segunda-feira, 9 de maio de 2011

O Maluf do humor

O Brasil sempre teve uma tradição de humor escrachado, moleque, na melhor escola latina do pastelão, da commedia dell'arte, dos saltimbancos, dos velhos e bons palhaços de circo, que até hoje se pode ver na televisão em programas como "Zorra Total" (da Globo), "Chaves" e "A Praça é Nossa" (do SBT). Você pode até não gostar desses programas, afinal eles estão no ar há décadas e há pouco ou nenhum espaço para inovação, mas eles traduzem o jeito brasileiro de fazer humor em toda a sua simplicidade. Basta lembrar a saudade que comediantes como Mussum e Zacarias (d'Os Trapalhões) deixaram no imaginário popular. Artistas consagrados como Renato Aragão e Chico Anysio seguiram esta linha, sucedendo outros como Oscarito, Ankito, Grande Otelo, Brandão Filho, etc. Se fôssemos listá-los aqui, não haveria espaço para tantos talentos que se valiam do lúdico, do improviso e prezavam a ingenuidade para fazer rir. Era essa a ética e a estética de uma escola brasileira de humor. De uns tempos para cá, entretanto, com a febre das comédias "stand up", uma nova leva de comediantes chegou aos palcos e às telas, mais afeita ao estilo ácido e politicamente incorreto dos seus pares nos Estados Unidos, mas numa versão piorada, sem nada a ver com os clássicos americanos do gênero, como Jerry Seinfeld (para mim, o maior deles), que sabem ser sutis e inteligentes sem perder o tom.

Não é, infelizmente, o que vem acontecendo no Brasil. Na nossa versão deturpada, tenta-se vender o "humor" como um ataque duro e direto a toda e qualquer espécie de convenção social, sem papas na língua, sem se preocupar com os danos colaterais, tudo em nome de uma liberdade de expressão que deve, sem dúvida, ser preservada, mas raramente se associa a ela a inteligência e o bom gosto. Prova disso são as recentes declarações de Rafinha Bastos, do CQC, à revista RollingStone. A começar pela foto que estampa a entrevista intitulada "A Graça de um Herege", em que Rafinha, que nunca escondeu que é judeu, se apresenta como uma versão de Jesus Cristo com coroa de espinhos, o que já revela um gosto - no mínimo - duvidoso. O seu novo DVD se chama sugestivamente "A Arte do Insulto", e Rafinha Bastos saiu-se com a seguinte declaração:

"Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho." O humorista Rafinha Bastos está no palco de seu clube de comédia, na região central de São Paulo. É sábado e passa um pouco das 20h. Os 300 lugares não estão todos ocupados, mas a casa parece cheia. Ele continua o discurso, finalizando uma apresentação de 15 minutos. "Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade." Até ali, o público já tinha gargalhado e aplaudido trechos que falavam sobre como cumprimentar gente que não tem os braços, o que dizer para uma mulher virgem com câncer, e por que, depois que teve um filho, Rafinha passou a defender o aborto. Mas parece que agora a mágica se desfez. O gaúcho de 34 anos, 2 metros de altura, astro da TV, não está emplacando sua anedota sobre estupro. Os risos começam a sair tímidos e os garçons passam a ser chamados para servir mais bebida. Rafinha aparenta não se dar conta de que algo ruim está acontecendo. Em vez de aliviar, ele continua no tema. "Homem que fez isso [estupro] não merece cadeia, merece um abraço." Em vez de rir, uma mulher cochicha para alguém ao lado: "Que horror".

Os palcos cômicos do país vivem a era do "é bonito ser feio". Ao fazer uma piada tão inconveniente sobre estupro, Rafinha Bastos mostra que não só falta estética à nova geração do humor brasileiro, mas também ética, a exemplo do que aconteceu outro dia com o programa Comédia MTV, que satirizava (e ofendia) os autistas e suas famílias. Sob o pretexto de que não há limite para o humor (e para o politicamente incorreto), insultos idiotas são apresentados como se só quem os inventa e profere merecesse ser chamado de inteligente e engraçado. Instaurou-se, portanto, uma espécie de gnosticismo do riso, em que quem chora diante de tanta empáfia somos nós, humildes mortais que nos ofendemos com essas referências asquerosas. Institucionalizaram o bullying no humor. No fundo, Rafinha Bastos não é muito diferente de um político que seu programa CQC costumava satirizar, Paulo Maluf, aquele que, comentando sobre criminosos, disse certa vez: "Estupra, mas não mata!". Decerto o atual estágio do humor nacional também é obra de Maluf.



Atualização de 07/07/11:

Nota do Blog do Miro:

Rafinha Bastos é alvo do Ministério Público

Numa decisão que irritará os donos da mídia, que se consideram acima das leis e do Estado de Direito, o Ministério Público de São Paulo pediu hoje (7) a abertura de inquérito policial contra o humorista Rafinha Bastos, do programa "CQC" da TV Bandeirantes, para apurar suas recentes declarações machistas sobre o estupro, que caracterizariam incitação e apologia ao crime.

As declarações foram feitas em seu show de comédia stand-up e foram reproduzidas na revista "Rolling Stone". O "humorista" afirmou na ocasião que toda mulher que reclama que foi estuprada é feia, e que o homem que cometeu o ato merecia um abraço, e não cadeia.

"O estupro é um crime"

O pedido de abertura do inquérito foi feito pela promotora de Justiça Valéria Diez Scarance Fernandes, coordenadora do Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar. No ofício, ela argumenta que Rafinha Bastos compara o estupro a "uma oportunidade" para determinadas mulheres e o estuprador a um benfeitor, digno de "um abraço". "O estupro é um crime. O estuprador é um criminoso que deve ser punido e não publicamente incentivado", conclui Valéria Fernandes.

A ação é resultado de representação feita à Promotoria pela coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Thais Helena Costa Nader. Quando da "piadinha" de péssimo gosto, o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo, órgão composto por representantes da sociedade e do poder público, divulgou dura nota de repúdio:

Reflexo da pressão popular

"A liberdade de expressão, direito previsto constitucionalmente, encontra limite quando em choque com outro direito, que é o da dignidade da pessoa humana, que está acima de qualquer outro", diz a nota. O conselho viu na piada de Bastos conteúdo machista e preconceituoso, "encorajando homens, bem como fazendo parecer que o crime de estupro, hediondo por sua natureza, não seja punível".

O "humorista" também foi alvo de várias manifestações de protesto. Em São Paulo, as participantes da Marcha das Vadias realizaram um ato de repúdio em frente ao Comedians, o clube de comédia de Rafinha Bastos. No Rio, ele também foi vaiado por suas declarações machistas. Agora, com a decisão do MP paulista, o "humorista" terá que prestar esclarecimentos. A coisa esquentou!

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