No seu livro "Como Nosso Mundo se Tornou Cristão" (tradução de Marcos Castro, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2010), o historiador (ateu) francês Paul Marie Veyne, numa nota de rodapé à pág. 226, dá uma visão interessante e um tanto quanto inusitada a respeito da expansão do islamismo em áreas antes - pelo menos nominalmente - cristãs, que contraria a versão tradicional de que o Islã forçou a conversão dos povos a que submetia a fio de espada pela jihad ("guerra santa"), e que as igrejas cristãs do Oriente Médio e da África eram majoritariamente influenciadas pelas heresias do nestorianismo e do monofisismo, o que as tornou, de certa forma, docemente receptíveis a uma doutrina monoteísta clássica como a defendida pelo Islã. Para Paul Veyne, o que diferencia a abordagem cristã da muçulmana quanto ao proselitismo é a identidade de grupo (uma espécie de sentimento de "nação") que dá ao último um certo senso de superioridade difícil de resistir. Uma lição que, aparentemente, continua muito atual. Confira o excerto:
Esta palavra proselitismo abarca várias atitudes bem diferentes. Uma religião cuja ambição é universal, como o cristianismo, pretendia converter todos os homens à sua verdade, para salvação deles. Em compensação, nos seus inícios, o islã conquistador quis que triunfasse por toda a parte a dominação da religião que é superior a todas, e não queria converter os povos dominados, conquistar as almas; o que importava ao islã era que a religião superior fizesse a lei, que os Crentes fossem os mestres. – Quanto à palavra identidade, também se refere a atitudes muito diversas. O islã é uma identidade cujos caracteres são muito particulares. Ser muçulmano é pertencer a uma comunidade de crentes pluriétnica e politicamente dividida e conflituosa; contudo, contra os Infiéis, os Crentes de qualquer nacionalidade, formam um grupo solidário cujos membros devem (ou deveriam) dar mão forte uns aos outros. De alguma forma, essa Comunidade religiosa que não é nacional também não é escolhida, subjetiva, como não são escolhidas as identidades nacionais, assim como ser francês, brasileiro ou belga. O que explica talvez uma dissimetria: enquanto velhas regiões cristãs converteram-se em massa ao islã (pareceria que o islã se impunha e impunha a todos seu profundo e impressionante sentimento de superioridade), as conversões de muçulmanos ao cristianismo foram raríssimas e quase impossíveis. Porque, se se provar, ao francês que eu sou, que outras nações são preferíveis à França, ainda que eu admitisse isso e deplorasse meu nascimento, minhas lamentações não mudariam em nada meu destino, que é ser francês. Renegar o cristianismo é uma traição, é renegar sua profissão de fé e preferir o erro à verdade, enquanto renegar o islã seria um absurdo, como pretender mudar de sexo, de natureza. Em uma palavra, as duas religiões não estão situadas da mesma maneira no fundo dos cérebros.