quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Deputado evangélico quer criar "bolsa-estupro" para evitar abortos

Não é preciso ser mulher para imaginar que o estupro deve ser uma das piores agressões (senão a pior) que ela pode sofrer. A gravidez resultante do estupro deve ser um fardo muito difícil de carregar, tanto que já é tolerado pelo Código Penal (art. 128, inciso II) desde 1940, embora seja um caso relativamente raro e de difícil implementação. Qualquer decisão que a mulher que foi vítima de estupro venha a tomar, uma vez constatada a gravidez, seja interrompê-la, seja levá-la até o parto, será extremamente difícil de suportar e levar adiante, observadas, é claro, as suscetibilidades peculiares de cada mulher. Não se trata de uma "negociação" interna, introspectiva, dela na base do "ganha-ganha", mas há enormes chances de se enquadrar no "perde-perde". Qualquer decisão que ela tomar, vai perder algo, e cabe a ela decidir onde está o menor prejuízo. Logo, na minha modesta opinião, o Estado e a sociedade têm que propiciar condições de diminuir o stress e a pressão brutais que ela já sofre por sua condição, e não forçá-la a seguir esta ou aquela diretriz apenas para satisfazer as convicções religiosas de quem quer que seja. Apesar de pessoalmente eu ser contra o aborto, não ouso dizer como o deputado conclui (com certeza absoluta) na sua justificativa, "se, no futuro, a mulher se casa e tem outros filhos, o filho do estupro costuma ser o preferido. Tem uma explicação simples na psicologia feminina: as mães se apegam de modo especial aos filhos que lhes deram maior trabalho". A própria comparação infeliz entre "trabalho" e "estupro" nessa frase já revela o quanto ele (não) entende do assunto. Agora, querer pagar um "psicólogo cristão" para "convencer" a mulher a ter o filho concebido num estupro me parece uma medida não destoaria nem um pouco dos métodos nazistas de "convencimento". Não deixa de ser muito cômodo decidir - à distância - qual o tipo e o grau de violência que a mulher sofreu e decretar como ela deve encará-la. Considero, ainda, que a mulher que esteja nessa situação tem todo o direito de receber o máximo de assistência social, médica e psicológica que o Estado possa lhe prover, mas sem nunca "convencê-la" a tomar essa ou aquela decisão. Ela já está por demais fragilizada para se sentir ainda mais culpada por satisfazer (ou não) essa ou aquela convicção alheia. A notícia é do Estadão:

Projeto de lei cria "bolsa-estupro" para evitar que mulheres abortem

Proposta em tramitação no Congresso fixa pagamento pelo Estado de um salário mínimo mensal durante 18 anos

Projeto de lei em tramitação no Congresso pretende combater o aborto em gestações resultantes de estupro - prática permitida no Brasil desde o Código Penal de 1940 - com base em um pagamento pelo Estado de um salário mínimo para a mulher durante 18 anos. A idéia, conhecida como "bolsa-estupro", pretende, nas palavras de um dos autores do texto, o deputado Henrique Afonso (PT-AC), "dar estímulo financeiro para a mulher ter o filho".

A idéia de subsídio para grávidas vítimas de violência sexual está também no projeto do Estatuto do Nascituro - texto que torna proibido no País o aborto em todos os casos, as pesquisas com células-tronco, o congelamento de embriões e até mesmo as técnicas de reprodução assistida, oferecendo às mulheres com dificuldades para engravidar apenas a opção da adoção.

Os textos provocaram enxurrada de reclamações e protestos de organizações não-governamentais ligadas aos direitos humanos, aos movimentos feministas e até mesmo em esferas governamentais. Ontem, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher divulgou carta afirmando que as propostas são um retrocesso nos direitos já obtidos no País. "É retrocesso, uma proposta sem cabimento, equivocada desde o começo. Trata a violência contra a mulher como monetária, como se resolvesse dando um apoio financeiro. Nós apoiamos a liberdade de escolha da mulher", afirma a ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres.

"O aborto, para nós evangélicos, é um ato contra a vida em todos os casos, não importa se a mulher corre risco ou se foi estuprada", afirma o deputado Henrique Afonso. "Essa questão do Estado laico é muito debatida, tem gente que me diz que eu não devo legislar como cristão, mas é nisso que eu acredito e faço o que Deus manda, não consigo imaginar separar as duas coisas."

A proposta do deputado inclui ainda outro item bastante polêmico, que prevê que psicólogos, pagos pelo Estado, devam atender essas mulheres para convencê-las da importância da vida, fazendo com que elas desistam do aborto. "O psicólogo comprometido com a doutrina cristã deve influenciar a mulher e fazer com que ela mude de opinião", defende Afonso. No entanto, o Código de Ética da profissão proíbe ao psicólogo, no exercício de suas funções, "induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual".

Na justificativa do projeto, o deputado diz que "se, no futuro, a mulher se casa e tem outros filhos, o filho do estupro costuma ser o preferido. Tem uma explicação simples na psicologia feminina: as mães se apegam de modo especial aos filhos que lhes deram maior trabalho".

"A ciência está do nosso lado, pois a genética diz que a concepção acontece no primeiro minuto, a partir daí já é uma vida e vamos fazer de tudo para que ela seja respeitada", defende o deputado Luiz Bassuma (PT-BA). Questionado sobre a proibição de congelamento de embriões in vitro, o deputado é enfático: "As mulheres que adotem. A resposta para quem não consegue ter filhos é adoção. Estamos sendo pioneiros, o mundo inteiro ainda vai rever essas permissões que se dizem científicas e são contra a vida", diz ele.

REAÇÕES

"Há uma dificuldade em compreender que o Estado democrático surge para assegurar a liberdade de crença da população. Há uma confusão no entendimento de alguns parlamentares entre direito e moral, entre religião e política pública", afirma a advogada Samantha Buglione, do Instituto Antígona e das Jornadas Pelo Direito de Decidir.

"Desse modo, propostas como essas corrompem toda a estrutura legal que nós temos, pois pretendem impor uma determinada crença, um pensamento único, baseado numa moral", complementa.

A jurista Silvia Pimentel, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e vice-presidente da Comissão das Nações Unidas para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres, realça o caráter de troca da proposta, de pagamento financeiro num contexto de miséria de boa parte da população. "É lamentável que mais uma vez nossos parlamentares estejam se ocupando de questões sérias de maneira esdrúxula. Adoraria perguntar a eles se gastam tanta energia e dedicação à implantação efetiva do Estatuto da Criança e do Adolescente."

"Não é a proteção da maternidade, senão todas as grávidas receberiam. Nem compensação para vítima de violência sexual, pois senão todas também receberiam. É perverso propor oferecer dinheiro para mulheres aderirem a uma tese. Porque é uma tese que eles colocam", diz a antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB).

FRASES

Nilcéa Freire
Ministra da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres

"É retrocesso, uma proposta sem cabimento, equivocada desde o começo. Nós apoiamos a liberdade de escolha da mulher"

Henrique Afonso
Deputado do PT-AC

"O Estado deve garantir o que pensa a maioria e acredito que a maioria dos brasileiros acredita no que Deus prega, que é o direito à vida. Não posso separar o deputado do cristão"

Samantha Buglione
Advogada

"Há uma dificuldade em compreender que o Estado democrático surge para assegurar a liberdade de crença da população. Há uma confusão no entendimento de alguns parlamentares entre direito e moral, entre religião e política pública"

Luiz Bassuma
Deputado do PT-BA

"A vida é um bem primordial. A ciência já comprovou isso. Vamos lutar para que isso seja garantido no Brasil e no mundo"



Um comentário:

  1. Não é um projeto bem pensado.
    Os efeitos psicológicos do estupro não se corrigem pela compensação financeira.

    A diretriz do projeto deveria ser a adoção das crianças.

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