Já que ser "evangélico" virou moda no Brasil, não é de se admirar que práticas religiosas também tenham se tornado fashion, conforme a matéria abaixo da revista Época:
Jejuar está na moda, mas faz bem?
Condenado pelos médicos e nutricionistas, o jejum tem se tornado popular para limpar o corpo e acalmar a mente
LUÍZA KARAM
A apresentadora Glória Maria diz que se desespera durante seus períodos de jejum. Três vezes ao ano, ela reserva dez dias para ingerir apenas pílulas com nutrientes, xaropes naturais e chás. Comida mesmo, aquela de encher os olhos, é rigorosamente proibida. Mas o desespero relatado por ela não vem da privação. “Eu me sinto tão bem durante o jejum que fico angustiada quando está para acabar”, diz. Glória não está sozinha em sua opção pela fome autoimposta. Como ela, um grupo cada vez maior de pessoas, no mundo todo, está descobrindo os prazeres e benefícios de fechar a boca durante alguns dias. É o jejum laico. Em vez de almejar o êxtase espiritual ou o perdão divino, ele promete uma espécie de pureza que tem afinidade com o universo místico, mas se expressa na linguagem das dietas e dos processos metabólicos. “O jejum funciona como uma desintoxicação: limpa meu organismo de impurezas para me manter saudável. Tenho mais vontade de trabalhar e meu humor melhora”, diz Glória.
Condenado por médicos e nutricionistas, o jejum está ganhando respaldo até de estudos científicos. As pesquisas sugerem que jejuar diminui os riscos de doenças cardiovasculares, como diabetes e hipertensão. E pode até prolongar a vida. Para os praticantes, a abstinência alimentar é também um grito de liberdade. Eles deixam de viver em função do relógio (afinal, as refeições acabam ditando o ritmo do dia). Prestam mais atenção nos pensamentos do que no estômago. Voltam-se para si. O ator Licurgo Spinola, de 44 anos, faz parte desse grupo. Todo mês, ele jejua por três dias. Só toma água, quase 5 litros por dia. “Desvencilhar-se de situações mundanas, como o horário das refeições, é uma lavagem espiritual”, diz Spinola, que aderiu à prática há três anos, depois de ler a biografia de Mahatma Gandhi. Spinola diz ter descoberto que o líder indiano que fez do jejum uma arma política também usava a prática para curar gripes e resfriados.
Velho como a própria fome, o jejum faz parte do cotidiano de muitas religiões. Os católicos não comem carne vermelha na Sexta-Feira Santa. Os judeus se abstêm de comer seis dias por ano. Os muçulmanos jejuam da alvorada ao anoitecer durante todo o mês do ramadã, o nono mês do calendário islâmico. É uma forma de intensificar a reflexão e a concentração nas orações e de se sacrificar pelo perdão dos pecados. É também uma maneira tradicional de demonstrar devoção. Os adeptos da nova vertente de jejum, porém, subverteram a prática histórica de oferenda e sacrifício, sem eliminar seu caráter de purificação. Apenas a divindade se tornou interior. “Em meio ao cotidiano caótico, mostrar que somos capazes de controlar nossa vida em pelo menos um aspecto é a maneira de criar uma ilha de segurança”, diz o psicanalista Christian Dunker, professor da Universidade de São Paulo.
Ter poder sobre uma necessidade imposta pela natureza é a primeira recompensa dos jejuadores. Ele se manifesta já nas primeiras horas de jejum, quando os praticantes descobrem a diferença entre fome e vontade de comer (e quão inebriante é o cheirinho de qualquer prato de comida). “Percebo que não preciso comer naquele momento, que é só gula”, diz Spinola. O corpo manifesta fome duas ou três horas após a última refeição. Nesse momento, já foi usado todo o estoque de glicose, o combustível básico das células, obtido a partir da quebra de carboidratos. Como o organismo precisa de energia, lança mão de reservas: moléculas complexas guardadas no fígado, o glicogênio. Quando até ele acaba, a opção são as gorduras. O processo de queima de gordura gera substâncias chamadas corpos cetônicos. Eles ajudam a inibir a sensação de fome, mas produzem aquele hálito característico de estômago vazio.
Os praticantes juram que essa é a única desvantagem. “Eu fico menos ansiosa”, diz a professora de ioga Mariana Maya, de 43 anos. Ela diz que começou a fazer jejum porque se sentia irritada sem motivo. Resolveu passar por um sacrifício. E descobriu que ele lhe fazia bem. “Sinto uma paz que nunca havia experimentado. A mente fica mais leve”, diz Mariana, que jejua desde 2006, pelo menos duas vezes por ano. São três dias à base de água. “O jejum me dá equilíbrio físico e mental.”
Os benefícios da prática já são usados com fins medicinais. Na Alemanha, há pelo menos 11 clínicas que usam o jejum para tratar males que vão de doenças de pele a estresse. Uma das mais famosas fica na cidade de Bad Pyrmont e é mantida pela família do médico Otto Buchinger. Ele teria se curado de reumatismo em 1919 depois de manter uma dieta exclusivamente de sopas e tornou-se o guru do “jejum terapêutico”. “Enquanto jejua, o paciente melhora sua saúde, mas ele terá negligenciado a coisa mais importante se a fome de alimento espiritual, que se manifesta durante o jejum, não for satisfeita”, ele escreveu. Hoje, quem cuida da clínica, que recebe 1.500 pacientes por ano, é Andreas, neto de Buchinger. “O jejum aprimora o funcionamento do corpo”, diz ele. O tratamento completo dura 21 dias (para quem sofre de reumatismo são 28 dias). Quando o paciente chega, são feitos exames de sangue e eletrocardiograma. Depois, médicos preparam um cardápio personalizado. O primeiro dia costuma ser dos vegetais. No dia seguinte, é a vez das frutas, seguidas pelo dia do laxante. O jejum começa depois de os intestinos ficarem vazios. Daí para a frente, só se podem ingerir água, caldo de vegetais, suco e chá.
A ciência já se interessou pelas supostas propriedades curativas e purificadoras do jejum (leia o quadro abaixo). O neurocientista americano Mark Mattson, coordenador do Laboratório de Neurociências do Instituto Nacional de Envelhecimento, é uma das principais referências nessa área. Ele quer desvendar as razões de um fato conhecido há décadas pela ciência. Uma dieta com poucas calorias ou com jejuns periódicos (em que o paciente toma apenas água) parece aumentar em até 40% a duração da vida. Para Mattson, não há nada de estranho nisso. “O genoma humano adquiriu a capacidade de sobreviver a semanas sem comida porque nossos ancestrais primatas viviam em locais onde o alimento era escasso”, diz Mattson. “Nós nos damos ao luxo de fazer três refeições ao dia há menos de 10 mil anos, algo recente em termos evolutivos.”
Em um de seus estudos mais famosos, publicado em 2003 no jornal da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, Mattson e sua equipe mostraram que ratos de laboratório submetidos a períodos regulares de jejum (comiam 10% menos do que os outros) eram mais saudáveis e se recuperavam melhor de danos no cérebro. Mattson acredita que o jejum tem um efeito protetor sobre as células. Primeiro, porque diminuir a ingestão de alimentos reduz a produção de moléculas residuais que podem se ligar ao DNA e causar erros de funcionamento (doenças). Outra hipótese para explicar o efeito protetor é a célula entrar em modo de emergência na falta de alimento. Ela se prepararia para situações adversas produzindo proteínas. “Essa defesa seria ativada em células do cérebro, do coração, dos músculos e do fígado”, diz ele.
Um grupo de pesquisadores do Instituto do Coração do Centro Médico Intermountain, em Utah, nos Estados Unidos, já teria constatado o reflexo desse efeito protetor sobre seres humanos. Em abril, eles apresentaram um estudo que sugere que jejuar pelo menos uma vez por mês diminui em 58% os riscos de doença nas artérias coronárias, que irrigam o coração. Segundo o cardiologista Benjamin D. Horne, responsável pelo levantamento, os efeitos são resultado da diminuição dos níveis de gordura no sangue. Ele diz acreditar que um dia o jejum periódico ainda será recomendado como tratamento para prevenir doenças coronarianas e o diabetes. Embora essas descobertas pareçam promissoras, ainda é cedo para partilhar o entusiasmo do pesquisador. A pesquisa foi feita com 200 voluntários, entre os quais 180 eram mórmons. Alguns dos preceitos da religião – abster-se de álcool e tabaco – poderiam ser os verdadeiros responsáveis pelos bons índices de saúde.
É necessário cautela com os novos estudos porque muitos outros, anteriores, já sugeriram que o jejum pode trazer riscos para a saúde, como hipoglicemia. Os níveis de glicose ficam tão baixos que ocorre tontura, dor de cabeça, desmaios e convulsões. Na falta de alimento, o organismo pode queimar músculos em busca de energia, o que ocasiona perdas musculares. “Se o jejum durar mais de 15 dias, pode causar queda de pressão e até alterar o ritmo cardíaco”, afirma o cardiologista Carlos Daniel Magnoni, da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Interromper o jejum também é delicado. Ao deparar com uma quantidade de açúcar no sangue que não encontrava há tempo, o organismo pode liberar muita insulina, desencadeando uma crise de hipoglicemia. Além disso, a realimentação provoca grave queda na quantidade de cálcio e fósforo do sangue. “Isso pode levar até à morte”, diz o nutrólogo Celso Cukier, presidente da Sociedade Brasileira de Nutrição Clínica.
No Brasil, não há entidade médica que recomende jejum como dieta ou tratamento de doenças. “A ideia de purificação do organismo pela fome é errada”, diz Cukier. “Não precisamos de medidas drásticas porque já eliminamos os excessos no dia a dia.” Apesar das pesquisas que tentam explicar como o organismo reage à privação de alimentos – e como isso pode ser bom para a saúde –, ainda vai demorar anos para que a ciência chegue a alguma espécie de consenso. Por ora, prestar atenção às quantidades e à qualidade do que ingerimos parece ser a melhor maneira de manter o organismo em equilíbrio.