Eu sou um dos brasileiros que não têm vergonha de admitir que amam a Argentina e enxergam a rivalidade no futebol apenas pelo lado desportivo, como um superclássico Boca x River, Fla x Flu, Corinthians x Palmeiras, e nada mais do que isso. Infelizmente, herdamos toda uma história de encontros e desencontros entre Espanha e Portugal, desde a colonização da América, que se acirrou pelos enganos dos nossos governantes do século XIX, incluindo aí algumas selvagerias como a Guerra do Paraguai. Felizmente, hoje a história é outra, e, ainda que o caminho seja árduo e distante, estamos muito mais próximos do que 30 anos atrás. Tenho grandes amigos argentinos, verdadeiros hermanos, e tudo isso me leva a ser leitor assíduo das versões online de La Nación, Clarín e do impagável Olé. Me dói muito ver a que ponto a Argentina chegou. No dia da posse do De La Rúa, se não me engano no dia 10 de dezembro de 1999, eu estava em Buenos Aires, e passava pela Plaza San Martín quando os presidentes latino-americanos, FHC entre eles, chegavam para a recepção na Cancillería (Chancelaria). Dois anos depois a crise da ingovernabilidade e da desvalorização do peso chegou ao fundo do poço, e a Argentina entrou na pior recessão de sua história. De La Rúa fugiu de helicóptero (reprisando a imagem de Isabelita Perón em 1976), e Eduardo Duhalde cumpriu um mandato tampão, reorganizou o país, e em 2003 entregou a faixa presidencial para o Néstor Kirchner, que fez um governo populista, na contramão do neoliberalismo, mas foi ajudado por um bom momento da economia mundial, e a Argentina, do fundo do poço em que estava, foi crescendo a taxas que, não raro, superavam os 10% anuais. No ano passado, a troca do bastão se deu dentro de casa, já que sua mulher, Cristina Kirchner, foi eleita presidenta, sem grande oposição, já que pouco se discutiu sobre política nas eleições do ano passado. A economia estava bem, o desemprego em baixa, a inflação maquiada, e era isso o que bastava aos argentinos depois de tanto sofrimento. Nem a acusação dos oposicionistas, de que uma monarKía estava se instalando no país, conseguiu impedir a continuação do poder sem qualquer mudança saindo ou entrando na residência oficial de Olivos.
Agora, parece que a situação começou a mudar. Ainda confiante no rolo compressor das medidas populistas do seu marido e antecessor, Cristina Kirchner parece que caiu no erro de imaginar que tudo pode, mesmo num país que ama e odeia os ditadores ao mesmo tempo, mas que, depois do golpe militar de 1976, passou a ter uma paranóia de autoritarismos. Parece que os Kirchner passam muito tempo divertindo-se com o karaokê em Olivos, e pensam que todos deviam simplesmente imitar e divertir-se com seus discursos. Preocupada com o desabastecimento do país, em função dos altos preços dos produtos agrícolas no mercado internacional, puxados pela crescente demanda chinesa, a presidenta instituiu uma espécie de pedágio nas exportações do campo, retendo parte da produção para o mercado interno. Parece que isto foi o estopim para que os produtores rurais se rebelassem fazendo piquetes e bloqueando estradas. Cristina Kirchner, crente de que o seu poder está acima de tudo, continuou na linha autoritária, e a classe média portenha foi às ruas nas últimas noites, com seu tradicional cacerolazo para protestar. Parece que a Argentina chegou a um impasse. As pessoas querem produzir, trabalhar, ganhar dinheiro, mas o governo ainda pensa o país como um imenso quartel onde pode mandar e desmandar sem oposição. Alguma coisa começa a mudar na Argentina, e eu sinceramente espero que tudo se resolva na mais absoluta paz e para o bem do país. Resta saber se os Kirchner pensam o mesmo, porque la Argentina, mi amigo, merece mucho más!