer situação; era a força que sozinha criava o direito. ‘Sempre antes de Deus e do mundo, o mais forte tem o direito de levar a cabo aquilo que ele quiser’.”
Sobre a misteriosa vida sexual de Hitler, Bullock pouco investiga, mas às pp. 220-221 levanta as hipóteses de que ele se sentia atraído por mulheres, mas era incapaz de ter relações íntimas com ela por uma das duas razões mais plausíveis: a primeira era que ele sofria das sequelas de uma sífilis mal curada, e a segunda teoria era a de que ele era impotente.
De qualquer maneira, o autor lembra que “subestimar Hitler como um político, dispensá-lo como um demagogo ignorante, significa cometer precisamente o mesmo erro que tantos alemães cometeram no começo dos anos 1930” (p. 231). E arremata:
“Este não foi um erro cometido por aqueles que trabalharam próximos a ele. Seja lá o que for que eles sentissem sobre ele, não importando o quanto eles discordassem da correção dessa ou daquela decisão, eles nunca subestimaram a ascendência que ele era capaz de estabelecer sobre todos que estavam em contato frequente com ele. Generais que chegavam ao seu quartel-general determinados a insistir no desespero da situação não somente falhavam em fazer qualquer protesto quando ficavam face a face com o Führer, como também voltavam movidos no seu julgamento e meio convencidos de que ele estava certo afinal.
O teste final de sua ascendência pertence aos últimos estágios de sua história, quando, com o prestígio do sucesso destruído, as cidades alemãs reduzidas a ruínas, e a maior parte do país ocupado, essa figura, a qual o seu povo não mais via ou ouvia, foi ainda capaz de prolongar a guerra muito além do ponto de desespero até que o inimigo estivesse nas ruas de Berlim e ele mesmo decidisse quebrar o encanto. Mas os eventos daqueles primeiros anos não podem ser compreendidos a não ser que se reconheça que, ainda que muito em retrospecto Hitler possa parecer ter diminuída a sua estatura de grandeza, nos anos de 1938 a 1941, no auge de seu sucesso, ele obteve êxito em persuadir uma grande parte da nação alemã de que nele eles tinham encontrado um líder que tinha mais do que meras qualidades humanas, um homem genial levantado pela Providência para liderá-los até a Terra Prometida.
O capítulo 7 ainda está na metade do livro, mas ele o resume de maneira magistral, mostra como aos poucos “o ser humano desaparece, absorvido na figura histórica do Führer. Somente nos últimos dois anos de sua vida, à medida em que a mágica começa a falhar, volta a ser possível descobrir de novo a criatura mortal e falível por trás [do mito]” (p. 321). “A imagem que ele tinha criado de si mesmo tomou posse dele até que ele se tornou a última vítima da sua própria propaganda” (p. 393).
Bullock conclui então:
Nos últimos anos de sua vida, Hitler deliberadamente se recusou a exercitar os extraordinários poderes que ele tinha anteriormente mostrado como um orador de massas. Goebbels fez tudo que ele podia para vencer a relutância do Führer. A desculpa de Hitler era sempre a mesma: ele estava esperando por um sucesso militar. Mas de novo alguém pode suspeitar de uma razão mais profunda. Os dons de Hitler como orador sempre dependeram de seu instinto de perceber intuitivamente o que estava nas mentes de sua audiência. Ele não queria mais saber o que estava na mente do povo alemão; precisava preservar suas ilusões a qualquer custo. Até que ele pudesse forçar os eventos a se conformarem ao padrão que ele havia procurado impor, ele se isolou no seu quartel-general. (pp. 423-424).
Felizmente, a humanidade agradece até hoje porque os dias que atenderiam ao padrão hitleriano jamais chegaram.
No curso de seu livro, entretanto, existe um personagem real que faz o papel de bufão da corte: Mussolini.
O líder fascista italiano permeia toda a biografia de Hitler fazendo o papel patético de uma eminência parda e inútil numa comédia pastelão que às vezes emerge do mais profundo poço da tragédia humana.
Talvez seja apenas mais uma demonstração do antigo preconceito anglo-saxão contra os latinos em geral, mas, para Bullock, Mussolini estava sempre atrasado em relação aos fatos que o atropelavam.
Nem o bonde andando ele conseguia pegar.
Mesmo quando se encontrava com Hitler decidido a reclamar da arrogância alemã, era de tal maneira “engambelado” pela verborragia do Führer que saía das reuniões da maneira como havia entrado: calado, com o rabo entre as pernas e decepcionado com a sua covardia.
Foi, de certa forma, um dos grandes responsáveis pela derrota alemã na frente russa, ao ter invadido os Bálcãs por mera birra contra as manobras de Hitler, das quais Il Duce era sempre o último a saber.
A intempestividade italiana obrigou Hitler a deslocar importantes divisões da União Soviética para minimizar os danos causados por Mussolini, e isto num momento crucial da guerra, o que terminou causando às forças alemãs um prejuízo fatal e irrecuperável no front oriental.
A derrocada final da ópera bufa de Mussolini é percebida pelo autor como um claro contraste entre o nazismo alemão e o fascismo italiano.
Enquanto no primeiro Hitler não só se impôs como absorveu na sua figura ditatorial todas as instituições do Estado, no último ainda havia instituições que funcionavam e partilhavam o poder, como o rei Vittorio Emmanuele III e o Grande Conselho Fascista, responsáveis - em 25 de julho de 1943 - pela queda e prisão de Mussolini, algo impensável na Alemanha nazista.
Sobre esse acontecimento histórico, Bullock observa (pp. 433-434):
Após a queda de Mussolini, Hitler se congratulou consigo mesmo por não existir monarquia na Alemanha que pudesse ser usada para sacá-lo do governo. O processo completo de nazificação ao qual ele tinha submetido as instituições da Alemanha, desde o Reichstag [legislativo] até as Cortes Judiciárias, dos sindicatos às universidades, tinha destruído, ele acreditava, as bases para uma oposição organizada. Entretanto, duas instituições na Alemanha ainda retinham alguma independência.
A primeira eram as Igrejas. Entre as mais corajosas demonstrações de oposição durante a guerra estavam os sermões pregados pelo bispo católico de Münster e pelo pastor protestante, Dr. Niemöller. Nem a igreja católica nem os evangélicos, entretanto, como instituições, avaliaram como possível tomar uma atitude de oposição aberta ao regime. Ainda que sem o apoio de alguma instituição, qualquer oposição parecia estar condenada a permanecer na desesperada posição de indivíduos arremessando a sua força contra o poder organizado do Estado. Era natural, portanto, que aqueles poucos alemães que se aventuraram em pensar na tomada de ação contra Hitler continuavam a olhar com expectação para o Exército, a única outra instituição na Alemanha que ainda possuía uma certa medida de autoridade independente, se os seus líderes pudessem ser persuadidos a afirmá-la, e era também a única instituição que comandava as forças armadas que eram necessárias para derrubar o regime.
O final patético de Hitler é marcado pelo suicídio conjunto dele e de sua amante (feita esposa no último dia de vida) Eva Braun, e pelo sacrifício da cadela pastora-alemã Biondi, os únicos seres vivos em que ele podia confiar, conforme declarou citando uma frase que só agora eu confesso que soube que foi proferida originalmente por Frederico, O Grande: “Quanto mais conheço os homens, mais eu prefiro os cachorros”.
Registre-se que os cães não têm nada a ver com a tragédia perpetrada por Hitler, essa figura enigmática que Bullock tenta descrever através da citação do general Halder, que talvez seja realmente a sua melhor definição (pp. 463-464): “Mesmo no auge do seu poder, não havia para ele nenhuma Alemanha, nem havia soldados alemães pelos quais ele se sentisse pessoalmente responsável; para ele havia – primeiramente de maneira subconsciente, mas nos últimos anos completamente consciente – apenas uma única grandeza, uma grandeza que dominava a sua vida e à qual o seu gênio maligno sacrificou tudo – o seu próprio Ego”.
Pois foi a esse Ego que milhões de alemães e dezenas de milhões de outros povos tiveram suas vidas sacrificadas em vão.
Que – pelo menos – isto sirva para que semelhante catástrofe jamais se repita.
Mesmo assim, esse desejo sempre será muito pouco diante de tamanha atrocidade.
Tragédia que, por sinal, foi perpetrada em nome do Nada, já que nenhuma contribuição deixou o nazismo à História da humanidade, como afinal conclui Bullock (p. 487):
As grandes revoluções do passado, seja lá qual fosse o seu destino último, foram identificadas com a liberação de certas ideias poderosas: consciência individual, liberdade, igualdade, autonomia nacional, justiça social. O nacional-socialismo não produziu nada. Hitler constantemente exaltava a força sobre o poder de ideias e se deliciava em provar que os homens eram governados pela cobiça, pelo medo e suas paixões mais baixas. O grande tema da revolução nazista era a dominação, travestida como doutrina da raça, e, falhando isso, uma “destruição vingativa”. Esse é o seu vazio, essa falta de qualquer coisa que justificasse o sofrimento que ele causou, mais do que a sua própria vontade monstruosa e ingovernável que faz Hitler ser uma figura igualmente tão repelente e tão estéril.
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