Uma série de artigos que vêm sendo publicados quinzenalmente pelo jornal Valor Econômico, sobre a história da imprensa no Brasil, despertou um debate interessante sobre os papéis da Corte portuguesa e da Inquisição (através do "Santo Ofício") na repressão à imprensa propriamente dita (a "tipografia") durante o período colonial. Em especial o artigo "Um atraso de três séculos", escrito por Matías M. Molina e publicado pelo Valor no último dia 28 de outubro, que foi ironicamente refutado pelo jornalista Alberto Dines, do Observatório da Imprensa, em outro artigo intitulado "A Inquisição não existiu, é invenção dos leigos". Trata-se de material pra lá de polêmico para quem se interessa pela história da liberdade de expressão, de imprensa e de circulação de ideias no Brasil, e quer ter uma boa leitura de fim de semana. Como os dois artigos são muito extensos, reproduzimos abaixo apenas pequenos trechos deles, indicando os respectivos links para quem quiser lê-los na íntegra:
Um atraso de três séculos
Por Matías M. Molina
Durante três séculos, a coroa portuguesa foi rigorosa e persistente em seu esforço para impedir que a palavra impressa perturbasse sua colônia da América. O primeiro livro em língua portuguesa publicado no Novo Mundo, o D.O.M Luzeiro Evangélico, não foi escrito no Brasil, mas em “S. Thomé cidade da Índia Oriental no ano de 1708”, pelo franciscano João Bauptista Morelli de Castelnovo, como se lê na capa. Também não foi estampado no Brasil; foi “impresso em México, cidade da Índia Ocidental no ano de 1710”.
O livro não poderia ter sido impresso no Brasil porque a corte de Lisboa proibira a instalação de prelos na colônia. Tinha medo das consequências. Controlava também a entrada de obras impressas, numa tentativa, nem sempre bem-sucedida, de manter o país à margem das novas ideias e das correntes culturais que circulavam na Europa. A metrópole também dificultava a divulgação de informações sobre o Brasil no exterior, para não excitar a voracidade das outras potências.
Depois que Johann Gensfleich zum Gutenberg fundiu letras e caracteres avulsos num molde metálico e imprimiu a Bíblia, em 1456, a imprensa se espalhou rapidamente pela Europa. Em 1466, foi impresso o primeiro livro na Basileia, em 1467 em Roma, em 1468 em Paris, onde enfrentou a resistência dos seis mil copistas da cidade, em 1469 em Veneza e em 1473 em Westminster, na atual cidade de Londres. A tipografia chegou à Espanha em 1472, quando o alemão Johan Parix de Heidelberg imprimiu em Segóvia o Sinodal de Aguilafuente, e em 1487 a Portugal, onde Samuel Gacon estampou o Pentateuco, em hebraico, na cidade de Faro. Em 1500, quando o Brasil foi descoberto, mais de 250 cidades da Europa tinham instalado prelos de impressão; nesse ano, Paris já contava com 181 tipografias.
Anchieta e Vieira tiveram que ser impressos em Portugal
Mas foram necessários três séculos e meio, já no começo do 19, para que as artes gráficas pudessem ser exercidas, sob rigoroso controle do Estado, no Brasil, um dos últimos países do mundo a permitir a instalação de uma tipografia.
Como disse Alfredo de Carvalho: “Em todo o transcurso do período colonial, não houve no Brasil, talvez, manifestação alguma de progresso a que a metrópole deixasse de corresponder com medidas proibitivas, ou providências vexatórias, ditadas por uma política suspicaz que antevia na prosperidade da vasta possessão americana a certeza da sua independência.”
Para mostrar o atraso cultural na época colonial, Isabel Lustosa escreveu que o Brasil era um dos poucos países do mundo, excetuados os da África e da Ásia, que não produziam palavra impressa. Mas, na verdade, até as colônias portuguesas na África e na Ásia contavam com tipografias, já no século 16 e começo do 17, instaladas pelos padres jesuítas. A exceção foi o Brasil.
Os livros escritos no Brasil por autores como Gabriel Soares de Sousa e Antonil ou os padres José de Anchieta e Antonio Vieira tiveram que ser impressos em Portugal e receberam escassa divulgação. Numerosas obras da época da colônia esperaram vários séculos para ser estampadas, depois que foram encontradas nos arquivos portugueses por historiadores brasileiros.
continue lendo o artigo na íntegra no Observatório da Imprensa
A Inquisição não existiu, é invenção dos leigos
Por Alberto Dines
Incrível, aterrador: o 16º capítulo da serie histórica “Jornais em Pauta”, publicada quinzenalmente pelo Valor Econômico (ver "Um atraso de três séculos"), parece ter sido montado segundo os paradigmas do Dr. Joseph Goebbels, zelosamente imitados pela Academia de Ciências da ex-URSS e inspirados no patriarca do conservadorismo e do fascismo, Joseph de Maistre (1753-1821).
A surpreendente tese: quem impediu o estabelecimento de tipografias e jornais no Brasil antes de 1808 foi a Coroa, o Estado português. Não houve censura episcopal, não houve censura inquisitorial, não houve nenhum “Rol de Livros Proibidos”, não houve Inquisição. O sanguinário aparelho repressor chamado Santo Ofício estabelecido em 1536 e mantido até 1821 em Portugal e territórios ultramarinos é pura ficção. Os cardeais-inquisidores não existiram, os comissários não tinham poder para examinar os livros que chegavam nos navios, a monarquia absolutista portuguesa era a única responsável pelo que poderia ser ensinado e difundido.
A fabricação da mentira torna-se cada vez mais sofisticada não por causa das novas tecnologias per se, mas porque estas tornam as pessoas cada vez menos interessadas em absorver conhecimentos.
Vocação censória
O autor da proeza revisionista e negacionista publicada num dos mais sofisticados suplementos culturais da imprensa brasileira (“Eu&Fim de Semana”, 28/10) valeu-se de um engenhoso e perverso artifício retórico: como na América espanhola as tipografias foram instaladas a partir do século 16 (a primeira, no México, em 1583), o déficit de liberdade na América portuguesa só pode ser atribuído à Corte.
Grande parte do texto, cerca de dois terços, está maliciosamente montado em cima de citações de eminentes historiadores patrícios, genialmente manipuladas para reforçar a ideia de que a Coroa portuguesa é a única vilã do nosso atraso intelectual e jornalístico.
Difícil acreditar que na vasta bibliografia de Sérgio Buarque de Holanda e de Nelson Werneck Sodré não conste qualquer referência ao protagonismo do Santo Ofício (portanto, da igreja católica) no controle dos corações e mentes dos brasileiros e brazilienses. Pinçar na Sociologia da Imprensa Brasileira, de José Marques de Melo, a frase de que no Brasil colonial não havia tipografias “porque não eram necessárias” é, na melhor das hipóteses, um recurso capcioso.
Isabel Lustosa é, hoje, a mais diligente e esmerada historiadora da imprensa brasileira, coeditora dos 31 volumes com a reprodução integral do Correio Braziliense e valiosos estudos sobre Hipólito da Costa. Dela, os editores de Valor só encontraram um conceito digno de ser incluído no seu seriado quinzenal: “O Brasil era um dos poucos países do mundo, excetuados os da África e Ásia, que não produziam palavra impressa”.
Onde está dito que a culpa do atraso foi exclusivamente da Coroa? Onde exime ela o Santo Ofício de ser a matriz da nossa vocação censória? Este tipo de trambique argumentativo ficaria muito bem num boletim do Opus Dei, mas discrepa num veículo destinado à formação da elite empresarial brasileira.
“Despotismo esclarecido”
O autor (ou autores) ignora(m) que a Inquisição espanhola, diferentemente da portuguesa, era menos centralizada e menos burocratizada. O Santo Ofício lusitano manteve apenas um tribunal fora do território continental (em Goa, Índia); o espanhol permitiu a instalação de três filiais no Novo Mundo (México, Cartagena, Lima) e, graças à fiscalização descentralizada, podia se dar ao luxo de autorizar a instalação de tipografias para a impressão de obras evangelizadoras, criação de universidades e circulação de periódicos a partir do século 17.
As doutrinas que inspiravam as duas entidades inquisitoriais eram as mesmas, colaboravam ativamente entre si (como atesta o caso da loucura e morte do santista Bartolomeu de Gusmão, o Padre Voador), mas as mentalidades eram diferentes. A Espanha era uma potência europeia e o seu império global deveria contar com uma flexibilidade administrativa que o mirrado reino português só adotou quando a família real fugiu para o Brasil.
Quem encarcerou o padre Antonio Vieira não foi a Coroa portuguesa, mas a Inquisição portuguesa. Quem mandou prender e depois executar o comediógrafo – nascido no Rio de Janeiro – Antonio José da Silva, “O Judeu”, não foi D. João V (satirizado na ópera O Anfitrião, montada em 1736), mas o cardeal inquisidor D. Nuno da Cunha, por meio de uma ordem verbal (como está em seu processo). Quem decidiu que fosse executado num auto da fé não foi a justiça secular, mas os inquisidores que lhe ofereceram o direito de escolher entre o garrote e a fogueira.
Aqui, na colônia portuguesa, bispos e comissários do Santo Ofício mandavam e desmandavam, os governadores obedeciam: cuidavam de defender o território, proteger riquezas e cobrar impostos. O resto ficava por conta dos Familiares do Santo Ofício e, sobretudo, do sistema de delações oriundo dos confessionários.
O quadro modificou-se quando esse despotismo clerical foi substituído pelo “despotismo esclarecido” do Marquês de Pombal (1750). Tarde demais, o país estava atrasado 250 anos.