Esta discussão começou por causa de um artigo postado no Forum Atos, sobre o preconceito da Globo contra os evangélicos. Como não assisto novelas globais há muito tempo, limito-me a dizer que, na novela Duas Caras, um grupo de evangélicos teria sido retratado atacando homossexuais (ver íntegra do artigo aqui). Entretanto, já fui fã de televisão, e de vez em quando vejo alguma coisa na Globo, principalmente os noticiários. Daí eu me aventurar a dar o meu pitaco.
Sem qualquer trocadilho com o tema em questão, o buraco é muito mais embaixo. Nem dá pra analisar direito a influência monumental que a Globo exerceu nas últimas décadas no país, modelando costumes, ditando moda, impondo presidentes (lembrai-vos do Collor!), decidindo o que íamos pensar e conversar. Entretanto, por incrível que pareça, até coisas boas a Globo fez, não por própria vontade, mas por uma dessas felizes coincidências do destino, quando colocou no ar aquela série "Anos Rebeldes" justo na época das denúncias contra o Collor e o PC Farias, em 1992, jogando os estudantes caras-pintadas nas ruas do Brasil, o que a obrigou a ir de reboque na campanha do impeachment, coisa que não havia feito por ocasião das Diretas Já de 1984.
A Globo sempre quis que o Brasil fosse um grande Leblon. Aquela paz, aquela harmonia, cada um feliz no seu lugar. Os ricos, na Vieira Souto; os pobres, na Rocinha e no Vidigal. E todo mundo batendo um futevôlei democrático na praia enquanto a babá negra e pobre pajeia o bebê branco e rico. Os únicos conflitos seriam aqueles familiares de classe média das novelas do Manoel Carlos. Mesmo assim, tudo muito clean, muito asséptico, muito hype, muito fashion. A Globo demorou a admitir que havia negros no país, embora ainda não reconheça a presença de descendentes de japoneses no Brasil (salvo em ocasiões inescapáveis, como o centenário da imigração neste ano). Até a protagonista d'A Escrava Isaura tinha que ser branca. Os negros agora que estão fazendo papéis que não sejam o de escravos, mães-de-santo ou domésticas, e até um ou outro apresenta o Jornal Nacional (de preferência no sábado à noite, quando há menos audiência), mas os japoneses ainda estão restritos às kombis e aos pastéis das feiras caricatas das novelas que obrigatoriamente eles têm que ambientar em São Paulo por causa do ibope. E fazem isso com um nojo inescondível, pois não há antítese maior do Leblon do que o Brás. A Globo até que mostra nordestinos de vez em quando, mas de preferência valendo-se de atores do Leblon com aquele sotaque fake e com trilha sonora de algum nordestino que fez sucesso e mora no.... Leblon!!!
Quanto à religião, a Globo mostra católicos por obrigação, evangélicos por ojeriza e espíritas com satisfação. De vez em quando, por obrigação, tem que mostrar uma roda de candomblé na senzala. Ateus? Nem pensar! Antes da elevação de Edir Macedo aos píncaros da glória nesta terra, a Globo até que mostrava evangélicos uma vez ou outra, como o Francisco Cuoco (Cristiano Vilhena) na primeira versão de Selva de Pedra, em 1972, tocando bumbo na praça pra ajudar o pai, um pastor pobre (naquele tempo, pastor não pensava muito em dinheiro). A versão de 1986, com Toni Ramos no papel principal, segue mais ou menos o mesmo script. Não deixava de ser caricato, mas era pelo menos decente. Até o Chico Anísio, na virada dos 70 para os 80, tinha o seu personagem pastor evangélico, o Tim Tones (tristemente inspirado no suicídio coletivo de Jim Jones e seus seguidores na Guiana em 1978), e o seu indefectível bordão "vamos passar a sacolinha!" e aquela musiquinha até hoje impregnada nos meus ouvidos: "Tim Tones, glória, Tim Tones, oásis nos desertos dor". Entretanto, assim como a Tupi (extinta em 1980), a Globo gostava mesmo é de espíritas. Quase não há novela que não tenha um fantasminha camarada, e outras têm temas explicitamente kardecistas, como "A Viagem" e "O Profeta", ambas de Ivani Ribeiro e "remakes" de novelas dos anos 70 na antiga Tupi. Religião, no padrão global de novela, funciona mais ou menos assim: ninguém tá nem aí com religião, mas tem um parente fanático evangélico, visita um terreiro de umbanda onde estão exilados os negros, vê espíritos a novela inteira, casa como católico, reencarna no final, e começa tudo de novo.
Na virada dos 80 para os 90, incomodada com o crescimento da Universal e a compra da Record, a Globo lança uma campanha de denúncias contra Edir Macedo no Jornal Nacional, chegando a retratá-lo (oficiosamente) como o pastor Mariel, interpretado por Edson Celulari, na minissérie "Decadência", em 1995. Como o próprio Edir reconheceu na sua biografia, este episódio lhe provocou tal ódio que se decidiu a combater a Globo inflando a Record. O episódio do "chute na santa" do bispo da Universal, Sérgio von Helde, em 12 de outubro de 1995, pôs mais lenha na fogueira. A Globo chegou a usar o Caio Fábio, à época presidente da AEVB – Associação Evangélica Brasileira, para atacar a Universal, mas, além da reação dos "evangélicos" ter sido no mesmo tom, o próprio Caio Fábio viria a cair em desgraça algum tempo depois, por conta do seu envolvimento (inocentado judicialmente em 2005) no episódio conhecido como "Dossiê Cayman", que tinha supostas denúncias contra FHC e Covas, nas eleições de 1998. A Globo teve que recuar na sua campanha anti-Universal, mas de vez em quando dá suas estocadas, e uma delas é justamente recrudescer a caricatura dos evangélicos nas suas novelas, ou fazer questão de "grudar" o nome evangélico nos meliantes. Quando um corrupto, ladrão ou homicida vai pra cadeia, se ele for católico, espírita ou budista, ninguém vai se interessar, mas se for evangélico, ele será adjetivado, com muito gosto, de criminoso "evangélico". Não que muitos que usam o nome "evangélico" não mereçam ser criticados por seu apego ao dinheiro, sua obtusidade mental, seu conservadorismo (afinal, como eu sempre digo, "evangélico" hoje é um termo muito mais ideológico do que teológico no Brasil), mas a Globo faz questão de continuar ignorando que cerca de 15% dos brasileiros são evangélicos (e a imensa maioria deles são honestos), que cerca de 1% descendem de orientais e 50% são negros ou "pardos". Afinal, para o diretor do Jornal Nacional, cujo nome me recuso a reproduzir, nem existe racismo no país (título de um livro dele: "Não Somos Racistas"). Resumo da ópera: alegremo-nos, irmãos, pois na ilha da fantasia da Globo, o Brasil ainda vai se tornar um imenso Leblon.