segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O evangelho de Lucas - parte 40



Encerrando o estudo sobre o evangelho de Lucas, com o capítulo 24:

Quando se lê o último capítulo do evangelho de Lucas, se nota uma diferença significativa em relação ao epílogo dos outros três evangelhos. Enquanto os outros se preocupam em dar mais detalhes sobre o evento da ressurreição propriamente dito (no caso de João, no penúltimo capítulo, o 20), Lucas se concentra em poucos discípulos, suprimindo alguns fatos e narrando outros acontecimentos de maneira muito rápida, talvez já preparando o leitor para a continuação de seu relato que se daria no livro de Atos dos Apóstolos, cujos 11 primeiros versículos se referem um pouco mais sobre os passos de Jesus desde a sua ressurreição até a ascensão ao céu.

Por sinal, cada evangelista tem uma maneira própria de encerrar seu evangelho. Mateus (cap. 28) dá mais atenção aos eventos da manhã da ressurreição, tanto da reação dos discípulos como das autoridades judaicas e romanas. Marcos (cap. 16) se assemelha mais a Lucas e concentra o relato pós-ressurreição nos encontros com os discípulos, inclusive aquele do caminho de Emaús (vv. 12-13) que Lucas ampliará bastante no seu evangelho, o que mostra que Marcos (que já circulava à época) e a misteriosa “fonte Q”, comum a ambos, talvez tenham sido a sua maior influência.

João, por sua vez, é o mais detalhado de todos a respeito da reação dos discípulos imediatamente após a ressurreição, isto no capítulo 20, mas depois fala do encontro de Jesus com seus discípulos no mar de Tiberíades (cap. 21), e sobre como ele os confirmou e os enviou, especialmente a Pedro e o próprio João. O traço comum a todos os evangelhos é, portanto, a resposta de Jesus à pergunta que podemos supor que os discípulos estavam se fazendo, mesmo depois de ver o Salvador ressurreto e já na expectativa de Sua ascensão ao céu: “E agora, o que vamos fazer?”

Dos 53 versículos do último capítulo de Lucas, 24 deles são utilizados para contar a história dos dois discípulos desde sua ida para Emaús até a volta repentina para Jerusalém a fim de contar aos outros que Jesus havia ressuscitado, ou seja, praticamente metade do capítulo é dedicado a contar essa história.

Os primeiros versículos, entretanto, se concentram nas mulheres que foram as primeiras testemunhas da ressurreição de Lucas, seguindo o estilo do evangelista de dar vez e voz ao olhar feminino sobre a missão de Cristo na Terra. Logo cedo, “Maria Madalena, e Joana, e Maria, mãe de Tiago” (identificadas no v. 10) vão ao sepulcro de Jesus, mas a pedra que selava a entrada havia sido movida e não havia mais nenhum corpo por lá (vv. 1-3).

Joana devia ser uma discípula muito importante, já que Lucas havia se referido a ela (cap. 8:3), dizendo que era “mulher de Cuza, procurador de Herodes”. Alguém que gozava de uma boa reputação em Jerusalém, portanto. Aparecem-lhes, então, “dois varões com vestes resplandecentes” (v. 4), que elas reconhecem como anjos e baixam os olhos em sinal de temor e reverência (v. 5), enquanto eles lhes perguntam “Por que buscais entre os mortos ao que vive?” e lhes mostram como elas já deveriam saber disso se houvessem prestado mais atenção nas palavras de Jesus (vv. 6-8).

Aliás, essa é outra tônica do capítulo 24: relembrar como a vida, morte e ressurreição do Messias já estavam previstas nas Escrituras judaicas e nos ensinamentos do próprio Cristo. As mulheres voltaram rapidamente para o encontro dos demais discípulos, relatando-lhes os estranhos fatos daquela manhã, mas ninguém lhes deu crédito (vv. 9-11), salvo Pedro, que, por via das dúvidas, tratou de correr ele mesmo até o sepulcro e constatou que ele estava vazio (v. 12). João, com a humildade que lhe é característica, depois dirá no seu evangelho que ele correu atrás de Pedro e chegou lá primeiro, mas não entrou no túmulo (João 20:4).

A partir de então, Lucas volta seus olhos para o caminho de Emaús, ampliando enormemente uma história que já havia sido mencionada rapidamente por Marcos (16:12). Emaús era um pequeno vilarejo localizado a “60 estádios” (equivalente a cerca de 11 km) de Jerusalém, que tinha uma certa importância para o povo judeu por ter sido lá que houve a batalha de Emaús, em que Judas Macabeu venceu os selêucidas no ano 166 a. C. (deuterocanônico 1ª Macabeus cap. 4), mas que perdeu importância com o passar do tempo e foi destruída após a morte de Herodes, o Grande por ordem do então governador romano Varus (ano 4 a. C.).

Logo, no tempo da caminhada de Jesus com os discípulos até lá, Emaús começava a ser reabitada depois de ter sido queimada pelos romanos quase 40 anos antes. Continuará pouco povoada até que no ano 221 d. C. o imperador romano Heliogábalo refunda a cidade dando-lhe o nome de Nicópolis. Curiosamente, alguns séculos depois estava reservada a Emaús fazer parte da história da fundação de outra religião, a islâmica.

O profeta Maomé havia morrido no ano 632 e sete anos depois, em 639 d. C., Emaús havia acabado de ser conquistada pelas tropas muçulmanas do Califado Rashidun, que estabeleceu ali um acampamento militar, quando uma praga - provavelmente de peste bubônica - se propagou pela cidade levando à morte de 25.000 pessoas. Apesar da distância concêntrica de 11 km a partir de Jerusalém diminuir as possibilidades de se localizar o local exato da antiga Emaús, há vários vilarejos que se candidatam ao honroso posto, embora a versão mais aceita atualmente é a de que o povoado palestino de Imwas mereça o título de herdeiro de Emaús.

No começo do relato de Lucas 24, dois discípulos se dirigem desconsolados para Emaús (v. 13). Um deles se chama Cleopas (v. 18), que a tradição oral identifica também como Alfeu, que teria sido irmão de José, marido de Maria mãe de Jesus, logo, uma espécie de “tio postiço” do Mestre, além de pai dos apóstolos Tiago e Judas Tadeu, embora não haja qualquer evidência conclusiva neste sentido.

Mais tarde, por volta do ano 404 d. C., São Jerônimo escreverá em sua carta 108 (a Eustáquio), que uma igreja cristã foi posteriormente instituída na casa de Cleopas em homenagem à ceia que Jesus participaria logo depois de encontrar os discípulos no caminho, conversando sobre as coisas que haviam acontecido naqueles dias terríveis em Jerusalém (v. 14). O v. 15 diz ainda que eles “discutiam” sobre isso, provavelmente comparando o medonho sacrifício da cruz com todos os ensinamentos que eles tinham ouvido do próprio Mestre quando conviviam com ele.

Neste momento, Jesus se aproxima deles, mas os discípulos não o reconhecem (v. 16), talvez por estarem tão concentrados na sua dor e nem cogitarem que Jesus pudesse ter ressuscitado. Cristo então lhes pergunta por que estavam tão preocupados e tristes (v. 17) e eles lhe dão uma resposta atravessada, irônica, perguntando se o recém-chegado companheiro de viagem era o único peregrino que havia estado em Jerusalém naqueles dias e não sabia do que tinha ocorrido (v. 18).

Utilizam para tanto a palavra grega παροικέω - paroikeō - que significa “estrangeiro”, “peregrino”, alguém que era de fora do contexto social e nacional em que ele viviam. Afinal, a crucificação de Cristo havia sido um acontecimento público que movimentou de tal maneira a comunidade local que era inconcebível que alguém estivesse por lá, ainda que de passagem, e não soubesse o que estava acontecendo.

Jesus não se dá por vencido, e lhes pergunta que coisas eram essas, incitando-os a “dissecar” a sua dor, o que eles fazem em seguida, relatando a injustiça cometida contra o Salvador desde o julgamento até a crucificação (vv. 19-20). Jesus estava lhes dando a oportunidade de desabafar e compartilhar a sua tristeza e incredulidade, e eles a aproveitam ao máximo, contando como esperavam que Ele fosse redimir Israel (de maneira política, armada talvez) e como as mulheres lhes haviam dito que o Cristo ressuscitara, mas ninguém o havia visto (vv. 21-24).

O Mestre, então, os chama de “néscios e tardos de coração para crer” em tudo o que já havia sido predito pelos profetas sobre o seu sofrimento (vv. 25-26), expondo-lhes detalhadamente todas as profecias que davam conta das coisas que aconteceram e eles tinham visto e ouvido (v. 27). É interessante o contraste que Lucas promove entre essa saída desconsolada de Jerusalém e o período anterior à subida animada a Jerusalém (Lucas 18:31-34), em que Jesus já alertava aos seus discípulos que ali se cumpriria tudo o que já havia sido predito sobre Ele pelos profetas.

Quando chegaram a Emaús, Jesus prosseguiu no seu caminho, como se fosse mais adiante (v. 28), mas os discípulos, talvez temerosos de perder uma companhia tão agradável e reconfortante, o convidaram para passar a noite com eles (v. 29), aproveitando o adiantado da hora.

Prepararam uma pequena ceia, e quando Jesus pegou o pão, o abençoou, partiu-o e repartiu-o com eles (v. 30), os seus olhos finalmente foram abertos e o reconheceram, mas o Mestre desapareceu diante dos mesmos olhos que até então não o haviam enxergado (v. 31). Só aí se deram conta de que o coração deles ardia enquanto ouviam a exposição das Escrituras pela boca do próprio Senhor (v. 32).

Não deixa de ser um relato que tem lições profundas para o nosso dia-a-dia, sobre a maneira como os olhos espirituais precisam estar abertos para atenderem e aprenderem sobre as verdades espirituais, e como o nosso coração se aquece quanto mais nos aproximamos de Deus. Maravilhados, os discípulos nem se preocuparam pelo fato de que já era tarde da noite e o caminho de volta era perigoso.

A mesma Providência Divina que os havia brindado com a companhia do Mestre até Emaús, haveria de protegê-los no caminho inverso. Trataram de voltar imediatamente para Jerusalém, onde estavam os onze apóstolos e outros discípulos (v. 33), que lhes contam que Jesus havia ressuscitado e já tinha aparecido a Pedro (v. 34).

Essa primeira aparição a Pedro é um fato que só Lucas registra entre os evangelistas, mas que será confirmado mais tarde por Paulo em sua 1ª Carta aos Coríntios (15:5). Os discípulos de Emaús contam então o que lhes havia acontecido (v. 35), e ainda estavam no meio do seu relato quando o próprio Cristo se materializa diante deles (v. 36), deixando-lhes assustados porque imaginavam que estavam vendo uma assombração (v. 37).

Não deixa de ser importante notar que, apesar de ser composto de carne e osso, o corpo ressurreto de Jesus tem propriedades que transcendem a compreensão humana. A incredulidade coletiva dos discípulos é, de certa forma, ironizada por Ele, que lhes pede que o toquem, mostrando-lhes as mãos e os pés com as chagas (vv. 38-40). Agora, era a alegria que os impedia de crer (v. 41), e Jesus lhes pede algo para comer, e lhe preparam um pedaço de peixe assado e um favo de mel (vv. 42-43).

De novo, Ele faz referência à importância das profecias e das Escrituras (v. 44), abrindo-lhes o entendimento para – finalmente – entendê-las (v. 45), explicando-lhes sobre a necessidade de seu padecimento e de sua ressurreição (v. 46) para que a salvação fosse pregada a todo o mundo, a começar por Jerusalém (v. 47), já que os discípulos eram testemunhas de todas essas coisas (v. 48), mas deviam ficar na cidade até serem revestidos do poder do Espírito Santo (v. 49).

Esse é um dado importante, pois ao lermos essa narrativa temos a tendência de criticar a ignorância espiritual dos discípulos, mas nos esquecemos facilmente de que eles não tinham ainda a sabedoria e o discernimento espiritual que hoje nos é dado pelo Espírito Santo quando nos convertemos (ou mesmo quando toca o pecador perdido com a graça regeneradora para que ele creia).

Isto não nos exime, entretanto, da simbologia à qual Lucas dá tanta atenção: a importância de se abrirem os olhos espirituais para ter um encontro verdadeiro com Deus através de Seu Filho Jesus Cristo. J. C. Ryle disse certa vez: “Agradeçamos a Deus pelo fato de poder haver graça verdadeira escondida debaixo de muita ignorância intelectual. Um conhecimento claro e acurado é algo muito útil, mas não é absolutamente necessário para a salvação, e pode até mesmo ser alcançado sem a graça”.

Nos versículos finais, que contam muito rapidamente a ascensão de Jesus (que será mais detalhada no primeiro capítulo de Atos, também escrito por Lucas), Jesus leva seus discípulos até Betânia (vv. 50-53).

Não está claro aqui a que lugar eles foram, exatamente, mas é de se supor que, antes de ascender aos céus, Jesus quis voltar ao lugar que lhe era mais familiar, onde se sentia melhor na sua jornada humana por este mundo: a casa de Maria, Marta e de Lázaro, seu amigo e companheiro de ressurreição, pessoas a quem Ele amava profundamente, a ponto de João (11:5) fazer questão de registrar.

Não havia outro lugar onde o Mestre se sentisse mais à vontade e onde pudesse, talvez, ressaltar a seus discípulos a importância do companheirismo e da amizade diante das enormes dificuldades que eles não sabiam ainda que teriam que enfrentar. Em Atos 1:3, Lucas escreverá que Jesus ficou com seus discípulos ainda por 40 dias, ensinando-os e preparando-os para a missão evangelística que os esperava, e como deviam esperar em Jerusalém até que fossem revestidos do poder do Espírito Santo (Atos 1:4).

Interessante como Lucas ressalta no v. 52 que os discípulos “o adoraram”. A palavra grega aqui é προσκυνέω - proskuneō - e significa literalmente “prostrar-se em adoração”. Agora eles reconheciam plenamente a divindade de Jesus, o que é uma dificuldade enorme para as seitas que a negam e têm que forçar uma tradução para “adorar” como sendo “prestar homenagem”, o que é algo que destoa completamente do contexto de todo o evangelho, como se os discípulos se sentissem agora na obrigação de “homenagear” alguém mediante um gesto (prostrar-se) típico (tanto à época como atualmente) de quem adora.

Só não explicam porque – em Apocalipse 5 - traduzem a mesma palavra por “prostrar-se” (v. 8) e “adorar” (v. 14). Só os hereges modernos têm essa dificuldade em reconhecer a divindade absoluta de Jesus, algo que os discípulos não tinham mais, como o evangelista faz questão de dizer. Deus havia aberto os seus olhos afinal. E é nesse espírito de verdadeira adoração que Lucas os coloca no templo no final de seu evangelho, felizes e esperando pelo cumprimento da promessa de Seu Senhor.



"A Ceia de Emaús", por Rembrandt
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"A Ceia de Emaús", por Caravaggio
(clique na imagem para ampliá-la)



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