quinta-feira, 13 de março de 2008

O evangelho de Lucas - parte 4

Prosseguindo a análise dos capítulos 1 e 2 do evangelho de Lucas, que está sendo debatido no Forum Atos. Segue abaixo:

CAPÍTULO 1

O Evangelho de Lucas começa com um prefácio, em que ele afirma ter procurado investigar e colocar em ordem os acontecimentos da vida de Jesus, a fim de que o destinatário do evangelho, Teófilo, pudesse ter "plena certeza das verdades em que fora instruído" (v. 4), o que abre também a possibilidade de que este Teófilo, personagem real ou fictício, fosse alguém que estava sendo discipulado por Lucas ou por Paulo. Lucas se preocupa em relatar desde o início (v. 3), apresentando João Batista, o profeta que haveria de preparar o caminho do Messias, que nasce mediante um milagre, já que sua mãe, Isabel, era estéril (v. 7). O seu nascimento também é anunciado por um anjo, a Zacarias, seu pai. O anjo se identifica como Gabriel, "que assiste diante de Deus"(v. 19), e que também anuncia o nascimento de Jesus a Maria (v. 26). Gabriel e Miguel são os únicos anjos que têm o seu nome declinado na Bíblia. Lucas faz uma pausa para relatar o encontro de Maria e Isabel (vv. 39-45), em que esta chama Maria de "bem-aventurada", o que de fato Maria era, e a chama de "mãe do meu Senhor" (v. 43), mas em seguida, no seu belíssimo canto Magnificat ("a minha alma engrandece ao Senhor"), Maria transfere todo o louvor a Deus. Isto mostra também a importância que Lucas dava às mulheres, fato raríssimo na cultura e na literatura da época. O Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs (Vozes-Paulus, 2002, p. 856) assim comenta:
No mundo greco-romano e no semítico, depois que este estabelecera firmes contatos com a cultura pagã, que privilegiava a dimensão de eticidade do modo de viver, a pessoa da mulher e sua condição social estavam longe de serem respeitadas.

Ao invés, no profetismo e onde quer que a revelação encontrasse ouvidos atentos, não se podia dizer que a mulher ocupava um lugar inferior. Contudo, nenhum escrito do NT a valoriza e a trata com a simpatia de Lucas. Isabel (Lc 1,13-60), Ana (Lc 2,36-38) e as santas mulheres (Lc 8,1-3), Marta e Maria de Betânia (Lc 10,38-42), a viúva de Naim (Lc 7,11-17), a pecadora da unção (Lc 7,36-50), a mulher curvada (Lc 13,10-17), as mulheres que acompanham Jesus ao calvário (Lc 23,27-31), a dona-de-casa (Lc 15,8-10), a viúva que importuna o juiz injusto (Lc 18,1-8) formam um grande mosaico, em que cada peça fixa um momento da nova sociedade que reconhece para a mulher uma específica missão.

Lucas registra ainda, o cântico de Zacarias, que havia ficado mudo até o nascimento de seu filho, João Batista, e de sua vida nos desertos, até o dia em que haveria de manifestar-se a Israel (v. 80).

CAPÍTULO 2

Lucas procura situar historicamente o nascimento de Jesus, e fala do decreto de recenseamento do imperador César Augusto, quando Quirino era governador da Síria. Há controvérsias sobre a precisão deste dado, já que o recenseamento teria se realizado no ano 6 d.C. Entretanto, é possível que outros recenseamentos tenham sido feitos nos anos anteriores. O nascimento de Jesus é narrado na forma convencional, embora chame a atenção o fato de Lucas ressaltar que "não havia lugar para eles na hospedaria" (v. 7). A convocação dos pastores pelos anjos revela a atenção que Deus dava aos proscritos, pois eles compunham uma classe desprezada tanto pelos religiosos como pela sociedade civil, já que não podiam cumprir as regras cerimoniais judaicas, e, dada a sua mobilidade pelo país, eram muitas vezes vistos como ladrões, como se fossem uma espécie de ciganos daquela época. Lucas não registra a visita dos reis magos, mas se concentra na questão da circuncisão de Jesus e de sua apresentação no templo, cumprindo todos os rituais iniciais de uma criança judia. Chama a atenção, também, a oferta do sacrifício, "um par de rolas ou dois pombinhos" (v. 24), o que mostra que José e Maria eram muito pobres.

Em seguida, Lucas registra o cântico de Simeão, homem justo e piedoso, que não queria morrer sem ver o Messias, como o Espírito Santo lhe havia revelado (v. 26). O próprio Espírito o levou ao templo para ver a criança, que estava "destinado tanto para a ruína como para levantamento de muitos em Israel" (v. 34), e que isto também traria muita dor a Maria (v. 35). Atento aos detalhes, Lucas ainda cita mais uma mulher, Ana, uma profetiza de 84 anos de idade, e que vivera com seu marido apenas 7 anos (v. 36-37), que também estava no templo, onde adorava seguidamente (v. 37), e pôde conhecer o Messias. De volta à Galiléia, "crescia o menino e se fortalecia; e a graça de Deus estava sobre ele". Entretanto, Lucas ainda registra as visitas anuais da família de Jesus a Jerusalém por ocasião da Páscoa (v. 41), e relata um fato ocorrido quando ele tinha 12 anos de idade, em que se separou da sua família (e dos que viajavam com eles) e foi debater com os doutores da lei no templo, "ouvindo-os e interrogando-os" (v. 46), onde ficou por 3 dias. Apesar da reprimenda da mãe, o menino Jesus ainda se mostrou surpreso com o nervosismo da mãe (v. 49), mas era obediente.

É interessante observar também que, apesar de todas as investigações de Lucas, ficamos sem saber o que aconteceu entre os 0 e os 12 anos do menino Jesus, e o evangelho dá um salto a seguir, para acompanhá-lo somente a partir dos 30 anos de idade. Nenhum dos 4 evangelhos se preocupa em preencher este vácuo narrativo, e mesmo poucos apócrifos se deram ao trabalho de escrever algumas linhas sobre este período. Talvez isso se deva ao fato de que Jesus deveria viver como homem, enfrentar o desenvolvimento humano comum a todos, até que pudesse se manifestar como Deus ao povo.

O capítulo 2 finaliza com Maria "guardando todas estas coisas no coração" (v. 51), como se estivesse conferindo todas as coisas que lhe haviam sido anunciadas sobre seu filho, mesma atitude de Jacó diante do relato do sonho de José, em que seus irmãos se curvavam a ele (Gênesis 37:11). Muito provavelmente, o que incomodava os dois era saber se as profecias que tinham ouvido eram verdadeiras, e se eram verdadeiras, quando chegaria o tempo em que se cumpririam?

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