sábado, 8 de março de 2008

Carta aos Romanos - 6

Nos versos 18 a 23 de Romanos 8, Paulo fala de uma expectativa da criação de Deus em que o universo seja restaurado à sua condição inicial, do Éden, do Paraíso, aos dois últimos capítulos do Apocalipse, em que João descreve os novos céus e a nova terra reconciliados com Deus. "Quem a sujeitou", nos dizeres do v. 20, pode tanto ser entendido como o pecado de Adão (o que parece mais adequado ao contexto, já que o v. 21 fala da escravidão e corrupção do pecado) como o próprio Deus, o que carece de maior fundamentação. Além disso, a criação está sujeita à "vaidade", que é o grande sinônimo de "pecado" em Eclesiastes. Já este gemido da natureza, se a gente quiser viajar um pouco, nós vivemos no nosso dia-a-dia, ao ver como a natureza reage à sua destruição, à quebra do equilíbrio firmado por Deus, mesmo após a queda do homem. Eu percebo isto também nos animais. Quem tem algum animal doméstico, percebe, de uma certa maneira, que passa por este relacionamento com os animais algum tipo de ligação mais forte do que simples condicionamento, através de uma linguagem universal que é o amor, o carinho, o cuidado. Existe, portanto, uma esperança compartilhada entre seres humanos e a natureza, de que a perfeição seja regenerada na terra, a "regeneração de todas as coisas" que Jesus fala em Mateus 19:28, e que Pedro repete em Atos 3:21. Jesus, Paulo, Pedro e João falam de algo que nós não prestamos a devida atenção no nosso dia-a-dia atribulado neste mundo sofrido, e este algo é esperança. A esperança que ousa crer contra a esperança, como Abraão (Romanos 4:18), pois "bom é ter esperança, e aguardar em silêncio a salvação do Senhor", mesmo que tenhamos que ficar prostrados com a boca no pó (Lamentações 3:26-29). "Esperança", neste texto, é aquilo que a Bíblia do Peregrino compara à "fé" de Hebreus 11, os "peregrinos na terra" (Hb 11:13) que, no fundo, somos todos os cristãos. E é nesta hora, em que estamos prostrados, sem nem saber o que dizer ou orar, que o Espírito Santo nos ajuda na nossa fraqueza, intercedendo também com gemidos inexprimíveis (v. 26), situação típica de quem está prostrado com a boca no pó (Lm 3:29), mas que também revela a pessoalidade e o auxílio dEle nesses momentos difíceis, pois temos as "primícias do Espírito" (v. 23), algo em que o restante da criação de Deus não se enquadra, já que somos as "primícias de suas criaturas" (Tiago 1:18).

A Bíblia do Peregrino, comentando sobre os vv. 19-23, traz algumas observações dignas de destaque a respeito das palavras gregas κτίσις (ktísis) e αποκαραδοκία (apokaradokia – "expectativa, expectação") do v. 19 de Romanos 8 ("Porque a criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus"):

A interpretação desses vv. depende do significado atribuído a ktísis : criação ou humanidade. A tradição exegética tem optado pelo primeiro. O correlativo "nós" e o contexto sobre escravidão e liberdade, corrupção e glória, fracasso e esperança, favorecem o segundo. Com outras palavras: a "nós", os cristãos, se opõe o resto da humanidade; e não a "nós", os homens, se opõe o resto da criação.
a) Se o sujeito é a criação inteira, Paulo dá dimensão cósmica à redenção. Isso supõe que, com a queda do homem, a criação inteira (também a sideral?) ficou submetida à desordem e dela participa (o contrário da distinção proposta pelo Salmo 104); ou então supõe que a caducidade da criação (Sl 102,27) vem do pecado de Adão (seria ampliar a sugestão dos cardos de Gn 3). A libertação dessa criação escravizada estaria vinculada à doutrina do céu e terra novos (Is 65,17; 66,22; 2 Pd 3,13).
b) Se o sujeito é a humanidade inteira, fora os cristãos, Paulo formula o anseio de vida e vida plena que todo homem acalenta no íntimo.
Em ambas as hipóteses deve-se manter que os cristãos formam um grupo à parte: sua redenção está realizada, mas não consumada. Falta algo substancial à sua filiação divina: a glorificação também do corpo. Por isso, também os cristãos gemem e esperam. Em ambas as hipóteses, a criação/humanidade aparece com "a cabeça voltada e à espera" (etimologia de apo-kara-dokia); com as dores de um parto que, apenas com suas forças, não teria êxito (cf. Is 26,17s; 37,3). Será necessária uma nova ação de Deus (cf. Jo 16,21; Ap 12). É possível que Paulo pense nas clássicas "dores de parto" que anunciam a era messiânica.

Nos Salmos 96 e 98, em Is 35; 55,12s etc. podemos encontrar alguma participação da natureza na libertação do povo.

No v. 23, a palavra grega traduzida por "primícias" é ἀπαρχὴ (aparchē), literalmente, quer dizer as primícias dos sacrifícios rituais, como acontecia no regime do Velho Testamento (Ex 23:16, 19; 34:22, 26; Lev 2:12, 14; 23: 10, 17, 20; por exemplo). Há várias interpretações para este texto:

1) num sentido mais contextualizado, os cristãos daquela época, a quem Paulo se dirigia, eram as primícias da era do Espírito, ou seja, eles eram privilegiados por poderem ser os primeiros pregadores do evangelho da graça de Deus. Paulo também pode estar se referindo ao Pentecostes, onde o Espírito Santo, pela primeira vez, havia sido dado graciosamente aos seres humanos;

2) por estar se dirigindo a uma platéia onde havia judeus, Paulo também pode estar querendo dizer que ao povo judeu haviam sido concedidas as primícias da revelação de Deus, tanto no Velho Testamento, como pelo novo pacto que Jesus havia propiciado;

3) num sentido mais espiritual, Deus permite que todos os cristãos de todas as épocas tenham, por assim dizer, um avant-première, uma antecipação das glórias que nos estão reservadas para o paraíso. O argumento contra esta interpretação é que esta palavra nunca tem este sentido no Velho Testamento, nem na própria carta aos romanos, como em:

11:16 Se as primícias são santas, também a massa o é; e se a raiz é santa, também os ramos o são.

16:5 Saudai também a igreja que está na casa deles. Saudai a Epêneto, meu amado, que é as primícias da Ásia para Cristo.

4) Alguns estendem um pouco mais o sentido da terceira versão, dizendo que, de uma certa maneira, o ritual sacrificial das primícias agora é invertido. São os cristãos que recebem de Deus as primícias do Espírito. Enquanto no Velho Testamento, oferecer as primícias a Deus significava glorificá-lo, agora ter as primícias do Espírito significa receber a graça de Deus, num caminho inverso ao anterior. Assim, a graça de Deus representa as primícias da Sua glória, que nos é reservada no paraíso. As primícias já são algo muito precioso, mas não representam toda a glória de Deus que nos está reservada, o que combina com o que Paulo diz em 1 Coríntios 2:9 ("As coisas que olhos não viram, nem ouvidos ouviram, nem penetraram o coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam").

5) Comparando com 2 Coríntios 1:22, o Espírito é o selo de Deus nos nossos corações e o penhor da nossa salvação. "Primícias" aí deveria ser entendido como "penhor", "garantia", idéia que Paulo aprecia muito e repete também em Efésios 1:13-14.

Eu acho que, no fundo, Paulo quis usar todos esses sentidos acima. Se eu tivesse que escolher só um, eu escolheria o quarto, mas o bom da Bíblia e da inspiração do Espírito Santo é isso mesmo: todo mundo lê o mesmo texto, mas o Espírito reparte a interpretação conforme o entendimento e a necessidade de cada um.

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