terça-feira, 31 de janeiro de 2012

De Cat Stevens a Yusuf Islam

Existem histórias de vida pouco conhecidas das gerações mais jovens que parecem vir da ficção, como a do garoto britânico Stephen Demetre Gergiou, nascido em Londres em 1948, filho de pai greco-cipriota e mãe sueca, que mais tarde seria conhecido como cantor e compositor brilhante pelo nome artístico de Cat Stevens. 

Naquele caldeirão efervescente de grandes talentos da virada dos anos 60 para os 70, Cat Stevens era um dos gênios, compondo e cantando músicas belíssimas que são conhecidas até hoje. 

Em 1975, chegou a morar por três meses no Rio de Janeiro, e o Brasil era um lugar constante em suas viagens para se refugiar da fama e se inspirar no país (e na sua música) para recarregar o seu excepcional talento. 

Se a história tivesse parado por aí, já seria o suficiente para se apreciar uma das maiores obras musicais do século XX. Só que em 1977 Cat Stevens se converteu ao islamismo e abandonou a carreira. 

Isto numa época em que ser muçulmano era visto como algo estranho para um cristão ocidental, mas não havia toda essa aura de espanto pós-Bin Laden. 

Afinal, o supercampeão boxeador norteamericano Cassius Clay também havia se convertido ao Islã em 1975, e usava o nome Muhammad Ali desde 1964, pelo qual se tornou mais conhecido, mas isso era visto como um fenômeno típico da revolta afroamericana contra a secular repressão no país. 

Além disso, era comum ver ícones pop flertando com religiões exóticas para os ocidentais (da época) como budismo e hinduísmo. 

Entretanto, mesmo numa época recém-saída da sociedade alternativa dos anos 60, soava estranho que um tremendo talento inglês com essa história de vida se tornasse muçulmano da noite para o dia. 

Curiosamente, tudo teria começado em 1976 na praia de Malibu, na California (EUA), quando Cat Stevens teria ficado a um fio de morrer afogado durante um banho de mar, e teria prometido a Deus que - se Ele o salvasse - iria servi-lo daí em diante. 

Na sua narrativa, uma grande onda teria aparecido "do nada" em seguida e o levado até a praia, assim meio o profeta Jonas sendo expelido pelo grande peixe. 

A partir de então, procurou abrigo no budismo, numerologia, I Ching, etc., até que numa viagem de férias ao Marrocos, logo depois de ter visitado Ibiza, se encantou com o Aḏhān, o canto ritual muçulmano que convoca às orações diárias da religião. 

Chamou-lhe a atenção que - pela primeira vez na vida, segundo ele disse - ouvia uma música cantada diretamente para Deus. 

Em 1977 Cat Stevens se converteria oficialmente ao Islã e a partir de 1978 adotou o nome árabe de Yusuf Islam ("Yusuf" é uma das transliterações arábicas do nome "José"), o que lhe rendeu inclusive uma negativa de entrada nos Estados Unidos em 2004, provavelmente por outro Yusuf ou Youssef (ou outra forma de escrever o nome) estar na lista negra dos terroristas procurados pelas autoridades norteamericanas, problema que depois foi resolvido, não sem alguns incidentes diplomáticos com o Reino Unido. 

Apesar de seu líder espiritual na época da conversão (o imã da mesquita que frequentava) ter lhe dito que não havia problema em prosseguir na carreira musical desde que observasse os valores morais da religião, Yusuf Islam, com aquele rigor, determinação e desejo de romper com o passado, típicos dos novos convertidos, preferiu abandoná-la. 

Mesmo assim, seus álbuns continuaram vendendo aos milhões pelas décadas seguintes. Estimativas de 2007 davam conta de que ele continuava recebendo cerca de US$ 1,5 milhão ao ano em direitos autorais, isto porque em 2006 ele havia lançado um novo disco depois de décadas de ausência, mas sempre com o supremo cuidado de adequar sua nova música aos preceitos islâmicos. 

De qualquer maneira, seria praticamente impossível suplantar a qualidade de sua música anterior, fruto de um talento raríssimo que soube combinar, ainda muito jovem, belas letras com melodias da melhor qualidade. 

Sua canção mais conhecida talvez seja "Wild World", uma das mais belas composições musicais do gênero humano, que todo mundo conhece, mas pouca gente hoje se lembra que é dele. 

Abaixo, segue um vídeo de "Wild World" numa apresentação em 1971, em seguida outra mais recente da mesma canção com trechos em zulu, já como Yusuf Islam. 

Nesse segundo vídeo, afine seus ouvidos e perceba a finíssima delicadeza da melodia realçada pelo simples e belíssimo piano ao fundo (a partir de 1m30s). Coisa de gênio. 

Depois, mais algumas belas composições do insuperável Cat Stevens, obras-primas como "Father and Son", "Morning Has Broken", "Where do the Children Play" e "The First Cut is the Deepest", só pra citar algumas. 

Delicie-se:










segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O centenário de Francis Schaeffer

Se vivo fosse, o teólogo Francis Schaeffer completaria hoje exatos 100 anos de idade. Nascido no bairro de Germantown na Philadelphia, Pennsylvania, nos Estados Unidos, no dia 30 de janeiro de 1912, e falecido aos 72 anos de idade no dia 15 de maio de 1984, Schaeffer é pouco conhecido das gerações mais jovens de cristãos, mas até a sua morte exerceu enorme influência no cristianismo em todo o mundo, influência esta mais percebida entre os de origem protestante, mas que também foi sentida em menor escala nos outros ramos da religião. Em 1955, juntamente com sua esposa Edith, fundou a comunidade L'Abri ("o abrigo" em francês) na Suíça, instituição hoje presente em todo o mundo, inclusive no Brasil, em Belo Horizonte (MG). O L'Abri serviu para a sua época inicial, principalmente, como um ponto de encontro e discussão para jovens e líderes de todo o mundo que enfrentavam a ansiedade típica de seu tempo (do nosso também, é forçoso reconhecer) e buscavam respostas para conciliar a sua fé com os parâmetros relativistas da modernidade (com o perdão da aparente contradição no termo, já que parâmetros deveriam ser minimamente estáticos ou "absolutos", mas a pós-modernidade impõe parâmetros que mal duram um ano, ou um mês às vezes). Francis Schaeffer se viu, então, de certa maneira compelido a orquestrar uma reação cristã de raiz protestante às muitas influências que ameaçavam solapar a fé de tanta gente. Para atingir este objetivo, trabalhou basicamente em duas áreas principais: a apologética e a política. Na primeira, salientou a necessidade de se debater de maneira direta e contundente quando se tratava de defesa da fé. Na segunda, incentivou a participação política maciça dos cristãos para que assim influenciassem os destinos de sua nação e do mundo em geral. Seu livro "Um Manifesto Cristão" de 1981 era uma clara referência, já no título, ao Manifesto Comunista de 1848 e ao Manifesto Humanista de 1933 e 1973. O subtítulo da edição americana era suficientemente claro: "A crise moral da América e o que os cristãos devem fazer". Os títulos de outros livros seus, como "A Morte da Razão", "O Deus que se Revela", "O Deus que Intervém" e "Como Viveremos", revelam por si só como ele não se intimidava ao enfrentar as angústias de seu tempo. Talvez no tema do aborto se sinta a maior influência que ele teve em outras searas cristãs, como a Igreja Católica, já que advogava por uma militância anti-aborto tão ativa como a dos partidos políticos e movimentos feministas. Como você percebe, qualquer semelhança com o tema aborto levantado por religiosos nas últimas eleições presidenciais brasileiras não é mera coincidência, ainda que quase nenhum deles (provavelmente nenhum) soubesse que foi Francis Schaeffer que deu o pontapé inicial no jogo político dos evangélicos fundamentalistas, primeiro em seu país natal, e agora em todo o mundo. Por isso mesmo, ele é muito criticado por ter sido o precursor e incentivador desse movimento, sobretudo nos Estados Unidos, onde o Partido Republicano é dirigido pelo conservadorismo evangélico local. Muito provavelmente, Francis Schaeffer não tinha ideia de onde o seu ativismo político-religioso poderia desembocar, mas o convívio muito próximo com a direita fundamentalista norteamericana levou com que seu filho Frank Schaeffer, que havia participado de todas as iniciativas políticas de Francis, após a morte deste se afastasse do protestantismo e hoje ele professa a fé ortodoxa grega, além de combater as ideias dos políticos religiosos que beberam na fonte de seu pai. Frank escreveu inclusive uma espécie de autobiografia dessa época, intitulado "Crazy for God" ("Louco por Deus"), mas dando uma conotação diferente à frase do que aquela que você talvez imagine. De qualquer maneira, Francis Schaeffer deixou um legado muito importante para a Igreja que talvez ainda não tenha sido compreendido em toda a sua extensão e nas amplas teias de suas implicações. Vivemos tempos muito conturbados no último século, nos quais ainda estamos emaranhados, e talvez um dia possamos avaliar melhor a sua obra, inclusive naquilo que a acusam de politização excessiva ou extremismo conservador. Algumas questões poderiam ser levantadas desde já. Até que ponto, por exemplo, essa ênfase excessiva na política pode ser culpada pela bandalheira da prosperidade e do materialismo que vem assolando o meio evangélico nas últimas décadas? Em que medida o foco cristão na campanha ideológica pela normatização de preceitos morais pode ter descaracterizado, sublimado ou - pior - substituído a pregação pura e simples do evangelho da cruz de Cristo? Entretanto, se este blog aqui existe (como tantos outros ditos "apologéticos", diga-se de passagem) não deixa de ter o seu 0,01% de influência de Francis Schaeffer, já que o que procuramos fazer, de maneira equilibrada, responsável e descontraída, é defender a fé cristã, mas sem desprezar ou desrespeitar ninguém, na medida do possível, é claro, já que não somos perfeitos e nem sempre aquilo que se escreve é entendido da maneira correta, aquela pretendida pelo emissor da mensagem. Talvez tenha sido este o caso de Francis Schaeffer. Quem pode garantir o contrário? Apesar da data estar passando em branco no Brasil (ah! estava até agora!)- nem a editora que publica seus livros por aqui aproveitou a efeméride -, e com pouca repercussão pelo mundo afora, parabéns pelo centenário, Francis!






Governo de SP condenado por racismo em livro didático

Essa história é uma daquelas que - infelizmente - merece ser divulgada para que se perceba a terrível sutileza do racismo, e como ele consegue se perpetuar mediante a ideologia ensinada às crianças, penetrando subrepticiamente nas mentes dos baixinhos e se manifestando das maneiras mais inesperadas, como no caso noticiado pelo Brasil247 (vide abaixo). Permito-me discordar apenas do título da manchete. Ainda que tenha muitas discordâncias com o estilo Geraldo Alckmin de governar, não acho que ele seja pessoalmente responsável pelo absurdo cometido, como a manchete dá a entender, pois certamente nem sabia do que estava escrito no livro didático. Isso deve ser obra de mais um daqueles inúmeros assessores super úteis, pagos a peso de ouro, que encomendam coisas sabe-se lá a quem e dá nisso. Aí, sim, no quesito "gestão", em pelo menos saber escolher as pessoas certas para os postos-chave, o governador é responsável:

Governo Alckmin é condenado por racismo

Material distribuído por professora da rede pública a alunos associava a cor negra ao demônio; indenização será de R$ 54 mil à família que se sentiu atingida

Fernando Porfírio _247 - O governo paulista foi condenado por disseminar o medo e a discriminação racial dentro de sala de aula. A decisão é do Tribunal de Justiça que deu uma “dura” no poder público e condenou o Estado a pagar indenização de R$ 54 mil a uma família negra. De acordo com a corte de Justiça, a escola deve ser um ambiente de pluralidade e não de intolerância racial.

O Estado quedou-se calado e não recorreu da decisão como é comum em processos sobre dano moral. O juiz Marcos de Lima Porta, da 5ª Vara da Fazenda Pública, a quem cabe efetivar a decisão judicial e garantir o pagamento da indenização, deu prazo até 5 de abril para que o Estado dê início à execução da sentença.

O caso ocorreu na capital do Estado mais rico da Federação e num país que preza o Estado Democrático de Direito instituído há quase 24 anos pela Constituição Federal de 1988. Uma professora da 2ª série do ensino fundamental, de uma escola estadual pública, distribuiu material pedagógico supostamente discriminatório em relação aos negros.

De acordo com a decisão, a linguagem e conteúdo usados no texto são de discriminatórias e de mau gosto. Na redação – com o título “Uma família diferente” – lê-se: Era uma vez uma família que existia lá no céu. O pai era o sol, a mãe era a lua e os filhinhos eram as estrelas. Os avós eram os cometas e o irmão mais velho era o planeta terra. Um dia apareceu um demônio que era o buraco negro. O sol e as estrelinhas pegaram o buraco negro e bateram, bateram nele. O buraco negro foi embora e a família viveu feliz.

O exercício de sala de aula mandava o aluno criar um novo texto e inventar uma família, além de desenhar essa “família diferente”. Um dos textos apresentados ao processo foi escrito pela aluna Bianca, de sete anos. Chamava-se “Uma Família colorida” e foi assim descrito:

“Era uma vez uma família colorida. A mãe era a vermelha, o pai era o azul e os filhinhos eram o rosa. Havia um homem mau que era o preto. Um dia, o preto decidiu ir lá na casa colorida.Quando chegou lá, ele tentou roubar os rosinhas, mas aí apareceu o poderoso azul e chamou a família inteira para ajudar a bater no preto. O preto disse: - Não me batam, eu juro que nunca mais vou me atrever a colocar os pés aqui. Eu juro. E assim o azul soltou o preto e a família viveu feliz para sempre”.

A indenização, que terá de sair dos cofres públicos, havia sido estabelecida na primeira instância em R$ 10,2 mil para os pais do garoto e de R$ 5,1 mil para a criança, foi reformada. Por entender que o fato era “absolutamente grave”, o Tribunal paulista aumentou o valor do dano moral para R$ 54 mil – sendo R$ 27 mil para os pais e o mesmo montante para a criança.

De acordo com a 7ª Câmara de Direito Público, no caso levado ao Judiciário, o Estado paulista afrontou o princípio constitucional de repúdio ao racismo, de eliminação da discriminação racial, além de malferir os princípios constitucionais da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

“Sem qualquer juízo sobre a existência de dolo ou má-fé, custa a crer que educadores do Estado de São Paulo, a quem se encarrega da formação espiritual e ética de milhares de crianças e futuros cidadãos, tenham permitido que se fizesse circular no ambiente pedagógico, que deve ser de promoção da igualdade e da dignidade humana, material de clara natureza preconceituosa, de modo a induzir, como induziu, basta ver o texto da pequena Bianca o medo e a discriminação em relação aos negros, reforçando, ainda mais, o sentimento de exclusão em relação aos diferentes”, afirmou o relator do recurso, desembargador Magalhães Coelho.

Segundo o relator, a discriminação racial está latente, “invisível muitas vezes aos olhares menos críticos e sensíveis”. De acordo com o desembargador Magalhães Coelho, o racismo está, sobretudo, na imagem estereotipada do negro na literatura escolar, onde não é cidadão, não tem história, nem heróis. Para o relator, ao contrário, é mau, violento, criminoso e está sempre em situações subalternas.

“Não é por outra razão que o texto referido nos autos induz as crianças, inocentes que são, à reprodução do discurso e das práticas discriminatórias”, afirmou Magalhães Coelho. “Não é a toa que o céu tem o sol, a lua, as estrelas e o buraco negro, que é o vilão da narrativa, nem que há “azuis poderosos”, “rosas delicados” e “pretos” agressores e ladrões”, completou.

O desembargador destacou que existe um passado no país que não é valorizado, que não está nos livros e, muito menos, se aprende nas escolas.

“Antes ao contrário, a pretexto de uma certa “democracia racial”, esconde-se a realidade cruel da discriminação, tão velada quanto violenta”, disse. Segundo Magalhães Coelho, na abstração dos conceitos, o negro, o preto, o judeu, o árabe, o nordestino são apenas adjetivos qualificativos da raça, cor ou região, sem qualquer conotação pejorativa.

“Há na ideologia dominante, falada pelo direito e seus agentes, uma enorme dificuldade em se admitir que há no Brasil, sim, resquícios de uma sociedade escravocrata e racista, cuja raiz se encontra nos processos históricos de exploração econômica, cujas estratégias de dominação incluem a supressão da história das classes oprimidas, na qual estão a maioria esmagadora dos negros brasileiros”, reconheceu e concluiu o desembargador.






domingo, 29 de janeiro de 2012

Dawkins não quer templo ateu mas topa ser papa



Explodiu como uma bomba criacionista no meio ateu a notícia divulgada aqui no blog de que o filósofo suíço Alain de Botton está gastando os tubos no projeto de construção de um templo ateu em Londres, capital do Reino Unido, que seria o primeiro de várias catedrais ateias espalhadas pelas cidades mais importantes do planeta. O jornal australiano The Sidney Morning Herald informa que que o militante ateu britânico Richard Dawkins não ficou nem um pouco contente com o plano do seu colega suíço, principalmente porque Alain de Botton criticou aquilo que ele chama de "abordagem agressiva e destrutiva" de Dawkins. Veja, amigo ateu, não são só os religiosos que consideram Dawkins "agressivo" e "destrutivo". O militante britânico, que parece gostar do papel de "papa ateu" nas horas vagas, decidindo o que é certo e errado na sua seara (e na dos outros também), replicou que considera a ideia de um templo ateísta como uma contradição em termos, além de criticar o dinheiro - a seu ver - "desperdiçado" no projeto: "Ateus não precisam de templos [...] eu acho que há coisas melhores onde se gastar essa soma de dinheiro. Se você quiser gastar dinheiro com o ateísmo, você poderia melhorar a educação secular e construir escolas não-confessionais nas quais se ensine o pensamento crítico, cético e racional". Pelo menos a controvérsia serviu para o sumidão Dawkins voltar a aparecer na mídia de outra maneira que não mediante os epítetos de "fujão" e "covarde" por se recusar terminantemente a debater com o apologeta cristão William L. Craig (conheça mais essa polêmica clicando aqui).




Causos bancários



"Causos" antigos que circulam entre ex-funcionários do Banco do Brasil, cujas frases são de vários autores anônimos, e também não se conhece quem fez a compilação original. De qualquer maneira, merecem ser divulgados para que mais pessoas saibam como era o jargão bancário de algumas décadas atrás, numa época em que ainda se datilografava ou preenchia extratos de conta-corrente a mão. Aliás, também como ex-funcionário do BB, eu preciso localizar as anotações em que foram compiladas as frases "antalógicas" de uma ex-chefe, a precursora da Magda do "Sai de Baixo", e também registrá-las para a posteridade. Garantia de boas risadas:



Há muito tempo, quando o Banco do Brasil era considerado o maior banco rural do mundo, mantinha em sua Carteira Agrícola um quadro de avaliadores (também conhecidos por "fiscais") que eram pessoas com conhecimentos na área, contratadas para verificar "in loco" se os pedidos de financiamento estavam em ordem, etc, etc.

Ocorre que nem sempre eram pessoas com bom nível de escolaridade. O que valia era o conhecimento prático. Daí nos relatórios constarem algumas "batatadas" que alguns gaiatos, como não poderia deixar de ser, anotaram para gáudio de todos nós:

- "O sol castigou o mandiocal. Se não fosse esse gigante astro, as safras seriam de acordo com as chuvas que não vieram".

- "Mutuário triste e solitário pelo abandono da mulher não pode produzir".

- "Acho bom o Banco suspender o negócio do cliente para não ter aborrecimentos futuros".

- "Vistoria perigosa. As chuvas pluviais da região inundaram o percurso, que foi todo feito a muito custo".

- "Mutuário faleceu. Viúva continua com o negócio aberto".

- "O contrato permanece na mesma, isto é, faltando fazer as cercas que ainda não ficaram prontas".

- "Foi a vistoria feita a lombo de burro com quase 8 km".

- "A máquina elétrica financiada era toda manual e velha".

- "Financiado executou trabalho braçalmente e animalmente".

- "O curral todo feito a capricho, bem parecendo um salão de baile a fantasia".

- "Visitamos o açude nos fundos da fazenda e depois de longos e demorados estudos constatamos que o mesmo estava vazio".

- "Os anexos seguem em separado".

- "A lavoura nada produziu. Mutuário fugiu montado na garantia subsidiária".

- "Era uma ribanceira tão ribanceada que se estivesse chovendo e eu andasse a cavalo e o cavalo escorregasse, adeus fiscal!".

- "Tendo em vista que o mutuário adquiriu aparelhagem para inseminação artificial e que um dos touros holandeses morreu, sugerimos que se fizesse o treinamento de uma pessoa para tal função".

- "Assunto: Cobra. Comunico que faltei ao expediente do dia 14 em virtude de ter sido mordido pela epigrafada".



sábado, 28 de janeiro de 2012

TCU multa em R$ 100 mil e condena Sonia Hernandes a devolver R$ 785 mil aos cofres públicos

Parece que a batata está assando na igreja renascer com a condenação que o Tribunal de Contas da União aplicou à bispa Sonia Hernandes, esposa do "apóstolo" Estevam Hernandes, negando provimento - em julgamento realizado no último dia 24 de janeiro de 2012 - ao recurso que ela havia impetrado contra decisão anterior (de abril de 2011) que já a havia sentenciado a devolver R$ 785.000,00 (setecentos e oitenta e cinco mil reais), além de pagar multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais) por não ter comprovado a efetiva aplicação de recursos federais obtidos através do FNDE - Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, que foram repassados pelo Ministério da Educação à Fundação Renascer entre 2003 e 2004, então dirigida pela bispa em questão. Pelo contrato, a verba pública deveria ter sido aplicada na alfabetização de 8.000 jovens e adultos. Segundo o TCU, não há qualquer prova concreta de que o valor destinado à Fundação Renascer tenha sido efetivamente aplicado para esse fim, e o valor teria sido (estranha e) integralmente sacado à vista na boca do caixa, o que levou o Tribunal a instaurar o competente procedimento administrativo visando a recuperação do dinheiro supostamente desviado. Além disso, o Ministério Público Federal vem buscando, desde 2010, a responsabilização criminal tanto da bispa Sonia como dos demais diretores da Fundação Renascer. A pendenga teria sido, provavelmente, uma das razões que levaram o bispo Zé Bruno a se afastar da igreja renascer e fundar a sua própria denominação, já que consta a assinatura dele nos convênios firmados em 2003 e 2004, época em que tanto Estevam como Sonia estavam ausentes e ele assinou como vice-presidente e, lógico, representante substituto dos manda-chuvas da instituição. Como o julgamento do processo (que tem o nº 007.494/2010-6 no TCU) é muito recente, o Acórdão (de nº 209/2012) que confirmou a sentença anterior ainda não foi publicado, mas no acórdão anterior, de nº 2573/2011 (disponível na íntegra no site do TCU), se pode obter mais detalhes de tudo o que está envolvido nessa polêmica. Abaixo, transcrevemos apenas o voto do Relator do caso, Dr. Aroldo Cedraz, que finaliza o Acórdão:



A presente tomada de contas especial foi instaurada pelo FNDE em decorrência da inépcia da prestação de contas de convênio firmado com a Fundação Renascer/SP para comprovar a correta aplicação de R$ 785.663,95 transferidos para ações de alfabetização de jovens e adultos em São Paulo/SP, uma vez que:

a) foram realizados saques em espécie na conta corrente do convênio, sem identificação do destinatário dos recursos;

b) a documentação apresentada era insuficiente para comprovar o nexo entre o desembolso de valores e as despesas realizadas, haja vista que somente foi apresentada relação de nomes dos alfabetizadores e coordenadores e respectivos pagamentos supostamente realizados, sem nenhum documento comprobatório, além de não terem sido encaminhadas notas fiscais dos materiais adquiridos, recibos dos alfabetizadores referentes às bolsas e aos vales-transportes recebidos e folhas de frequência dos alunos alfabetizados.

2. Inicialmente, foram citados a Fundação Renascer/SP e seu ex-vice-presidente José Antônio Bruno, cujas alegações de defesa, conforme demonstrou a Secex/SP (fls. 638/644 do volume 3), comprovaram sua ausência de responsabilidade pelas irregularidades e pelos débitos apurados.

3. Acompanho, nesse particular, as conclusões da unidade técnica, que insiro entre minhas razões de decidir, e considero que aqueles responsáveis devem ser excluídos desta relação processual. No caso da pessoa física, porque ficou configurado que o ex-vice-presidente não teve qualquer participação na execução do convênio, não praticou qualquer ato de gestão de recursos e somente assinou o termo de convênio em representação da ex-presidente, que se encontrava em viagem. No caso da pessoa jurídica, hoje sob intervenção judicial e em processo de liquidação, porque não ficou comprovado qualquer benefício por ela auferido com o uso dos recursos repassados.

4. Foi feita, assim, a citação da ex-presidente Sônia Haddad Moraes Hernandes, que alegou, em síntese, que:

a) não participou da celebração e da gestão do convênio e não foi cadastrada como responsável junto ao FNDE;

b) o objeto do ajuste foi executado, os objetivos foram atingidos e a respectiva prestação de contas demonstra a correta utilização dos recursos, tanto assim que foi aprovada pelo FNDE.

5. Como demonstrou a Secex/SP, cujas análises e conclusões novamente incluo entre os fundamentos de meu entendimento, tais argumentos não merecem ser aceitos, eis que:

a) a ex-presidente assinou o plano de trabalho, a prestação de contas e as justificativas a questionamentos formulados por auditoria do FNDE (fl. 313 do volume 1), o que significa que participou da celebração e da execução do convênio, e somente não assinou o respectivo termo porque estava em viagem;

b) as irregularidades na prestação de contas acima descritas (item 1 deste voto, alíneas a e b), impedem o estabelecimento de vínculo entre os valores transferidos e as despesas realizadas e a efetiva execução do objeto com recursos do convênio;

c) embora tenha sido inicialmente aceita pelo FNDE, como afirmou a responsável, a prestação de contas foi posteriormente reavaliada por aquela autarquia e rejeitada.

6. Deve ser registrado, ainda, que a ex-presidente da Fundação Renascer/SP deixou, em duas oportunidades, de apresentar a documentação complementar que permitiria comprovar a boa e regular utilização das quantias por ela recebidas: por ocasião da fiscalização realizada no local pela Controladoria-Geral da União, que anotou não haver sido “possível realizar a fiscalização pretendida devido à dificuldade encontrada pela equipe em ser atendida pelos responsáveis pela Fundação Renascer, que não disponibilizaram a documentação do convênio” (fls. 350/352 do volume principal), e por ocasião da apresentação de sua defesa perante esta Corte, à qual não foi juntado nenhum dos elementos comprobatórios mencionados no ofício citatório.

7. Assim, diante da persistência da ausência de comprovação do correto uso dos recursos, acato os pareceres da Secex/SP e do MPTCU e voto pela adoção da minuta de acórdão que trago à consideração deste colegiado.

[...]

VISTOS, relatados e discutidos estes autos de tomada de contas especial em decorrência do não encaminhamento de documentação exigida para correta prestação de contas dos recursos do convênio 828.035/2004, por meio do qual foram repassados R$ 785.663,95 (setecentos e oitenta e cinco mil seiscentos e sessenta e três reais e noventa e cinco centavos) à Fundação Renascer/SP, em 2004 e 2005, no âmbito do Programa Brasil Alfabetizado, para alfabetização de 8.000 (oito mil) jovens e adultos, com idade superior a 15 (quinze) anos, da zona urbana de São Paulo/SP.

ACORDAM os Ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em sessão da 2ª Câmara, com fundamento nos arts. 1º, inciso I, 16, inciso III, alíneas c e d, 19, caput, 23, inciso III, 28, inciso II, e 57 da Lei 8.443/1992, c/c o art. 214, inciso III, alínea a, do Regimento Interno:

9.1. excluir a Fundação Renascer/SP e José Antônio Bruno deste processo;

9.2. julgar irregulares estas contas especiais;

9.3. condenar Sônia Haddad Moraes Hernandes a recolher ao FNDE as importâncias a seguir discriminadas, atualizadas monetariamente e acrescidas de juros de mora das datas abaixo apontadas até a data do pagamento:

Data                     Valor (R$)            Natureza

18/11/2004        471.398,37             Débito

03/01/2005       314.265,58             Débito

07/10/2005                80,69             Crédito

9.4. aplicar à responsável multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais), a ser recolhida ao Tesouro Nacional atualizada monetariamente do dia seguinte ao do término do prazo abaixo estipulado até a data do pagamento;

9.5. fixar prazo de 15 (quinze) dias a contar da notificação para comprovação do recolhimento das dívidas acima imputadas perante o Tribunal;

9.6. autorizar a cobrança judicial das dívidas, caso não atendida a notificação;

9.7. encaminhar cópia desta deliberação e do relatório e do voto que a fundamentaram ao procurador-chefe da Procuradoria da República no Estado de São Paulo.



A moda é ser crente

A dupla sertaneja gospel goiana (com o perdão da tripla redundância) até que canta bem, e pelo menos reconhece que ser crente hoje é fashion, ainda que a gente fique sem saber se a moda é de viola ou se tem muita gente dizendo que é crente porque "tá na moda". Isso me lembra um pastor humilde (coisa rara hoje em dia, não é mesmo?) de uma igreja que não revelarei o nome (porque pastor, mesmo de denominações pouco conhecidas naquela época, era pastor por vocação e não por cobiça), que participou de um concurso de músicas natalinas muito tempo atrás numa cidade do interior de São Paulo. A melodia era boa, mas o refrão simples causou risos contidos, troca de olhares espantados e constrangimento geral na plateia, além de ter deixado o júri em pânico. No final, ele ainda se zangou por ter ficado em último lugar e - na falta de alguém para desabafar - veio reclamar comigo:

Ele - Irmão, não entendo por quê fiquei em último lugar. A música era tão boa...
Eu - De fato, irmão, a música era boa, mas havia um "probleminha" com o refrão...
Ele [surpreso] - Havia? ... Qual?
Eu [um dia ele teria que saber!] - É que Jesus nasceu em Belém, e não em Jerusalém, irmão...

[constrangimento geral]

O pastor deu aquela famosa pausa do "caiu a ficha", engoliu em seco com o olhar perdido no infinito, depois balbuciou alguma coisa como "então tá..." e, muito humilde, enfiou a viola no saco e saiu rapidinho sem nem se despedir... eu fiquei com a consciência tranquila, afinal alguém tinha que fazer o "serviço sujo" de alertá-lo do "descuido bíblico" antes que a reputação dele fosse Jerusalém abaixo se ele insistisse em continuar cantando daquela maneira...





sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Radar humano

Se algum cara resolvesse fazer essa brincadeira no Brasil, ser preso pela polícia seria o menor dos males que ele teria que enfrentar. Muito provavelmente ele seria atropelado ou levaria uma bala na testa, mas quando se trata de países mais calmos, o resultado até que é engraçado:



P.S.: como eu sempre falo para os meus amigos goianos, deviam inventar um radar que identificasse duplas sertanejas à distância e impedisse que eles saíssem de Goiás... #prontofalei


A religiosidade dos não-religiosos

Excelente artigo de Bernardo Cho publicado no seu blog, sobre o vídeo Jesus>Religião que já foi comentado aqui no texto "A religião do ódio à religião", que merece ser divulgado para que as pessoas pensem melhor e contem até 10 antes de aceitar ideias simplistas fáceis de deglutir, mas que não têm nenhum poder nutritivo:

A Religiosidade dos “Não-Religiosos.”

Estamos em meados de Janeiro, o ano acadêmico já está a todo vapor (pelo menos aqui na terra do frio), e eu realmente deveria estar fazendo outra coisa neste exato momento. Mas, resolvi aproveitar minha pausa de hoje para fazer um breve comentário sobre o video religioso (isso mesmo, religioso) intitulado “Jesus>Religion”, que está muito em voga ultimamente nas redes sociais.

Eis o porque que eu acho essa ideia de um “Jesus sem religião” profundamente insatisfatória:

1- Para começar, esses movimentos anti-religião usam péssima terminologia. Religião, nas palavras de Tony Jones (ecoando Friedrich Schleiermacher) por exemplo, é a expressão da experiência humana com o transcendente; não é algo necessariamente bom, nem ruim, é simplesmente inevitável. Só que, para a turma do Jesus não-religioso, “religião” é um termo que encapsula todas as suas experiências negativas em relação a fé. Em outras palavras, os não-religiosos chamam de religião tudo aquilo que os marcou negativamente ao longo da vida, incluindo aquilo que não correspondeu ao apetite de seu consumismo religioso. Tudo bem, há pessoas que sofreram formas genuínas de abuso em instituições religiosas e, portanto, é até compreensível que alguns achem interessante demonstrar aversão ao termo. Mas, isso não justifica a má terminologia. Transferir ao termo “religião” todo tipo de conotação pejorativa é tão simplista e ilegítimo quanto dizer que a instituição da “família” é ruim pelo fato de existirem pais que abusam de seus filhos – uma sugestão que beira a burrice.

2- Colocar Jesus contra religião é uma dicotomia falsa. Aquela frase “religião é o homem em busca de Deus, e cristianismo é Deus em busca do homem” pode até soar bonito, mas é superficial. O cristianismo é a religião que tem como matriz o evangelho de Jesus, a mensagem do Deus que veio ao mundo na pessoa de Seu Messias. Não obstante, o cristianismo, tendo emergido da religião veterotestamentária através da proclamação escatológica dos apóstolos, é religião sim. Aliás, Jesus mesmo tinha uma religião – a do Sinai. E ele não veio “abolir a religião,” nem se colocar “no outro extremo do espectro.” Jesus veio, nas palavras de N. T. Wright, redefinir o povo de Deus ao redor de si mesmo. Isso significa que Jesus não está necessariamente em oposição à religião; significa que ele veio mostrar a sua finalidade. O próprio irmão de Jesus, Tiago, sugere isso: “A religião que Deus, o Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas necessidades e não se deixar corromper pelo mundo” (Tg 1:27). Além disso, se Jesus tivesse abolido a religião e suas expressões ou, como muitos gostam de dizer hoje em dia, toda forma de fé institucionalizada, como é que ele pôde estabelecer sacramentos, como o batismo e a ceia? Não nos esqueçamos também de que não existe cristianismo individual, sem comunidade. Como T. F. Torrance acertadamente definiu, “conversão é o retornar do ‘eu-individualista’ para o ‘nós-coletivo.’” Congregar é estar com outros em nome de Jesus. E uma reunião onde dois ou mais estão em nome de Jesus já é em si um ato religioso e institucional, mesmo que tal grupo não tenha um CNPJ.

3- O anti-religiosismo de hoje é raso do ponto de vista exegético e pobre no que diz respeito à sua consciência histórica. Sobre isso, não há muito o que dizer, pois a realidade do segmento mais pop do evangelicalismo contemporâneo diz por si só. Só um adendo: É extremamente necessário que cada geração reformule a maneira de pensar e expressar sua fé, de acordo com os desafios de sua época. Mas, precisamos fazer isso com o mínimo de perspicácia, não é verdade? O rapzinho meia-boca do “Jesus>Religion” em momento algum reflete um pensamento crítico sério em relação aos problemas reais dos nossos dias. Como diria Carlos Nascimento, “nós já fomos mais inteligentes.”

4- E, finalmente, dizer que “sou de Jesus, mas não sou de nenhuma religião” é, no fundo, uma afirmação arrogante; afinal, a ideia de que “Jesus>Religion” pressupõe que aqueles que “são de Jesus” estão num patamar mais elevado do que os demais indivíduos da raça humana, que (cruz credo, pobrezinho deles) confessam uma religião. Já que os “de Jesus” não têm uma religião, mas vivem o “cristianismo puro e simples” (como se existisse cristianismo sem dialética com as correntes culturais de sua época), são eles os verdadeiros iluminados. E o critério para se discernir se você é de fato um cristão verdadeiro é simples: basta você não ter compromisso nenhum com a religião ou com alguma instituição. A ironia é que, enquanto os anti-religiosos se dizem livres da maldição de serem julgados por sua aparência exterior (como costumes, vestimenta, etc.), eles mesmos julgam como “religiosos” todos aqueles que seguem qualquer tipo de tradição. Se esquecem, porém, de que Deus vê além das aparências, independente se você expressa abertamente sua religião ou não. O anti-religiosismo, portanto, tão preocupado em ser cool e diferente, não passa de mais uma expressão religiosa, igualzinha as demais.

Ser de Jesus, meus caros, é viver a religião em sua finalidade mais plena.

Bom, agora deixa eu voltar ao tabalho. Afinal, a Luiza já voltou do Canadá, mas eu não.



quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Guerra dos sexos

A velha batalha entre machistas e feministas é o pretexto escolhido pela Quilmes para vender cerveja. A propaganda foi gravada - obviamente - em castelhano com sotaque argentino, mas é perfeitamente compreensível porque essa linguagem é universal:





Ateus planejam construir templos para sua religião

Este blog não tem nem usa bola de cristal, mas há tempos vem constatando o óbvio: na verdade, o neoateísmo é uma antiga religião. Comprova - mais uma vez - essa tese a notícia que circulou ontem, de que construir uma rede de templos ateus é o novo projeto do filósofo suíço Alain de Botton, autor do livro "Religião para Ateus" (que eu até já comprei baratinho na promoção, prometo ler e comentar...), que segue a linha ateísta menos radical, como já demonstrou numa entrevista a Dan Stulbach no canal GNT da Globosat. Os templos ateus seriam construído por toda a Grã-Bretanha, e o primeiro deles já tem planta assinada pelo escritório de arquitetura de Tom Greenall, e consistiria numa enorme torre negra de 46 metros de altura aninhada entre os edifícios do centro financeiro de Londres, a famosa "City" londrina. A proposta arquitetônica é lançar um olhar em perspectiva sobre o centro da capital britânica (e simbolicamente sobre o mundo, é claro!) e os 46 metros não são despropositados, apesar de que os ateus - até outro dia - gostavam muito do acaso e do aleatório. Exercício de matemática básico: 46 metros são 4.600 centímetros, correto? Então... cada centímetro equivale a 1 milhão de anos da presumida idade da Terra (4.600.000.000 no total) e na base da estrutura haveria um fio dourado de 1 milímetro representando o período da presença humana no planeta, proporcionalmente à altura simbólica. Engraçado... mas não eram os ateus que criticavam tanto os rituais, símbolos e mitos das religiões?

Alain de Botton, é preciso reconhecer, já havia elogiado muito a beleza e a organização que as religiões, cada uma a seu modo, trouxeram ao mundo. Parece que ele tem enorme apreço pela estética, principalmente quando pergunta: "Por que as pessoas religiosas deveriam ter os prédios mais bonitos nessa terra? É chegada a hora dos ateus terem as suas próprias versões das grandes igrejas e catedrais". A inveja, ah! a inveja, como move o mundo, já diria outro ateu famoso chamado Friedrich Nietzche em sua "Genealogia da Moral". Pois é, Nietzche, parece que seus próprios colegas ateus se esqueceram completamente de você... o que até nos faz agradecer a ateus como Alain de Botton, porque eles nos poupam o trabalho de comprovar as nossas teses sobre o ateísmo. Eternamente agradecido, Alain!

O filósofo suíço sempre insistiu que os ateus deveriam copiar as maneiras como as religiões expuseram suas ideias e seus dogmas ao mundo, e um dos meios mais úteis foram as obras-primas representadas pelos seus templos, igrejas, mesquitas, sinagogas e catedrais. Ele acrescenta: "Como as religiões sempre souberam, um edifício bonito é uma parte indispensável para propagar a sua mensagem. Os livros por si só não seriam capazes disso". Indagado sobre a necessidade de um deus para se consagrar o templo, Alain de Botton rebate dizendo que "você pode construir um templo para qualquer coisa que é positiva e boa. Isto poderia significar, por exemplo, um tempo dedicado ao amor, à amizade, à calma ou à pespectiva". A sugestão do finado seriado cômico MadTV (vídeo abaixo) continua, então, atualíssima, e sua sugestão de ritual nas manhãs de domingo segue firme e forte. Logo, logo, veremos ateus tocando bumbo nas praças, distribuindo folhetos de dois em dois, passando a sacolinha, pedindo "sementes" de 900 paus e até comprando rede de TV para produzir um reality show em que beldades nuas discutem Dawkins e Hitchens, por que não? Afinal, estão cada dia mais religiosos, à sua maneira, é claro. E no enorme mercado da fé em que se tornou boa parte das denominações, sempre cabe mais um, não é mesmo? Por isso, não se surpreenda se daqui a algum tempo você ver algum ateu jogando tarô ou lendo bola de cristal...



Fonte: Dezeen



quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Liam Neeson estaria considerando se converter ao Islã

Como a notícia vem do tabloide sensacionalista britânico The Sun, famoso por seus escândalos fabricados e constantemente criticado (e processado por celebridades) por passar dos limites éticos do jornalismo, a notícia merece ser recebida com a devida cautela, mas na sua edição de hoje, o jornal garante que o ator irlandês Liam Neeson, atualmente com 59 anos de idade, estaria cogitando seriamente se converter ao islamismo. No momento, Neeson está filmando em Istambul, na Turquia, e estaria muito impressionado com o fervor religioso que emana das 4.000 mesquitas da cidade. Segundo ele, a chamada pública à oração 5 vezes por dia "invade o seu espírito". Nas primeiras semanas, ela deixaria a pessoa transtornada, mas depois "penetra no espírito e se torna uma coisa linda". Acrescenta, ainda, que "algumas mesquitas são maravilhosas e isto realmente me faz pensar em me tornar muçulmano". Procedente de uma família católica na conturbada Irlanda do Norte, onde os protestantes pró-britânicos são maioria em relação à população de origem irlandesa (católica), Neesom chegou a ser coroinha na infância, e recebeu o nome Liam em homenagem ao pároco da igreja que seus pais frequentavam. Sua esposa Natasha Richardson faleceu num acidente de esqui em 2009. Desde então, o ator aumentou o seu interesse na fé, lendo muitos livros sobre religiões, a existência de Deus e o ateísmo. Em 2010 ele já havia recebido críticas por ter dito que Aslan, o leão da terra fantástica de Nárnia criada por C. S. Lewis, que ele próprio dubla nos filmes da série, não era uma representação simbólica de Jesus Cristo, mas de todos os líderes espirituais, incluindo Maomé. A se confirmarem a versão do The Sun e a conversão de Liam Neeson, não deixará de ser estranho ver como muçulmano o ator que representou no cinema personagens que entraram para o inconsciente coletivo mundial como (além da voz de Aslan) Oskar Schindler (em "Lista de Schindler", 1993), Michael Collins (filme homônimo sobre o líder da independência irlandesa, 1996), o jedi Qui-Gon Jinn ("Stars Wars - 1 - A Ameaça Fantasma", 1999), o sexólogo Alfred Kinsey ("Kinsey", 2004), o nobre guerreiro cristão Godfrey de Ibelin ("Cruzada", 2005) e - quem diria! - Zeus (em "Fúria de Titãs", 2010).



Ética x Religião

Artigo de Sérgio Telles - publicado no Estadão no último dia 21 de janeiro - faz um resumão muito interessante das ideias centrais sobre religião é ética, de como os filósofos (ateus, em sua maioria) buscam uma alternativa que - se não consegue substituir uma pela outra - pelo menos procure conciliar os dois conceitos. Não deixa de ser curioso, entretanto, ver que pensadores ateus rotineiramente busquem alternativas humanistas para a fé, sem que (e aí reside o grande mérito do artigo) essa "fé" deixe de ser fé. Pode parecer um monte de redundâncias o que acabei de escrever (o que de fato é!), mas com a leitura do artigo você entenderá facilmente o que estou querendo dizer. Aliás, não só eu, porque me parece que esta é a ideia central que o autor quis passar. Não conheço Sérgio Telles, e pelo que ele escreve, me parece que é ateu (o que não considero ser nenhum defeito, diga-se de passagem), até pelo último parágrafo em que ele diz que "os que defendem a religião como necessária para a estabilidade social [...] esquecem que ela muitas vezes coloca em risco o laço social. No momento em que dogmas diferentes entram em choque, impera a violência, instala-se a intransigência e intolerância". Aparentemente, Telles faz mais uma generalização típica do discurso ateísta. Ninguém nega que religiões entram em choque, a história está aí para confirmar a tragédia das "guerras santas", mas elas têm períodos de convivência e até colaboração muito maiores dos que os de conflitos. Só que essas fricções gritam muito mais alto do que os momentos de paz, até porque contrariam o discurso das religiões e expõem a hipocrisia de quem fala em seus nomes. É de se imaginar também que o contrário da afirmação de Telles não seja necessariamente verdade. Se imaginarmos um mundo sem religiões em que a ética impere, isso necessariamente não significa que não haverá violência ou desinteligência entre os homens e os povos (cá entre nós, quem manda no mundo mesmo é a economia, não é verdade? - risos constrangidos). A cobiça, a luxúria, a miséria, a exploração do outro, a maldade enfim, são inerentes ao ser humano, e aí - olha só! - voltamos ao terreno da religião... com sair dessa enrascada, então?

Religião e ética

Sérgio Telles - O Estado de S.Paulo

Nao li Religião para Ateus (Ed. Intrínseca), de André de Botton, e sim a recente resenha que lhe dedicou Terry Eagleton, filósofo e crítico literário inglês. Eagleton diz que, ao contrário de Marx e Nietzsche, que diretamente combatiam a religião, muitos filósofos, como Maquiavel, Voltaire, Rousseau, Diderot, Tolland, Gibbon, Matthew Arnold, Auguste Comte e o contemporâneo Habermas, compartilham a descrença nos dogmas religiosos, mas, ainda assim, consideram que a religião é útil para manter sob controle a ralé, a plebe, o populacho, a massa, a chusma... De forma irônica, Eagleton resume a postura desses pensadores, entre os quais inclui Botton, num mote - "eu mesmo não acredito, mas, do ponto de vista político, é mais prudente que você acredite". A seu ver, uma contraditória forma de pensar por aqueles que, enquanto filósofos, deveriam zelar pela integridade do intelecto.

Se Eagleton está correto em sua leitura, Botton e demais autores citados parecem incorrer no erro decorrente de uma indiscriminação entre os campos da religião e da ética, confusão sobre a qual Jacques Derrida se debruçou no Seminário de Capri, em 1994.

A maioria das pessoas pensa que os valores mais elevados da humanidade - o amor, o respeito ao outro, a abdicação da agressividade, o desejo de estabelecer a paz na comunidade - estão depositados e resguardados na religião. Por esse motivo, qualquer crítica que se lhe faça é entendida como um ataque a esses valores fundamentais para a civilização. Ao não se discriminar o que é próprio da religião e o que é próprio da ética, conclui-se apressada e erroneamente que o não religioso, o ateu, é um ser aético e antimoral.

No empenho de estabelecer o que é estritamente do domínio do religioso, Derrida pinça duas experiências especificas - a da fé e a do sagrado. À primeira vista, seriam elas exclusivas da religião. Mas Derrida mostra que não é bem assim. Em primeiro lugar, se entendemos a religião como a prática ligada ao trato com o divino e suas revelações, logo percebemos que a fé não se restringe a esse campo. A fé se faz imprescindível em qualquer contato entre os homens. É preciso ter fé no outro, é preciso crer no que ele diz, acreditar que ele fala a verdade. De forma semelhante, o sagrado também não se limita ao divino, pois a consideração à vida e ao outro deve ter essa conotação. A vida, diz Derrida, é algo que deve permanecer "indene, sã, a salvo, intocável, sagrada".

Na medida em que evidencia que a fé não é uma experiência própria e exclusiva da religião e sim algo inerente e indispensável no relacionamento humano, Derrida desfaz a incompatibilidade entre fé e razão, oposição tradicional mantida com grande vigor desde o Iluminismo por aqueles que julgam nela se apoiar a possibilidade do pensamento científico. Derrida afirma o contrário. É justamente por ter fé na palavra do outro que a transmissão de conhecimento se faz possível.

Qualquer relação humana se baseia na possibilidade de aliança com o outro, na crença de ouvir dele a verdade e, em retribuição, para ele também falar a verdade, de ter com ele uma "fé jurada". Esses atos de grande importância nas relações pessoais geram quase automaticamente a figura necessária de uma testemunha, aquele que garante e dá credibilidade às sempre frágeis e incertas promessas e alianças entre os homens. Ninguém melhor do que um deus para cumprir essa função.

O que Derrida propõe é que aquilo que aparece simbolizado, idealizado e "purificado" na religião, e que se acredita ser específico dela, na verdade são aspectos essenciais das relações entre os homens. Aponta para uma religião não "religiosa" no sentido comum, "ateologizada", fruto de necessidades humanas. Nesse sentido, o título do livro de Botton, uma religião para ateus, parece apontar para a mesma direção, mas por vias não coincidentes.

Freud também concebia a religião como fruto de necessidades humanas, atendendo a anseios arcaicos por um pai poderoso que garantisse amor e proteção contra os perigos existentes e a ameaça onipresente da morte. Na religião, são reencontrados os pais fortes da infância e dos quais não se quer abrir mão, na relutância em se assumir a própria autonomia na vida adulta.

Ao fazer a discriminação entre religião e ética, persiste uma questão. Muitos pensam que a ética decorre de preceitos religiosos, seria ela um depurado leigo dos mandamentos divinos. Entretanto, Freud mostrou que a ética decorre de procedimentos humanos necessários para a sobrevivência. Cada homem deve conter sua sexualidade e sua agressividade para que seja possível a convivência em comum, para que o grupo social sobreviva. No correr do tempo, essa contenção se codifica em normas de conduta que regem as relações humanas.

O filósofo Philip Kitcher diz algo semelhante no artigo Ethics without Religion, ao enfatizar a importância de compreender as raízes históricas de nossas práticas éticas. Afastando-se da ideia de que mandamentos semelhantes possam ter sido enunciados por diferentes deuses em épocas e culturas diversas, pensa que tais mandamentos teriam surgido como soluções práticas para problemas sociais. Posteriormente teriam sido absorvidos pelos diferentes contextos religiosos, o que lhes teria dado uma força suplementar. Ou seja, a ética não decorreria de preceitos divinos revelados e sim da codificação de procedimentos e condutas impostos pela necessidade de viver em grupo. Essas regras humanas teriam sido absorvidas pela religião e transformadas em mandamentos divinos.

Mostra Kitcher que entender a natureza humana da ética nos possibilita ter uma ideia do trajeto percorrido e do estágio que atingimos - de hordas de primatas às nossas complexas sociedades -, dando-nos forças para continuar melhorando um projeto jamais acabado, em permanente processo de aprimoramento.

Os que defendem a religião como necessária para a estabilidade social, como Eagleton diz que fazem Botton e outros filósofos citados, esquecem que ela muitas vezes coloca em risco o laço social. No momento em que dogmas diferentes entram em choque, impera a violência, instala-se a intransigência e intolerância.







terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Hitler - a biografia por Alan Bullock

“Hitler – A Study in Tiranny”, de Alan Bullock (Abridged Edition, Ed. Harper Perennial, 1994) é uma excelente biografia de Adolf Hitler que contrasta com os calhamaços de Ian Kershaw e Joachim Fest sobre o mesmo Führer. 

Se as suas 490 páginas não podem classificá-la exatamente como “sucinta”, o fato é que Bullock busca se concentrar – tanto quanto pode – no que se passa dentro da mente de Hitler, que ao término do livro nem parece tão pavorosa e monstruosa como somos habituados a ouvir e imaginar. 

Pelo contrário, era uma mente como a de qualquer um de nós, e talvez aí resida o perigo de que a história – essa insistente – torne a se repetir. 

Meu interesse particular não só em Hitler, mas sobretudo sobre toda a conjuntura em que foi possível nascer e dominar o nazismo, é tentar compreender como a natureza humana pode, por assim dizer, absorver a maldade em essência nesse nível tão degradante, aspecto em que a biografia de Bullock, se não apresenta uma conclusão definitiva, pelo menos ajuda a entender um pouco mais esse período tão obscuro do percurso humano no planeta. 

A conclusão é que — contra as nossas melhores expectativas — não há nada de extraterrestre no fenômeno do nazismo. 

Como estamos cansados de saber, lamentavelmente, o mal continua presente no mundo, esperando somente o momento oportuno de se manifestar. 

O livro não dispensa os acontecimentos paralelos à conturbada carreira do líder nazista, mas neles não se concentra. Eles são sempre referidos como um pano de fundo para a (de)formação emocional, intelectual e política de Hitler. 

Daí, talvez, venha a fluência com que se lê o livro, que, pela aridez do tema a que se propõe, era de se imaginar que fosse difícil de ler, mas o autor domina a arte da concisão sem perder a riqueza de detalhes de um período tenebroso da história da humanidade. 

O seu poder de síntese é notável e a escrita é fluida. 

É uma pena que ainda não tenha sido traduzido para o português, a exemplo do que já aconteceu com Kershaw e Fest (apenas para citar os biógrafos mais famosos), mas se espera que alguma editora corrija esse grave erro e preencha essa lacuna importante nas estantes e prateleiras das bibliotecas e livrarias do país. 

É uma biografia altamente recomendada.

O subtítulo “Um Estudo sobre a Tirania” cai muito bem ao propósito do livro, que basicamente busca entender que infeliz coincidência cósmica foi esse processo histórico em que um homem problemático que quer se tornar um déspota ao mesmo tempo encontra um povo ansioso e disposto a entregar cegamente o seu destino a um tirano. 

Muito bem dividido em capítulos que falam dos anos de formação, de espera e de tomada do poder para levar a Alemanha e o mundo à tragédia da Segunda Guerra Mundial, Bullock não se detém muito na infância de Hitler, descrevendo-o apenas como “esquisito” e “solitário”, e prefere acompanhá-lo mais de perto já em Viena, em que o testemunho de Reinhold Hanisch, uma espécie de “malandro” alemão da época que o conheceu muito bem, beira o inacreditável.

Hanisch descreve a maneira como conheceu Hitler num pensionato barato de Viena em 1909: “no primeiro dia lá, se sentou perto da cama que havia sido reservada para mim um homem que não tinha nada senão um velho par de calças – Hitler. Suas roupas tinham sido limpas de piolhos, já que havia dias que ele estava perambulando sem um teto e numa condição terrivelmente negligente” (pág. 8). 

O "andarilho" Hitler tinha então 20 anos de idade e era esse homem que 30 anos depois deflagraria uma guerra mundial que mataria entre 50 e 60 milhões de pessoas. 

Alguns anos depois, ele já estava familiarizado com as ideias nacionalistas e antissemitas que circulavam em Viena, provindas das mentes doentias de Georg Von Schönerer, do Partido Nacionalista Pan-Germânico, e de Karl Lueger, do Partido Social Cristão. 

Aprendeu com o erro de Schönerer, que atacou a igreja católica, escrevendo depois que “a arte da liderança consiste em consolidar a atenção do povo contra um único adversário e tomar cuidado para que nada desvie essa atenção. O líder genial deve ter a habilidade de fazer com que diferentes oponentes pareçam como se eles pertencessem a uma só categoria” (p. 19). 

Lueger, por sua vez, não só evitou atritos com a religião como procurou fazer dela sua aliada, recebendo o reconhecimento de Hitler, que escreveu: “Ele foi rápido em adotar todos os meios disponíveis para ganhar o apoio das instituições estabelecidas há muito tempo, assim como extrair a máxima vantagem possível desse movimento daquelas velhas fontes de poder” (p. 20).

Hitler soldado na 1ª Guerra Mundial
A vida do jovem Adolf Hitler combinava mais com as suas perambulações miseráveis do que com a trajetória de um herói militar, até porque foi rejeitado pelo exército austríaco (sua pátria, é sempre bom lembrar) em 5 de fevereiro de 1914, devido ao seu lastimável estado de saúde (p. 21). 

Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial em julho daquele ano, já em Munique, Hitler se alista como voluntário no exército alemão e no dia 21 de outubro é enviado ao front. 

A guerra serviu para fazê-lo ver algum sentido em sua vida vazia, e enquanto ela durou, ele se sentia vivo e importante para o destino alemão. 

Entretanto, a surpreendente rendição alemã em 1918, esgotada que estava em seus recursos para seguir lutando, tendo escondido esse fato da população até o momento derradeiro, fez com que Hitler perdesse seu chão. 

Bullock comenta assim:

“Como muitos outros membros da massa de homens desmobilizados, que agora se viam despejados no mercado de trabalho numa época de extremo desemprego, ele tinha pouca possibilidade de encontrar uma ocupação. O velho problema de como encontrar um meio de sustento, convenientemente empacotado por 4 anos, reapareceu. Caracteristicamente, Hitler virou suas costas ao problema. Afinal, o que é que ele tinha a perder no limiar de um mundo no qual ele nunca tinha encontrado um lugar? Nada. O que ele tinha a ganhar no desconforto, na confusão e desordem geral? Tudo, se tão somente ele soubesse como virar os eventos a seu favor. Com um instinto certo, ele viu no cansaço da Alemanha a oportunidade que ele vinha procurando, mas que até então tinha falhado em encontrar.” (p. 32)
Bullock nota que na reunião que selou a entrada de Hitler no então incipiente Partido dos Trabalhadores Alemães, que mais tarde se tornaria o temido Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, o Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – NSDAP, ele se encantou com a atmosfera lúgubre da sala fechada, com meia-luz de lampião de gás (p. 35), ambiente soturno em que passaria boa parte da sua vida em bunkers, sobretudo aqueles espalhados pela frente oriental da Segunda Guerra, além do último buraco debaixo da Chancelaria de Berlim onde se suicidou

Prossegue o autor dizendo que “Hitler foi o maior demagogo da história. Aqueles que dizem ‘somente um demagogo’ falham em apreciar a natureza do poder político numa era de política de massas. Como ele próprio disse: ‘Ser líder significa ser capaz de mover as massas’” (p. 37). 

Por outro lado, Hitler se cercou de uma legião de escroques medíocres e oportunistas como Göring, Hess, Rosenberg e Goebbels, cuja cobiça ele soube manipular jogando uns contra os outros a seu bel prazer, não se importando com os reais motivos que os traziam até ele, porque “ele estava preparado para ser todas as coisas para todos os homens, porque para ele todos os homens representavam apenas uma coisa: um meio de se chegar ao poder” (p. 42). 

Em 1929, outro nacionalista alemão, Alfred Hugenberg, que havia feito uma fortuna com a hiperinflação do país e com isso tinha comprado um império de propaganda, jornais e agências de notícias, além da indústria do cinema, e em 1928 passara a controlar o Partido Nacional Alemão, tentou cooptar Hitler para a sua causa, mas na verdade terminou promovendo-o, tornando-o conhecido e abrindo-lhe portas a uma elite econômica que ainda era refratária ao seu extremismo. 

Todos esses jogos políticos internos do partido que ajudara a fundar contribuíram para que Hitler aprendesse intuitiva e empiricamente todas as técnicas de se manipular um eleitorado, sobretudo depois da fracassada tentativa de golpe em 1923 (o putsch da cervejaria de Munique), que serviu para que ele percebesse que deveria extrair o máximo das garantias que o sistema democrático constitucional então em vigor na Alemanha podia lhe fornecer, sem negociar ou repartir poder. 

Um dia ele o abocanharia só para si. 

Para Adolf Hitler, o único poder que interessava era o poder total, e uma série de eventos, muitos deles produtos do acaso, lhe alçaram ao poder em 30 de janeiro de 1933. 

Todas as tentativas dos líderes alemães, de Von Papen, Sleicher até Hindenburg, em manipulá-lo, foram por terra abaixo, e eles se tornaram presas do monstro que criaram.

Hitler e Hindenburg em panfleto de campanha
Uma vez instalado no poder, restava ao nazismo ainda dobrar a resistência do Exército alemão, a mais poderosa instituição do país que, com toda a razão, não via naquele ex-cabo austríaco alguém de confiança para dirigir a humilhada, mas ainda poderosa nação alemã. 

Acontece então, o que Bullock chama de “Revolução após o Poder”, em que, a pedido dos generais, as milícias nazistas da raiz do partido são desarmadas e as suas lideranças dizimadas, na Noite dos Longos Punhais, em 30 de junho de 1934, na qual Ernst Röhm, que havia sido útil para Hitler até a chegada ao poder, é descartado junto com outros comandantes das SA (Sturmabteilung), por também ter se tornado uma ameaça ao poder total do Führer. 

A partir de então, entrega o comando da economia interna a Hjalmar Schacht, com o compromisso de promover o rearmamento da Alemanha a qualquer custo, o que contribui para resolver o problema do desemprego, enquanto se dedica a manobras diplomáticas nas relações exteriores a fim de soltar o dragão do expansionismo alemão sobre os países vizinhos. 

A retirada da assinatura do Tratado de Versalhes em 30 de janeiro de 1937 faz Hitler se ver como o Messias teutônico, papel que ele imaginaria estar vivendo com mais força a partir de então. 

No discurso ao Reichstag ele se gaba: “Eu devo humildemente agradecer à Providência, cuja graça me habilitou, eu que fui um soldado desconhecido na guerra, a trazer a um final exitoso à luta por nossa honra e direitos como nação” (p. 197). 

Esse aspecto messiânico que Hitler atribuía a si mesmo corresponde, segundo Bullock, à sua necessidade mórbida de se impor pela força, destruindo o oponente. 

Talvez esteja aqui a melhor passagem do livro (capítulo 7, pp. 207-232), da qual destacamos alguns trechos:
“Hitler sempre demonstrou uma desconfiança na discussão e nas críticas. Incapaz de discutir equilibradamente desde os primeiros dias em Viena, o seu único recurso sempre foi abater o oponente a gritos. O questionamento de suas afirmações ou dos fatos mexiam com ele; a introdução dos processos intelectuais do criticismo e da análise marcavam a intrusão de elementos hostis que perturbavam o exercício de manipular as emoções. Daí o ódio de Hitler pelos intelectuais: nas massas o ‘instinto é supremo e do instinto vem a fé... enquanto o indivíduo comum e saudável instintivamente fecha as suas fileiras para formar uma comunidade do povo, os intelectuais ficam rodeando, como galinhas no terreiro. Com eles é impossível fazer história; eles não podem ser usados como elementos que dão suporte a uma comunidade’.
[...]
Um dos segredos de seu domínio sobre uma grande audiência era a sua sensibilidade instintiva ao humor da multidão, uma queda por adivinhar as paixões, os ressentimentos e anseios ocultos nas suas mentes. Um de seus maiores críticos, Otto Strasser, escreveu: ‘Hitler responde à vibração do coração humano com a delicadeza de um sismógrafo, ou talvez de um aparelho de recepção sem fio, o que lhe capacita, com uma certeza que nenhum dom consciente poderia endossá-lo, a agir como um alto-falante proclamando os desejos mais secretos, os instintos menos admissíveis, os sofrimentos e a revolta pessoal de toda uma nação... Adolf Hitler entra numa sala. Ele fareja o ar. Por um minuto ele apalpa, sente o seu caminho, percebe a atmosfera. De repente ele explode. Suas palavras viajam como uma flecha direto ao seu alvo, ele toca cada ferida particular na sua carne, liberando o inconsciente coletivo, expressando suas mais íntimas aspirações, dizendo a eles o que eles mais querem ouvir’.
(pp. 207-208)
O capítulo 7 é o mais contundente de todo o livro, e resume bem a construção do tirano e sua imposição sobre uma nação moderna e avançada para os padrões do começo do século XX. 

Mereceria uma transcrição completa, mas diante da impossibilidade de levá-la a cabo, contentemo-nos com mais alguns trechos:
Tudo isso se combina para criar uma figura da qual a melhor descrição é a famosa frase do próprio Hitler: ‘Eu sigo o caminho que a Providência dita com a segurança de um sonâmbulo’. Hermann Rauschning escreve: ‘Dostoievsky podia bem tê-lo inventado, com o mórbido desarranjo e a pseudocriatividade de sua histeria’. Com Hitler, de fato, qualquer um está inconfortavelmente consciente de nunca estar longe do reino do irracional. (p. 209)
[...]
Uma das táticas mais habituais de Hitler era se colocar na defensiva para acusar aqueles que se opunham a ele de agressão e malícia, passando rapidamente de um tom de inocência ultrajada aos mais completos trovões de indignação moral. Era sempre o outro lado que devia ser culpado, e ele denunciava cada um deles: os comunistas, os judeus, o governo republicano, ou os tchecos, os poloneses e os bolcheviques, pelo seu comportamento “intolerável” que o forçaram a tomar medidas drásticas em legítima defesa. (p. 210)
[...]
Até os últimos dias de sua vida ele reteve um dom incomum de magnetismo pessoal que desafia a análise, mas sobre o qual muitos que o encontraram tentaram descrever. Isso estava ligado com o poder curioso de seus olhos, os quais são persistentemente descritos como tendo algum tipo de qualidade hipnótica. Similarmente, quando ele queria assustar ou chocar, ele se mostrava um mestre da linguagem brutal e ameaçadora. (pp. 210-211)
[...]
Hitler, de fato, era um ator consumado, com a facilidade do ator e do orador de se absorver a si próprio num papel e se convencer da verdade daquilo que ele estava dizendo no momento em que o dizia. Nos seus primeiros anos ele era frequentemente constrangedor e inconvincente, mas com a prática o personagem se tornou uma segunda natureza para ele, e com o imenso prestígio do sucesso no seu rastro, e os recursos de um Estado poderoso sob o seu comando, havia muito pouca gente capaz de resistir à impressão dos olhos perfurantes, da pose napoleônica e da personalidade “histórica”. (p. 211)
[...]
Ao fazer uso do seu poder formidável Hitler tinha uma vantagem suprema e, por sorte, rara: ele não tinha nenhum escrúpulo ou inibição. Ele era um homem sem raízes ou lealdades, e ele não sentia respeito por nenhum deus ou homem. Através da sua carreira ele se mostrou preparado a aproveitar qualquer vantagem que podia ser ganha através da mentira, astúcia, traição e falta de escrúpulos. Ele exigiu o sacrifício de milhões de vidas alemãs em prol da sagrada causa da Alemanha, mas no último ano da guerra estava pronto a destruir a Alemanha mais do que renunciar ao poder ou admitir a derrota. (p. 213)
[...]
Havia pouca cerimônia sobre a vida no Berghof [casa de veraneio de Hitler nas montanhas]. Hitler não era fã de formalidades nem de grandes ocasiões sociais. Muito embora ele tenha vivido com considerável luxo, ele era indiferente às roupas que ele usava, comia muito pouco, nunca tocava carne, nem fumava ou bebia. (p. 218)
Ainda no capítulo 7, Alan Bullock traça um perfil do pensamento religioso do Führer (p. 219):
Hitler tinha sido criado como católico e era muito impressionado pela organização e pelo poder da igreja. Pelo clero protestante, ele sentia apenas desprezo: “Eles são pessoinhas insignificantes, submissas como cães, e eles suam constrangidamente quando você fala com eles. Eles não tem uma religião que eles podem levar a sério, nem uma grande posição a defender como Roma”. Era a “grande posição” da Igreja que ele respeitava; em relação ao seu ensino ele mostrava a mais aguda hostilidade. Aos olhos de Hitler o cristianismo era uma religião adequada somente para escravos; ele detestava a sua ética em particular. O seu ensino, ele declarou, era uma rebelião contra a lei natural da seleção pela luta e da sobrevivência do mais forte. “Levado ao seu extremo lógico, o cristianismo significaria o cultivo sistemático do fracasso humano”. Devido a considerações de ordem política, ele reprimiu o seu anticlericalismo, percebendo claramente os perigos de acuar a igreja mediante a perseguição. Uma vez acabada a guerra, conforme prometeu a si mesmo, ele arrancaria as raízes e destruiria a influência das igrejas cristãs, mas até então ele ficaria circunspecto.
Esta constatação leva Bullock a investigar o darwinismo social de Hitler (pp. 224-225): “o fundamento das crenças políticas de Hitler era um darwinismo cruel. ‘O homem se tornou grande através da luta... qualquer que seja a meta que o homem tenha atingido, isso se deve à sua originalidade somada à sua brutalidade... A vida toda se resume em três teses: a luta é a mãe de todas as coisas, a virtude reside no sangue, e a liderança é primária e decisiva’. Disso se segue que ‘através de todos os séculos a força e o poder são os fatores determinantes... Somente a força comanda. A força é a primeira lei’. Força foi mais do que um fator decisivo em qualquer situação; era a força que sozinha criava o direito. ‘Sempre antes de Deus e do mundo, o mais forte tem o direito de levar a cabo aquilo que ele quiser’.”

Sobre a misteriosa vida sexual de Hitler, Bullock pouco investiga, mas às pp. 220-221 levanta as hipóteses de que ele se sentia atraído por mulheres, mas era incapaz de ter relações íntimas com ela por uma das duas razões mais plausíveis: a primeira era que ele sofria das sequelas de uma sífilis mal curada, e a segunda teoria era a de que ele era impotente.



De qualquer maneira, o autor lembra que “subestimar Hitler como um político, dispensá-lo como um demagogo ignorante, significa cometer precisamente o mesmo erro que tantos alemães cometeram no começo dos anos 1930” (p. 231). E arremata:
“Este não foi um erro cometido por aqueles que trabalharam próximos a ele. Seja lá o que for que eles sentissem sobre ele, não importando o quanto eles discordassem da correção dessa ou daquela decisão, eles nunca subestimaram a ascendência que ele era capaz de estabelecer sobre todos que estavam em contato frequente com ele. Generais que chegavam ao seu quartel-general determinados a insistir no desespero da situação não somente falhavam em fazer qualquer protesto quando ficavam face a face com o Führer, como também voltavam movidos no seu julgamento e meio convencidos de que ele estava certo afinal.
O teste final de sua ascendência pertence aos últimos estágios de sua história, quando, com o prestígio do sucesso destruído, as cidades alemãs reduzidas a ruínas, e a maior parte do país ocupado, essa figura, a qual o seu povo não mais via ou ouvia, foi ainda capaz de prolongar a guerra muito além do ponto de desespero até que o inimigo estivesse nas ruas de Berlim e ele mesmo decidisse quebrar o encanto. Mas os eventos daqueles primeiros anos não podem ser compreendidos a não ser que se reconheça que, ainda que muito em retrospecto Hitler possa parecer ter diminuída a sua estatura de grandeza, nos anos de 1938 a 1941, no auge de seu sucesso, ele obteve êxito em persuadir uma grande parte da nação alemã de que nele eles tinham encontrado um líder que tinha mais do que meras qualidades humanas, um homem genial levantado pela Providência para liderá-los até a Terra Prometida.
O capítulo 7 ainda está na metade do livro, mas ele o resume de maneira magistral, mostra como aos poucos “o ser humano desaparece, absorvido na figura histórica do Führer. Somente nos últimos dois anos de sua vida, à medida em que a mágica começa a falhar, volta a ser possível descobrir de novo a criatura mortal e falível por trás [do mito]” (p. 321). “A imagem que ele tinha criado de si mesmo tomou posse dele até que ele se tornou a última vítima da sua própria propaganda” (p. 393). 

Bullock conclui então:
Nos últimos anos de sua vida, Hitler deliberadamente se recusou a exercitar os extraordinários poderes que ele tinha anteriormente mostrado como um orador de massas. Goebbels fez tudo que ele podia para vencer a relutância do Führer. A desculpa de Hitler era sempre a mesma: ele estava esperando por um sucesso militar. Mas de novo alguém pode suspeitar de uma razão mais profunda. Os dons de Hitler como orador sempre dependeram de seu instinto de perceber intuitivamente o que estava nas mentes de sua audiência. Ele não queria mais saber o que estava na mente do povo alemão; precisava preservar suas ilusões a qualquer custo. Até que ele pudesse forçar os eventos a se conformarem ao padrão que ele havia procurado impor, ele se isolou no seu quartel-general. (pp. 423-424).
Felizmente, a humanidade agradece até hoje porque os dias que atenderiam ao padrão hitleriano jamais chegaram. 

No curso de seu livro, entretanto, existe um personagem real que faz o papel de bufão da corte: Mussolini

O líder fascista italiano permeia toda a biografia de Hitler fazendo o papel patético de uma eminência parda e inútil numa comédia pastelão que às vezes emerge do mais profundo poço da tragédia humana. 

Talvez seja apenas mais uma demonstração do antigo preconceito anglo-saxão contra os latinos em geral, mas, para Bullock, Mussolini estava sempre atrasado em relação aos fatos que o atropelavam. 

Nem o bonde andando ele conseguia pegar. 

Mesmo quando se encontrava com Hitler decidido a reclamar da arrogância alemã, era de tal maneira “engambelado” pela verborragia do Führer que saía das reuniões da maneira como havia entrado: calado, com o rabo entre as pernas e decepcionado com a sua covardia. 

Foi, de certa forma, um dos grandes responsáveis pela derrota alemã na frente russa, ao ter invadido os Bálcãs por mera birra contra as manobras de Hitler, das quais Il Duce era sempre o último a saber. 

A intempestividade italiana obrigou Hitler a deslocar importantes divisões da União Soviética para minimizar os danos causados por Mussolini, e isto num momento crucial da guerra, o que terminou causando às forças alemãs um prejuízo fatal e irrecuperável no front oriental. 

A derrocada final da ópera bufa de Mussolini é percebida pelo autor como um claro contraste entre o nazismo alemão e o fascismo italiano. 

Enquanto no primeiro Hitler não só se impôs como absorveu na sua figura ditatorial todas as instituições do Estado, no último ainda havia instituições que funcionavam e partilhavam o poder, como o rei Vittorio Emmanuele III e o Grande Conselho Fascista, responsáveis - em 25 de julho de 1943 - pela queda e prisão de Mussolini, algo impensável na Alemanha nazista. 

Sobre esse acontecimento histórico, Bullock observa (pp. 433-434):
Após a queda de Mussolini, Hitler se congratulou consigo mesmo por não existir monarquia na Alemanha que pudesse ser usada para sacá-lo do governo. O processo completo de nazificação ao qual ele tinha submetido as instituições da Alemanha, desde o Reichstag [legislativo] até as Cortes Judiciárias, dos sindicatos às universidades, tinha destruído, ele acreditava, as bases para uma oposição organizada. Entretanto, duas instituições na Alemanha ainda retinham alguma independência.
A primeira eram as Igrejas. Entre as mais corajosas demonstrações de oposição durante a guerra estavam os sermões pregados pelo bispo católico de Münster e pelo pastor protestante, Dr. Niemöller. Nem a igreja católica nem os evangélicos, entretanto, como instituições, avaliaram como possível tomar uma atitude de oposição aberta ao regime. Ainda que sem o apoio de alguma instituição, qualquer oposição parecia estar condenada a permanecer na desesperada posição de indivíduos arremessando a sua força contra o poder organizado do Estado. Era natural, portanto, que aqueles poucos alemães que se aventuraram em pensar na tomada de ação contra Hitler continuavam a olhar com expectação para o Exército, a única outra instituição na Alemanha que ainda possuía uma certa medida de autoridade independente, se os seus líderes pudessem ser persuadidos a afirmá-la, e era também a única instituição que comandava as forças armadas que eram necessárias para derrubar o regime.
O final patético de Hitler é marcado pelo suicídio conjunto dele e de sua amante (feita esposa no último dia de vida) Eva Braun, e pelo sacrifício da cadela pastora-alemã Biondi, os únicos seres vivos em que ele podia confiar, conforme declarou citando uma frase que só agora eu confesso que soube que foi proferida originalmente por Frederico, O Grande: “Quanto mais conheço os homens, mais eu prefiro os cachorros”. 

Registre-se que os cães não têm nada a ver com a tragédia perpetrada por Hitler, essa figura enigmática que Bullock tenta descrever através da citação do general Halder, que talvez seja realmente a sua melhor definição (pp. 463-464): “Mesmo no auge do seu poder, não havia para ele nenhuma Alemanha, nem havia soldados alemães pelos quais ele se sentisse pessoalmente responsável; para ele havia – primeiramente de maneira subconsciente, mas nos últimos anos completamente consciente – apenas uma única grandeza, uma grandeza que dominava a sua vida e à qual o seu gênio maligno sacrificou tudo – o seu próprio Ego”. 

Pois foi a esse Ego que milhões de alemães e dezenas de milhões de outros povos tiveram suas vidas sacrificadas em vão. 

Que – pelo menos – isto sirva para que semelhante catástrofe jamais se repita. 

Mesmo assim, esse desejo sempre será muito pouco diante de tamanha atrocidade. 

Tragédia que, por sinal, foi perpetrada em nome do Nada, já que nenhuma contribuição deixou o nazismo à História da humanidade, como afinal conclui Bullock (p. 487):
As grandes revoluções do passado, seja lá qual fosse o seu destino último, foram identificadas com a liberação de certas ideias poderosas: consciência individual, liberdade, igualdade, autonomia nacional, justiça social. O nacional-socialismo não produziu nada. Hitler constantemente exaltava a força sobre o poder de ideias e se deliciava em provar que os homens eram governados pela cobiça, pelo medo e suas paixões mais baixas. O grande tema da revolução nazista era a dominação, travestida como doutrina da raça, e, falhando isso, uma “destruição vingativa”. Esse é o seu vazio, essa falta de qualquer coisa que justificasse o sofrimento que ele causou, mais do que a sua própria vontade monstruosa e ingovernável que faz Hitler ser uma figura igualmente tão repelente e tão estéril.




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Hitler: biografias comparadas


Hitler - a biografia por Ian Kershaw


Hitler - a biografia por Joachim Fest



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