O teólogo católico (da Galícia) Andrés Torres Queiruga sempre está às voltas com a condenação do clero conservador espanhol, que o acusa de heresia por sua defesa da teologia da libertação, além de outras opiniões que defendem o universalismo, ou seja, a salvação final de todas as pessoas, indistintamente. Entre as suas muitas opiniões polêmicas, na entrevista abaixo ele defende que mesmo Hitler pode chegar a ser salvo. Também não se omite de manifestar o que pensa sobre uma série de assuntos, entre eles a questão do mal. A longa entrevista foi traduzida e publicada no sítio do IHU - Intituto Humanitas Unisinos em maio deste ano:
‘Deus não condena ninguém. Nem a Hitler!’, afirma teólogo espanhol
Andrés Torres Queiruga é o teólogo da síntese. Uma síntese difícil de realizar em determinadas circunstâncias, e mais ainda em nosso país [a Espanha], neste momento. Um pensador enraizado na Galícia, mas aberto ao mundo: muito galego e muito universal. Teólogo e filósofo ao mesmo tempo. Clássico e moderno, com um IPhone na mão, depois de ter utilizado um dos primeiros computadores, aquele que pesava mais de 20 quilos. Um homem livre e preso à sua consciência e à sua liberdade. Empenhado há muitos anos em “repensar a fé” e em recuperar as chaves centrais da crença e da salvação. Por isso, quase todos os seus livros giram em torno dessas duas palavras: recuperar e repensar. Um exemplo é o livro que nos apresenta, Repensar el mal.
A entrevista é de José Manuel Vidal e está publicada no sítio Religión Digital, 25-04-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Andrés, bom-dia. Estamos felizes por contar com sua presença aqui. É um prazer... E estava na hora.
Bom-dia (risos). Sim, na verdade tinha vontade de estar aqui.
Por diversos motivos foi se atrasando a entrevista, mas hoje, finalmente, conseguimos fazê-la. E vamos começar com o livro Repensar o mal. Editado em galego (pela editora Galaxia, em Vigo) e em castelhano (pela Trotta). Mais grosso em galego e mais fino em castelhano...
... mas o livro é o mesmo (risos), com fontes diferentes.
Qual é a sua tese fundamental? Porque é um livro de fundo...
Sim. Eu estava há muito tempo preocupado com isto. Ainda quando era estudante, tive a intuição de base. Mas as duas palavras essenciais, que você lembrava, foram sendo inconscientemente: repensar e recuperar. E ao lhe ouvir estava pensando que é verdade, que um dos neologismos que introduzo (porque a ação de repensar exige novas palavras, para poder vestir os pensamentos que busca...) é o de falar da “via curta da teodiceia”. Porque o meu será um repensamento bastante radical do problema, mas ao mesmo tempo reconheço que até agora as pessoas se arranjaram bastante bem, com a antiga lógica com que se pensava o mal.
Qual era essa lógica?
Vou dizer agora... Porque, sem dúvida, hoje nos damos conta de que dizer que Deus é onipotente, bom, que nos quer infinitamente e que poderia acabar com o mal no mundo, torná-lo perfeito... mas que não quer, é uma contradição.
Não quer porque dizíamos que assim limitava a nossa liberdade...
Ou porque era um mistério, ou mil coisas. Mas, realmente, isso não vale. Seu eu tenho um amigo que está no hospital e me diz que ele poderia, apenas querendo e sem trabalho, acabar com todo o sofrimento do hospital, mas que tem motivos para não querer... Se eu pensasse que Deus eliminaria todo o mal do mundo sem que custasse trabalho nenhum, e não o fizesse... não poderia afirmá-lo.
É a pergunta que muita gente se faz diante das grandes catástrofes: se Deus é tão onipotente como dizemos, por que não interceptou o tsunami no Japão?
E veja que o Papa, que é um bom teólogo, quando chegou a Auschwitz, com boa vontade, mas se perguntou onde estava Deus, porque consentiu com isso. Se isso fosse verdade, o ateísmo teria razão. Porque, invertendo a frase, se Deus estivesse presente e não o consentisse, não haveria Auschwitz nem o Holocausto. Logo, seria preciso levar Deus ao Tribunal de Haya. Naturalmente, nem o Papa nem ninguém pensou nisso. Mas é certo que, durante muito tempo, não se percebeu a contradição. Você me perguntava por que... Porque havia uma lógica mais profunda, a lógica da confiança: a fé cristã, a tradição de um Deus bom, de um Jesus que entrega sua vida por todos... Isso de “eu não posso dar razões contra o mal, mas sei que isso não pode ter nada a ver com Deus”. Essa tese, no fundo, é a que está no relato do Paraíso. A confiança tão radical da sociedade em Deus se admitia porque o ateísmo (que é um fenômeno dos séculos XVIII-XIX) não existia culturalmente. Deus era uma evidência: estava aí e se sabia que era bom; então, se existia o mal, alguma razão haveria. Se a objetava, ou se a saltava ou era vista muito superficialmente...
E isso se rompe em algum momento?
Com a chegada da modernidade. Com a chegada da “era crítica”, de que falava Kant, já não toleramos contradições e nos atrevemos a julgar. De fato, a cultura levou a ideia de Deus ao tribunal da razão, e a partir desse momento, se fez necessário uma “via longa”.
Que é o que você faz, a via que percorre.
Exatamente: repensar e recuperar... Dedico um longo capítulo à confiança da “via curta”. Há uma frase que diz: “eu parto do amor”. Porque creio que a única coisa que podemos estar seguros a respeito de Deus na teologia é que nos ama infinitamente, sem condições, e que é a nossa salvação. Se eu aplico esta lógica assumindo que mesmo assim há mal, é porque o mal não pode ser evitado. Se entro em uma casa e ouço uma criança gritando de dor em sua cama, e vejo sua mãe, sei que a mãe não pode evitar a dor de seu filho; que, se pudesse, não o permitiria. Mas é impossível que o evite. Isaías capta esta lógica autêntica, a lógica do amor: “Poderá uma mãe esquecer-se do filho de suas entranhas? Mesmo que ela fosse capaz de se esquecer, eu não me esquecerei”. Esta é a lógica que durante a tradição tornou possível saltar a contradição da teodiceia ao uso, da qual Kant disse que havia fracassado. Eu sempre digo que a teodiceia se faz – em geral, assim o fazem todos os autores – com pressupostos antigos e se critica com razões novas. E o que quero fazer ver é que devemos revisar esses pressupostos antigos para que a cultura atual, a que coloca objeções, possa responder no mesmo nível. Isso é a “via longa”.
O que trata de demonstrar com a “via longa”?
O livro tem um subtítulo: “Da ponerologia à teodiceia”. Uma palavra grega que significa “mal”. Ponerologia é um tratado sobre o mal. Aí parto de uma evidência: o mal é um problema humano, não imediatamente religioso. Quer seja crente ou ateu, terá crises e doenças, e vai morrer. As crianças dos crentes e dos ateus nascem da mesma forma... Porque o mal é um problema humano, que afeta a todos, anterior à resposta ou não-resposta religiosa. Por isso, é ponerologia, um tratado que prescinde do fato de ser crente ou ateu.
Antes dizíamos que o mundo era finito.
E é finito (risos). Essa é a chave sobre a qual eu me apoio. Seu eu pergunto por que há mal no mundo, por que existe, a resposta é que o mundo produz mal. Se eu tenho uma dor de estômago, logo penso que eu tenho uma úlcera. Há dor no mundo. Há mal.
Por que o mundo está mal feito?
Vamos por partes, porque com os problemas se deve ir devagar. A primeira coisa é que o mundo produz mal. A segunda, que todo mal parece ter uma causa no próprio mundo... Atualmente, depois do tsunami no Japão, é algo evidente: vimos na televisão e nos perguntamos por que se produz o tsunami. Porque há um terremoto, porque há falhas tectônicas... Ou seja, que nós, automaticamente, diante de um mal horrível, pensamos que foi produzido pelo mundo. E isto é algo que mudou. Porque, com o terremoto de Lisboa, o que se pensou foi por que Deus permitiu uma coisa dessas. É uma mudança radical de cultura: tudo o que se produz ao nível empírico no mundo, tem uma causa dentro dele. Por isso, o século XIV, com a peste negra, se encheu de procissões; o século XX e XXI, com a Aids, se encheu de laboratórios, porque sabemos que o vírus não vem de Deus nem do demônio, mas que tem uma causa dentro do mundo. E para a ciência isso basta. Para um médico, como médico, o problema do mal fica nisso: há doenças, descubro sua causa, encontro o remédio se consigo, e acabou, como médico, meu problema do mal. Mas o mesmo médico, enquanto pessoa – como filósofo – se pergunta se não poderia existir um mundo sem mal. Que o mundo produz mal é evidente. Mas se fosse possível um mundo em que não se conhecesse mal algum, todos estaríamos livres de padecê-lo.
E ao mundo que produz mal, a ciência o está delimitando pouco a pouco...
Sim, mas não inteiramente. Sempre haverá mal. Às vezes os mais jovens se aborrecem quando disso isso, mas sempre foi assim: existe e sempre existirá.
E por quê? Por que não pode haver um mundo sem mal? Por que é impossível pensar um mundo assim?
Desde pequenos nos meteram mitos na cabeça. Falaram-nos do Paraíso, e então o mundo parecia poder ser perfeito. Mas isso é uma contradição: se foi tão perfeito, por que caíram tão de repente? Se buscarmos a raiz última do mal, eu creio que a encontramos na finitude: o finito, como tal, não pode ser onicompreensivo, nem ter todas as perfeições, mas tem carências e vai ter choques com outras realidades finitas. Quando nós examinamos a realidade, qualquer mal que vemos foi um choque de realidades finitas, ou simplesmente uma carência: se tenho fome, é porque me falta algo que, se fosse infinito, teria. Isto, levado ao senso comum, é o que dizem as pessoas, quando asseguram que não se pode fazer uma omeleta sem quebrar os ovos.
Nunca chove ao gosto de todos.
Mas a vida é boa.
Inclusive o mal inocente?
Inclusive esse mal inocente. A criança que fica doente, fica doente porque se contagiou com um vírus, ou o que for. Também a causa do mal do inocente é produzida pelo mundo. Os animais também sofrem...
Logo, o mundo é finito e sempre produzirá o mal.
Claro. E isto sempre intuímos: não se pode estar na procissão e tocar o sino. Ou, como disse um professor meu, não se pode chupar e soprar ao mesmo tempo. Em nível filosófico, disse muito bem Spinoza: toda determinação é uma negação. Se você é um homem, o que é fantástico, não pode ser mulher, que também é fantástico. Não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo; por isso, um círculo não pode ser um quadrado. É uma impossibilidade metafísica: o próprio fato de ser circular impede a possibilidade de ser quadrado. É incompatível.
E o salto para a teologia?
Um momento (risos), porque vou por passos. E onde quero chegar é poder pensar, não imaginar. A imaginação produz infinitos: a criança acredita que tudo é possível mas, quando se pensa e, de fato, se olha a evolução do mundo... ou o crescimento de uma pessoa, há algo mais maravilhoso do que as mãos? Luta com um leão. E diga ao leão que pegue uma caneta e escreva... Ao determinar, você nega outras possibilidades. E por isso os grandes donos das utopias, ou acabam em catástrofes, como as modernas, ou reconhecem que são imaginações. O próprio Marx, em seu entusiasmo humanista de buscar a sociedade perfeita, onde pela manhã se caçaria e à tarde descansaria, compreendeu que não, que o mundo nunca vai ser tão perfeito.
Mas pode-se tentar melhorá-lo.
Claro, o que podemos fazer é melhorá-lo. E é aqui que entra a religião, o salto para a teologia que você dizia. Como muitos outros, toda pessoa vai enfrentar em sua vida o problema do mal. E toda pessoa tem uma resposta para este problema. Inclusive se inventou outra palavra: pisteodiceia (“Písteos” é “fé”, exposição da fé). No sentido filosófico e relacionado com o mal, está Sartre, que diz que há mal no mundo, logo, o mundo produz náuseas, é um asco. Camus pensa que o mundo é absurdo e Sísifo vai estar sempre carregando a pedra até o topo da montanha, que sempre volta a rolar morro abaixo... Temos que imaginar que sua resposta é que, em um mundo contraditório, ele salva sua dignidade enfrentando-o, mesmo que saiba que sua luta é absurda. Ou Schopenhauer: se o mundo é absurdo, o melhor seria parar. E o mal também tem uma resposta religiosa. Há diferentes pisteodiceias. Como crente, como teólogo cristão, eu tenho uma resposta apoiada em Deus, razão pela qual falamos de teodiceia: justificação de Deus. Mas ele não necessita de justificações: o que justificamos é a nossa ideia de Deus. Eu tenho que responder a quem me pergunta como posso crer nesse famoso Deus bom e onipotente... O dilema de Epicuro no século IV a.C.: Ou Deus quer e não pode eliminar o mal do mundo, e então não é onipotente, ou pode e não quer, e então não é bom. Ou não pode nem quer? Este dilema, em nível lógico, é horrível. Na “via curta” é rompido pela confiança: sabe-se que não sabe responder, mas que Deus terá que ter alguma razão, porque ele é bom, porque é Deus. É curioso que Lactâncio, que reproduz o dilema de Epicuro, toma-o tão superficialmente que acaba dizendo que, se não houvesse mal, não distinguiríamos o bom do mal, e por isso vale a pena que haja mal no mundo... Uma resposta que hoje não satisfaz nem a uma criança. Mas eles viviam na “via curta”, viviam essa fé. Nós, agora, a partir da crítica, temos que responder. Da minha parte, da única coisa que estou certo é que Deus é amor, é infinitamente bom.
E qual é a tua resposta?
Aqui entra a consequência da ponerologia. Dissemos que não existe a possibilidade de um mundo sem mal, que seja perfeito. Então, não faz sentido nos perguntar por que Deus não fez um mundo perfeito. Será como nos perguntar por que não faz um círculo quadrado. O dilema de Epicuro esconde uma armadilha, mesmo que ele não se tenha dado conta: é uma pergunta sem sentido porque está dando como evidente, como o faz ainda hoje muita gente, que é possível um mundo perfeito. Nas aulas e no meu livro dou este exemplo: como o problema é muito difícil, vamos dividir a aula em três metades, para discuti-lo. Então, sempre se produz certo movimento, as pessoas começam a se levantar... E alguém diz que é preciso ter um pouco de cuidado: cai na conta de que disse uma besteira, porque dividir uma aula em três metades é impossível. Estou falando sem dizer nada. E se me dizem “Certo, mas Deus poderia”, digo que não se trata de se pode ou não, quando o que está dizendo já carece, por si, de sentido. Portanto, não estou dizendo que existe algo que Deus não pode fazer: simplesmente nego uma contradição. Se o mundo não é perfeito, não posso esperar que Deus o faça, não posso pretender que divida a aula em três metades.
De acordo.
Mas com isto não eliminamos totalmente o problema, porque resta uma pergunta. Deus sabia que ao criar o mundo não criava um Deus, porque o mundo era finito. E se era finito, no mundo haveria mal... E à medida que vamos avançando na vida, nos damos conta de que esta tem muitas alegrias – eu não sou pessimista –, mas também muitas durezas e tragédias. Resta uma pergunta: Por que Deus, sabendo disto, criou o mundo? Eu me apoio em exemplos. Vamos perguntar a alguns pais... Hoje é um problema real para muitos pais a certeza de que trazer filhos ao mundo representa fazê-los passar por doenças, crises, morte... Trazem-nos a este mundo. Por que fazem isto? Se o pai e a mãe forem autênticos, estão certos de que valerá a pena, caso se dedicarem a eles com todo o seu amor.
Ainda que haja quem diga o contrário: não temos filhos porque não vale a pena. Vão padecer mais o sofrimento e o mal do que as coisas boas...
Por isso digo que não posso responder ao ateu que diz que o mundo é absurdo, que não vale a pena. Eu não sou pessimista: eu creio que vale a pena e que há um referendo na Humanidade. Que todos, no fundo, sabemos que vale a pena. Por isso continuamos a ter filhos.
Não influi também o instinto?
Também. Mas o instinto já não está sozinho: agora temos cultura, e estas coisas se pensam e se falam. Se Deus lhe diz que vale a pena, que ele vai cuidar da tua vida para lhe apoiar na luta contra o mal, tem que confiar nele. Isto permite uma leitura da Bíblia que vai ao núcleo mesmo da Bíblia: qual é o fio condutor da Bíblia? Eu diria que a preocupação de Deus pelo mal. Veja: o que é conhecer a Javé? Fazer justiça ao órfão e à viúva, preocupar-se com o estrangeiro e o escravo... Que mandamento deixa Jesus de Nazaré? Que nos amemos. Seu amor não era uma coisa romântica: era dar de comer a que tem fome, lutar contra o mal. Creio que Deus não teria criado o mundo se ele não vivesse debruçado sobre o mundo, se de algum modo não fosse possível nos livrar do mal. Um pai e uma não podem garantir ao seu filho que vai ser feliz, que sua vida vai ser uma vida perfeita, mas vão tentar.
Logo, não podemos pedir contas a Deus pelo mal. E, como diz no seu livro, Deus é “anti-mal”.
Claro, é a definição final: Porque Deus nos criou por amor – todas as religiões veem a Deus como quem nos aproxima da perfeição –, pode nos livrar do mal, pode nos salvar. É o último passo da teodiceia cristã, o mais difícil. E pode haver objeção a esta teoria, porque se eu digo que a finitude faz o mal, ou torna impossível um mundo sem mal, nós que esperamos a salvação, ao nos salvar seguiremos sendo nós. Portanto, seguiremos sendo finitos? Então seria impossível a salvação escatológica.
Mas, uma vez salvos, já não seremos finitos. Ou dizíamos isso...
Um momento (risos). Um autor do qual eu aprendi muito, faz uma colocação parecida com a minha, que é por onde você está apontando. Não usa as minhas palavras porque não o detalhou tanto, mas quando chega a esta objeção, dá marcha à ré. Não sabe respondê-la. Não sabe que pode buscar na finitude. Temos que nos dar conta de que, buscando, entramos em uma lógica muito peculiar, na qual confiamos em Deus e falamos da salvação das pessoas. Aqui não há clareza: você acaba de aludir ao fato de que a própria escolástica, quando falava da salvação, se encontrava com um problema e dizia que não podemos mostrar a coerência interna de maneira positiva; que só podemos mostrar que não é contraditória. Podemos mostrar racionalmente que não é impossível que Deus nos salve plenamente... Como podemos responder, então, a isto, à maior objeção? Com experiências que nos ajudem. E a primeira é que nem sempre o que não é possível em um dado momento deixa de sê-lo mais tarde. Santo Irineu, que é um teólogo que admiro e quero muito, quando lhe perguntaram porque Jesus Cristo havia aparecido tão tarde se Deus nos queria tanto, disse que isso era uma insensatez: que uma mãe não pode alimentar com carne o seu filhinho de dois meses, mas depois, quando estiver maior, pode dá-la.
É uma boa saída.
Não resolve totalmente, mas abre a possibilidade de um futuro. Porque também é verdade que experimentamos o mal como inevitável no mundo, mas ao mesmo tempo podemos lutar contra ele e diminuí-lo. O mal é um desafio que podemos vencer.
Experimentamos isso inclusive como inevitável em nós mesmos...
Quando se está doente, se quer ficar curado. Percebe que o mal é aquilo que não deveria ser. A pessoa é um ser finito, mas com uma abertura infinita. É o mistério do ser humano. Nunca estamos acabados... A frase de Pascal, de que não há nada finito que possa encher a nossa capacidade de conhecer ou superar a nossa capacidade de amar. Não há nada. Nossa segunda experiência controlável, portanto, é que temos uma abertura infinita. A terceira é a experiência do amor, o que fascinou o jovem Hegel. Ele começou fazendo sua filosofia sobre o amor, e depois – uma pena – entrou no espírito, a razão... e praticamente o abandonou. Mas quando ele fala do amor, e o faz com paixão, diz que é uma relação muito curiosa, porque nós recebemos a essência da pessoa amada, que por sua vez a recebe de nós... E quanto mais se dá, mais se tem. O próprio senso comum o compreende: tudo o que é meu é seu e tudo o que é seu é meu. Você pode estar às vezes mais feliz com a alegria de seus filhos do que com suas próprias alegrias.
Isso os pais vivem diariamente.
Eu sempre cito uma parte de Tristão e Isolda de que gosto muito: chega o momento da experiência amorosa e Tristão diz: “tu és Tristão e eu sou Isolda”. E Isolda lhe responde: “tu és Isolda e eu sou Tristão”. Esta reciprocidade no amor, que não anula a pessoa, porque quanto mais se ama, mais se é (quanto mais você ama os seus filhos, mais José Manuel você é, mais pai), nunca diminui e cria uma relação muito especial.
Além disso, você não vive isso como diminuição, mas como crescimento.
Claro, pelo contrário. Quanto mais se dá, mais se tem. Esta é a possibilidade que nos é aberta a partir da fé, que está apoiada em razões. Deus é capaz de se entregar nesta abertura infinita, de tal maneira que nós podemos dizer, como Tristão e Isolda, que somos Deus, que está em nós. Podemos negar a distinção. No livro cito um parágrafo de São João da Cruz, onde diz que já nesta vida, na experiência de Deus, na comunhão, Deus se entrega de tal maneira à alma que a alma é tão dona de Deus quanto Deus é dono da alma. A alma pode dar a Deus a quem quiser, o mesmo que Deus pode dar a alma a quem quiser... Nesta reciprocidade a nossa finitude não desaparece. Mas a comunhão com Deus é uma infinitude, algo plenificado, livre do mal. Então tudo tem coerência: Deus cria o mundo sabendo que vai existir o mal, nos apóia com todo o seu amor e nos demonstra que é sua grande preocupação ao longo de toda a revelação, e ao final nos assegura que já agora podemos viver esta alegria na esperança de que estamos habitados por Deus, por uma Vida Eterna, que é a categoria teológica que me encanta, que salta e nunca se apaga. Uma vida que, mesmo que possa ser ferida, tem Deus tão enraizado nela que fica libertada do mal, como dizia São Paulo, que é a morte, e nos plenifica na eternidade.
E o que eu lhe pergunto agora, depois desta aula magistral...? (Risos).
Pergunte-me pelo último capítulo, que é onde trato de repensar certas verdades de nossa fé levando a sério que Deus é realmente o “anti-mal”.
Por exemplo, uma das coisas que me chamaram muito a atenção, e isso que já há poucas coisas que me surpreendem teologicamente falando, é a sua descrição e suas afirmações sobre o inferno.
Claro. E sobre o diabo. É que é uma consequência imediata. Sem dúvida, enquanto o inferno nos diz algo que penso que é preciso recuperar. Porque a nossa vida é uma vida humana e livre que temos que construir. E você, como pai, sabe que uma vida que começa pode fazê-lo entrando no caminho do bem ou do mal; pode realizar-se ou destruir-se... No Deuteronômio está posto preciosamente: Diante de ti estão a água e o fogo, a vida e a morte... tens que escolher. Portanto, o inferno, o transfundo do inferno, nos fala de que a vida humana pode se arruinar. Não porque Deus a castigue, mas porque nós, usando mal a nossa liberdade, não acolhendo o amor salvador de Deus, podemos estragar a nossa vida.
Deus não condena a ninguém?
A ninguém!
Nem a Hitler? Antes se dizia que pelo menos a Hitler...
Não. Há uma frase que digo que tem copyright: Deus, como consiste em amor, consiste em estar amando. Logo, Deus não sabe, nem pode, nem quer fazer outra coisa que não seja amar. Nele não há mais que amor e salvação. Por isso, o livro no qual comecei a desenvolver este pensamento o intitulei Recuperar a salvação. De Deus só nos chega salvação: Deus não castiga. Nós podemos nos negar a acolher seu amor, mas pensar que Deus nos castiga, apesar das frases da Bíblia, que devem ser entendidas como formas de se expressar, é um erro.
Por que, eclesialmente, fomos ameaçados durante tantos anos com a teologia do medo?
Porque a cultura é assim: enquanto não repensamos as coisas, não nos damos conta do fundo, do autêntico. Vamos seguir pensando: Até que ponto nós podemos arruinar a nossa vida, se morremos entregues ao mal, como seria o caso de sua alusão a Hitler? Eu me preocupava com o inferno em Recuperar a salvação. E você me fez esse raciocínio: se nós somos mortais – como filósofo não posso dizer mais que nascemos e somos mortais –, Deus poderá tornar-nos imortais; assim como nos tirou do nada, pode dar-nos a Vida Eterna. É o pensamento da Bíblia: a imortalidade como um dom de Deus. E se a imortalidade é um dom que Deus nos dá, se a acolhemos, entramos nela; caso contrário, acabamos ao morrer. Esta foi a primeira solução, minha hipótese teológica, que nunca obriguei a compartilhar. O inferno é um castigo de Deus? Minha maneira teológica de interpretar isto é uma teoria que, me dei conta, tem muita presença na tradição. Ainda hoje muitos teólogos defendem que o inferno seria a Morte Eterna... Eu já não penso assim. Tenho outra hipótese que me parece mais coerente.
A das duas partes da mesma pessoa de Anthony de Mello...?
Exatamente. Ele não tinha esta teoria, mas me fez ver que, na parábola do Juízo Final, que é preciso dizer que é uma parábola que fala do amor, as ovelhas e os cabritos não são duas classes de pessoas: são dois aspectos de uma mesma pessoa. Todos somos um pouco ovelha e um pouco cabrito.
Alguns mais que outros... (risos).
Bom, mas creio que não é preciso explicá-lo: certamente, não há ninguém absolutamente bom nem ninguém absolutamente mau. Então, se levamos isto a sério, dado que Deus só sabe amar e não tem outro interesse senão nos salvar, estou convencido de que não há ninguém absolutamente mau. Nem sequer Hitler. Se pudéssemos penetrar no fundo do seu coração, apesar de todo o mal que fez – muito mais que bem –, encontraríamos mais bondade que maldade. Porque toda pessoa, no fundo, busca o bem.
Não existe o inferno nem há ninguém condenado...
Um momento (risos). Pensemos em uma pessoa que morre. Em um Hitler, mesmo que não goste de falar em nomes próprios porque não temos o direito de julgar... Se não é totalmente mau, está claro que tem toda uma parte, alguns aspectos, algumas capacidades em seu ser que o fecharam para Deus, por egoísmo, por agarrar-se ao mal. Nessa medida, Deus não pode salvá-lo. Mas, na medida em que esta pessoa mantém bondade, desejo de felicidade, luz... nessa medida, como Deus não quer outra coisa, o salvará. Então, para mim o inferno é a perda eterna de possibilidades, plenitude e felicidade. Isto é muito sério... Recordo que na primeira vez que expus isso a um grupo de teologia que temos desde 1970, uma pessoa a quem quero muito, que é profundamente mística, se horrorizou: “podemos perder eternamente!”. Diminuir algumas possibilidades...
... Claro, porque depois há uma parte que sempre é boa, para nos entender...
Sim. Estaremos falando de uma pessoa que eternamente esteja menos realizada do que poderia, porque se castigou a si mesma, impedindo parte do bem de Deus.
A pessoa opta abertamente?
Claro: a pessoa diminuiu o seu ser, e não permitiu a Deus mais que algumas capacidades, em vez de todas as suas potencialidades. Recupero, como vê, o horror do inferno, mas evito o que me parece uma barbaridade, que é pensar que Deus mantém as pessoas sofrendo eternamente. Orígenes e Santo Agostinho, ou um dos dois, já não lembro, perguntaram: pode uma mãe ser feliz se sabe que seu filho está condenado eternamente?
O inferno é um dogma?
O dogma é a possibilidade de condenação. O que temos que repensar é o que significa isso. Falo disso em um livrinho que tem por título O que queremos dizer quando dizemos inferno. Eu creio que é uma chamada preocupadíssima de Deus para que não entremos pelo caminho da nossa destruição. Há uma frase que gosto muito de citar: “Quanto tempo a Teologia necessitará para compreender que as ameaças divinas que aparecem na Bíblia não são mais que a preocupação do amor de Deus”. Está se preocupando para que não arruinemos a nossa vida... Um exemplo que gosto de dar é a situação de estar caminhando pela rua e ver uma mãe que diz ao seu filho: “Se fizeres isso te mato!!”. Não tomemos a frase ao pé da letra, porque a preocupação da mãe não é matar o filho, mas evitar um dano. Daqui se deduzem outras coisas: o tema do milagre, a oração de petição... que me preocupam muito, ainda que para isso precisaria de mais tempo.
Claro. Além disso, quem ficou inquieto e quiser saber mais, que compre o livro.
Isso (risos).
Estamos há mais de 40 minutos conversando e eu não penso em lhe fazer outra pergunta teológica, porque me daria outra aula...
Eu gosto de falar de teologia...
E eu gosto de escutá-lo, porque você faz isso com paixão. Mas agora vamos fazer perguntas jornalísticas... (risos). Para não terminar a entrevista limitando-nos ao âmbito teológico pura e simplesmente, mas imiscuindo-nos um pouco em temas da atualidade... Com Rajoy a Igreja estará melhor que com Zapatero?
Não sou profeta nem filho de profeta. Não sei, mas creio que a Igreja nunca deveria estar cômoda com ninguém. Tem que pegar essa linha vermelha da Bíblia de que falava, e preocupar-se, sobretudo, com os que sofrem, com os que estão sofrendo a crise econômica; preocupar-se com a justiça, a liberdade e a igualdade. Como não temos uma política perfeita, a Igreja tem que manter sua independência e estar muito atenta, sobretudo, a quem sofre na Humanidade, e em que medida ela pode ajudar a política, ou criticá-la, se for preciso, para que haja menos sofrimento humano.
De cima, como autoridade moral?
Não, de baixo. Ao participar da sociedade só deve responder ao mandamento último e definitivo de Jesus de Nazaré: amar, isto é, preocupar-se com quem tem fome, com quem está na prisão... Sem nos alinharmos com ninguém, nem com Rajoy nem com Zapatero. A Igreja tem que se aliar com a fraternidade. Isto, caso o levar a sério, é muito exigente. Inclusive mudaria prioridades na pregação da Igreja... Ligo outra vez com o anterior: o pecado não é mau porque prejudica a Deus, mas porque prejudica a nós. Quem diz isso é Santo Tomás. Tudo o que a Igreja disser à sociedade tem que ser com a finalidade de que alguém passe menos mal, com o objetivo de ajudar para que tenha uma vida menos desumana.
A beatificação de João Paulo II aponta nessa direção ou não?
Eu creio que aponta para outra coisa. Não quero agora julgar João Paulo II, mas creio que é um procedimento que pode ser qualificado de arbitrário. Será feito sem consenso de toda a Igreja e queimando etapas. Creio que o fato de ser feito santo súbido não é certo, não devia ter sido assim, e que aponta para a pouca participação que há na Igreja. E me atrevo a dizer: a Igreja necessita democratizar-se. Eu não tenho medo de utilizar a palavra democracia, porque a Igreja tem que ser muito mais que isso. A base tem que estar mais presente, não pode haver um culto do líder, dos que governam...
Mas Andrés, por que essas coisas que dizemos há muito tempo (a corresponsabilidade, a Igreja Povo de Deus...) temos que repeti-las, continuar pedindo-as depois de 40 anos?
Depois de dois mil anos, e se a Humanidade durar outros dois mil, teremos que voltar a pedi-las. Porque a Igreja é feita de pessoas e continuamente estamos recaindo em lógicas muito humanas.
Lógica de poder?
Caímos continuamente nela. É a tentação.
O pêndulo foi demais para a direita?
Sim. Neste momento, muito.
E como pode voltar para o centro?
Eu creio que com a participação de todos. Com a fidelidade. Porque é muito cômodo sair da comunidade... Eu não sou santo e também você, José Manuel, não é santo, ainda que seja muito bom. E quando criticamos, temos que nos sentir implicados na crítica. E que o que estiver mal está mal, independente de quem o fizer; o papa ou o coroinha... Uma crítica construtiva é a que pensa no bem da Igreja, a que parte do Evangelho.
A crítica e o recentramento eclesiástico se exigem mutuamente? Como se pede de baixo para cima?
Eu penso que com a mobilização de todos. Eu, por exemplo, sei que há muitas pessoas que, com todo o direito, não estão muito de acordo com a minha teologia. Para mim, na medida em que me parece que defendo a ideia de um Deus puro amor e puro perdão que nos torna mais humanos, me faz bem. Estarei sempre disposto ao diálogo e à crítica, até a mudar alguma teoria se me demonstrarem que está incorreta, mas creio que esta – que me produz tantos desconfortos – é a minha maneira de contribuir para que a nossa comunidade esteja mais viva, em defesa da minha participação democrática na Igreja. Eu nunca fui um grande eclesiólogo, mas vejo que na Igreja há um problema prático, o mais sério, que é que não está democratizada a fundo. O Concílio fala da Igreja como Povo de Deus, e dentro do povo há serviços. Foi isso que disse Jesus de Nazaré: que na Igreja, quem manda tem que estar abaixo. Hoje uma sociedade política é mais democrática que a eclesiástica, quando Jesus nos disse que tínhamos que ser imensamente democráticos.
E isso nos está passando a fatura em nível de credibilidade, de confiança social e autenticidade...
E a nível de um certo ressentimento social. Por exemplo, com a questão dos abusos a menores na Igreja: representam apenas 1% de todos os abusos da sociedade, e muitos acreditam que seja o único coletivo abusador. Me dá muita pena que se esteja utilizando isso como escudo para tapar os 99% dos abusos restantes. Nós temos que criticar muitíssimo todo este escândalo na Igreja, que contradiz diretamente o Evangelho, mas também temos que pedir que a sociedade reconheça que o problema também tem que ser enfrentado fora da Igreja. E não utilizar as acusações à Igreja para tapar um problema que é, acima de tudo, social.
Mas também não podemos pedir à sociedade o que nós não fazemos. A Igreja tapou esses escândalos durante tanto tempo...
Mas hoje está fazendo a sua confissão e enfrentando o problema. Mas eu não queria defendê-la, mas dizer que, se há este ressentimento com a Igreja, é porque passamos a vida criticando e acusando os outros, em vez de a nós mesmos. E a Igreja recebeu o pagamento por estar sempre acusando.
Nisso Bento XVI está sendo corajoso?
Claro. Se está reconhecendo, se estão dando passos. Há dioceses, nos Estados Unidos, que inclusive entraram em bancarrota, e quem paga a conta são os pobres: há muitos serviços que foram desmantelados. É um pecado da Igreja acusar sempre em vez de se autocriticar. A nossa pregação só tem sentido se demonstrarmos que tudo aquilo que dissemos é porque realmente estamos preocupados com a felicidade das pessoas, o bem da humanidade, a justiça, a liberdade e a fraternidade na sociedade...
Você vem para participar da Jornada Mundial da Juventude?
Não.
Como está a nossa terra?
A nossa terra está um pouco como está toda a Igreja em geral: a Igreja na Galícia, suponho que como reflexo da Igreja universal, está um pouco paralisada.
Há desilusão e desencanto?
Eu creio que sim. E me preocupa muito. Possivelmente, isto nos leva a esbarrar com o muro da frustração, e nos faça viver mais corretamente.
Mas há a possibilidade de que ressurja uma primavera, como a do Concílio?
Pior que estávamos antes dele, não estamos agora, é o que digo. E creio que na cultura, na sociedade em geral, há ânsia de transcendência. Ou seja, uma sociedade puramente pragmática, frívola e televisiva, não satisfaz as fomes profundas que estão em toda pessoa, quer seja religiosa ou ateia. Há fome de algo mais profundo. Eu sou admirador de um grande teólogo protestante que, alguns anos antes dos anos 60 em Nova York, dizia que a juventude estava morta, que não havia nada a fazer. Um grande diagnosticador da cultura como ele era, não se deu conta do que estava em gestação, de que amanhecia a revolução de 68.
Ou seja, que há esperança?
Sem dúvida.
Muitíssimo obrigado, Andrés. Temos que terminar. Como veem, é um prazer. E alguns o acusam de herege...! É uma heresia acusar a um pensador de herege!
Eu quero ser um bom teólogo.
Obrigado, Andrés.