sábado, 10 de dezembro de 2011

Religiosidade de passagem: o crescimento evangélico no Brasil



Fazia tempo que não se produzia uma análise tão abrangente e brilhante do fenômeno religioso no Brasil, como é o caso do artigo abaixo, publicado pelo conceituadíssimo Le Monde Diplomatique no dia 01/11/11 em sua versão eletrônica para o país. O responsável pelo artigo é Ronaldo de Almeida, professor de Antropologia da Unicamp, pesquisador do Cebrap e autor do livro "A igreja Universal e Seus Demônios" (Ed. Terceiro Nome, 2009). O artigo é longo, não pretende ser definitivo nem exaustivo, e merece ser lido na íntegra, mas se você não tiver paciência ou tempo para tanto, a síntese dele, nas suas próprias palavras, é que "cada vez menos 'virar crente' significa ruptura ampla e profunda com seu modo de vida. Cada vez mais a diversidade aumenta a oferta de estilos de vida evangélicos". Ronaldo de Almeida cunha a interessante expressão "religiosidade de passagem" para definir a prática (e a ideologia) evangélica no Brasil, dado o grande número de igrejas que abrem suas portas nas redondezas dos lugares públicos de grande concentração (e passagem) de pessoas, como estações de ônibus, trem e metrô, centros comerciais, etc., entram e saem por uma e outra porta como se - de fato - a elas não pertencessem. Aponta ainda que os evangélicos no Brasil vivem "uma religiosidade muito direcionada para as demandas cotidianas materiais, afetivas e subjetivas, e menos voltada para a vida eterna, o pós-morte ou a especulação teológica, por exemplo", ou seja, têm uma expectativa materialista e consumista apenas para esta vida aqui e agora, flexível e adaptável a toda e qualquer demanda que se lhes apresentar. Acrescenta:
Em boa medida, essa flexibilização decorre da circulação de uma parcela dos evangélicos entre as diversas igrejas. Assim, o crescimento evangélico, sobretudo da vertente pentecostal, é bem peculiar: multiplicam-se os nomes das igrejas, mas as pessoas são menos fiéis a uma delas especificamente. Uma parte significativa dos fiéis circula entre as igrejas “calibrando” sua religiosidade: com mais ou menos reflexão teológica, mais ou menos exigências comportamentais, mais ou menos emocionalismo, mais ou menos milagres, e por aí vai. Esse trânsito religioso proporcionou aos indivíduos maior autonomia, que se reflete na desinstitucionalização da prática religiosa. A vida religiosa parece cada vez mais privatizada ao mesmo tempo que de massa, logo, menos sujeita aos ditames morais de uma comunidade de “irmãos de fé”.
Todas essas questões esmiuçadas no artigo levam o autor à conclusão de que o crescimento evangélico no Brasil, concentrado nas vertentes pentecostais e neopentecostais, tem, por assim dizer, um "teto", do qual dificilmente passará. O descompromisso e a imensa rotatividade da membresia evangélica entre as igrejas o leva a crer que o crescimento vegetativo desse grupo será estável, entre os que entram, os que saem, os que voltam e os que circulam ("passam") pelas inúmeras denominações, como - aliás - já havíamos comentados aqui no blog, no artigo "O inchaço da igreja evangélica brasileira". Por fim, todo o artigo caminha em direção a uma conclusão óbvia e inescapável: "quanto mais o Brasil se torna evangélico, mais os evangélicos, principalmente os pentecostais, tornam-se como o Brasil". Confira a íntegra do artigo:

O que significa o crescimento evangélico no Brasil?

Há cerca de três décadas essa pergunta domina o debate público sobre as mudanças religiosas recentes no país, e se desdobra em outras. Quais são as causas da expansão evangélica e suas implicações? Trata-se de um segmento conservador de matriz fundamentalista? Como lidar com a presença crescente desses religiosos na mídia, ora sendo notícia, ora na posição de proprietários do veículo de comunicação, ou ambos ao mesmo tempo? Como conviver com a moralidade pessoal e os valores públicos dos evangélicos? E a lista de questões não termina...

Não é simples definir a partir de quando os evangélicos começaram a ocupar o debate público, mas a eleição de 1986, que elegeu o Congresso Nacional Constituinte, pode ser considerada um marco. Nela, os pentecostais saltaram de dois deputados federais para dezoito, enquanto os protestantes históricos elegeram dezesseis, dando origem ao termo Bancada Evangélica, embora nem todos participassem dela, como atualmente nem todos participam. Já em 2010, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), foram eleitos 63 deputados federais e três senadores que se declararam evangélicos.

A compra da decadente Rede Record pela Igreja Universal, em 1989, também foi outro acontecimento que coroou décadas de investimento dos evangélicos nos meios de comunicação. Atualmente, ela é a segunda maior rede de televisão do país, rivalizando por vezes com a Rede Globo. Em resumo, os evangélicos não só crescem numericamente como também ampliam seu alcance para o mercado, a política e a mídia, que se retroalimentam.

Como consequência dessas investidas, existe uma preocupação disseminada na opinião pública, que se expressa na desconfiança sobre os interesses e o sentido dessa expansão religiosa. Seriam esses interesses comerciais? Ao que parece, essa é a crítica mais frequente.

A imagem dos evangélicos, sobretudo a dos pentecostais, bastante difundida na sociedade brasileira, é a de um segmento formado por pessoas na maioria das vezes honestas e confiáveis nas relações pessoais, mas pouco tolerantes com religiões e morais alheias. Suas lideranças costumam ser percebidas com desconfiança, sendo algumas consideradas ambiciosas e arrivistas. Em que medida tal avaliação procede?

Diversidade e flexibilidade

Os dados do Censo 2010 sobre filiação religiosa, assim como outros, ainda não foram divulgados. Entretanto, pelo que vêm demonstrando várias pesquisas de menor alcance demográfico, algumas tendências apontadas nos dois últimos Censos (1991 e 2000) devem permanecer: o declínio de pessoas que se identificam como católicas e o aumento daquelas que se declaram evangélicas ou sem religião. A dúvida é quais foram as taxas dessas tendências na última década.

A primeira consideração a ser feita é sobre a diversidade daquilo que genericamente se chama protestante histórico, pentecostal tradicional e neo-pentecostal. Mesmo ciente de que alguns desses religiosos não aceitariam ser classificados como evangélicos, adoto esse termo por ser de uso mais corrente e abranger todos os outros, que, por vezes, podem ser nomeados também como “crentes”. Entretanto, é prudente precaver que boa parte das minhas considerações refere-se mais propriamente ao pentecostalismo (o tradicional e o neo).

O campo evangélico é variado, e a onda do crescimento tem quebrado em várias direções e com intensidades diferentes. A diversidade engloba da posição moral mais conservadora à crescente flexibilização dos costumes e comportamentos. Em relação a esse segundo caso, cada vez menos “virar crente” significa ruptura ampla e profunda com seu modo de vida. Cada vez mais a diversidade aumenta a oferta de estilos de vida evangélicos. A onda gospel, não só como gênero musical, mas também como estética, prática cultural e comportamento juvenil, é um bom exemplo de uma vida menos “careta” e em sintonia com os tempos atuais.

Em boa medida, essa flexibilização decorre da circulação de uma parcela dos evangélicos entre as diversas igrejas. Assim, o crescimento evangélico, sobretudo da vertente pentecostal, é bem peculiar: multiplicam-se os nomes das igrejas, mas as pessoas são menos fiéis a uma delas especificamente. Uma parte significativa dos fiéis circula entre as igrejas “calibrando” sua religiosidade: com mais ou menos reflexão teológica, mais ou menos exigências comportamentais, mais ou menos emocionalismo, mais ou menos milagres, e por aí vai. Esse trânsito religioso proporcionou aos indivíduos maior autonomia, que se reflete na desinstitucionalização da prática religiosa. A vida religiosa parece cada vez mais privatizada ao mesmo tempo que de massa, logo, menos sujeita aos ditames morais de uma comunidade de “irmãos de fé”.

Isso é visível na paisagem urbana brasileira, na qual vemos igrejas neopentecostais com as portas abertas permanentemente e com cultos em vários horários do dia, os quais se frequenta sem estabelecer vínculos comunitários e pessoais densos. Vários desses templos estão próximos aos principais terminais de transporte público das grandes cidades brasileiras, configurando uma religiosidade de passagem, bem adequada à lógica e aos fluxos urbanos. Trata-se de uma religiosidade muito mais centrada na pregação do pastor (também vista individualmente em casa, pela televisão) do que no fortalecimento das relações horizontais entre os frequentadores dos cultos.

Muitos evangélicos falam da experiência religiosa como uma espécie de autoconhecimento, um voltar-se para si. Não por acaso, a pregação aproxima-se dos discursos de autoajuda e de empreendedorismo, tão recorrentes no mundo atual. Em suma, uma religiosidade muito direcionada para as demandas cotidianas materiais, afetivas e subjetivas, e menos voltada para a vida eterna, o pós-morte ou a especulação teológica, por exemplo.

Para não dizer que não falei dos católicos

Até onde vai esse crescimento evangélico, sobretudo dos pentecostais? Estes serão maioria no Brasil? Permitindo-me um exercício de futurologia, minha resposta é não, pelo menos não na velocidade que parece preocupar boa parte da opinião pública atual. Especulo que a tendência de crescimento das pessoas declaradas pentecostais, em particular, “baterá no teto”; não sei qual, mas o suficiente para não se constituírem como maioria demográfica no país.

Em boa medida, embaso meu argumento citando a expansão-reação do catolicismo carismático. Padre Marcelo, Renovação Carismática, Canção Nova são alguns dos polos da revitalização católica, principalmente entre jovens e nas áreas urbanas. Assim, se uma das tendências demográficas no país é a do declínio das pessoas que se declaram católicas, é fato também que a expansão do carismatismo entre os católicos os tem tornado mais convictos de sua identidade religiosa, à semelhança dos evangélicos.

Como consequência, a autodeclaração “católico não praticante”, tão popular no Brasil, tem cedido espaço à declaração “sem religião”. Isso pode ser considerado um feito do pluralismo religioso no Brasil: com a disputa por adeptos, a religião hegemônica (no caso, o catolicismo) é forçada à competição, colocando-se como uma alternativa, e não como a religião dos brasileiros. Resultado: se o número de católicos declina, ao mesmo tempo o catolicismo se robustece.

Entretanto, parte desse sucesso católico deve-se exatamente à semelhança dos carismáticos com os evangélicos na doutrina da conversão, na dinâmica dos ritos, na experiência emocional, nos valores morais, nas práticas sociais, nas relações comunitárias e nas estratégias de crescimento. Assim, a expansão da religiosidade evangélica não se dá somente na atração de católicos, mas também por dentro do catolicismo. A religiosidade de muitos brasileiros tem adquirido cada vez mais tonalidades evangélicas.

Política, moral e interesses

Se o crescimento dos evangélicos dá-se em várias direções, o mesmo pode ser dito da participação na política institucional. Ela varia de práticas orientadas por interesses de grupos específicos a ações pautadas por temas mais estruturais da sociedade brasileira. Ressalta-se, contudo, que as primeiras são em maior número, espelhando a própria representação política do país.

Entre as várias Comissões Permanentes do Congresso Nacional, é comum encontrarmos evangélicos naquelas que tratam dos meios de comunicação, dos programas sociais, da formação de Conselhos Públicos. Por um lado, visam à propaganda religiosa, por outro, atuam como mediadores dos serviços oferecidos pelo Estado.

Além desses interesses, os temas de ordem moral e de fé religiosa são mobilizados com a finalidade de gerar identidade política entre os fiéis. A recente eleição para a Presidência da República, em 2010, forneceu um bom cenário para pensarmos a movimentação política dos evangélicos.

De forma geral, a então candidata Marina Silva, do Partido Verde (PV), atraiu parte do eleitorado evangélico sem se valer excessivamente dessa identidade, pois já fazia parte de sua imagem pública. Seu problema foi o mesmo de Anthony Garotinho na campanha presidencial de 2002: não deixar a imagem evangélica provocar resistências no restante do eleitorado. No caso de Marina, uma declaração de que acreditava que o deus judaico-cristão havia criado o mundo lhe rendeu inúmeros questionamentos, sendo classificada por muitos como criacionista. Marina respondeu que a grande maioria da população brasileira acredita em Deus e que ele havia criado o mundo; além disso, ela não defendeu, pelo menos não publicamente, que o criacionismo fizesse parte do currículo escolar público.

Em relação à sempre polêmica questão do aborto, a candidata Dilma Rousseff (PT) foi a que mais perdeu pontos com esse debate. Graças ao marketing político de seu principal adversário, José Serra (PSDB), a posição pró-aborto foi mais associada a Dilma, o que gerou resistência de muitos religiosos, principalmente dos evangélicos. Marina respondia a essa questão propondo um plebiscito, pois estava ciente de que as sondagens estatísticas indicavam que a maior parte da população votaria contra a legalização do aborto.

Por fim, Serra assumiu a bandeira contra o aborto, assustando, e mesmo constrangendo, setores mais escolarizados e moralmente liberais nos quais tem forte base eleitoral. Mas Serra não é visto como alguém com perfil religioso, no sentido de reivindicar uma identidade, fosse ela católica, evangélica, espírita, entre outras possíveis. Seu programa eleitoral deixou o discurso contra-aborto para o pastor da Assembleia de Deus, Silas Malafaia, que tem se configurado como contraponto ao bispo Macedo e à Igreja Universal do Reino de Deus, apoiadores dos governos Lula e Dilma.

O início desse apoio aos candidatos do PT deu-se somente na campanha presidencial de 2002, graças à aliança com o então nanico Partido Republicano (PR), que além de fornecer o vice de Lula, José Alencar, tinha metade de seus deputados federais pertencentes à Igreja Universal. Cabe relembrar, contudo, que durante as eleições presidenciais de 1989 as pregações e os jornais da Igreja Universal declaravam que Lula era o candidato do diabo.

Plasticidade e enraizamento

A Igreja Universal não apenas refez seu discurso anti-Lula e anti-PT, em 2002, como assumiu uma posição pouco fundamentalista em relação à reprodução humana, em 2009. Quando se intensificou no país o debate público (na verdade, mais restrito às camadas escolarizadas) em torno das pesquisas com células-tronco embrionárias e, a reboque naquele momento, a legalização do aborto em casos específicos, a Igreja Universal declarou-se a favor dos dois pleitos. Além dela, manifestaram-se a favor setores mais liberais do protestantismo histórico, como a Igreja Metodista e a Igreja Presbiteriana do Brasil.

Como bem sabemos, a posição religiosa mais contundente e eficaz em termos políticos contra os dois temas é a da Igreja Católica, mas – convém sempre dizer – bem menos dos fiéis católicos. Ser a favor dos dois pleitos foi uma forma de a Igreja Universal se colocar na discussão em contraposição à Igreja Católica, com quem costuma rivalizar e de quem deseja o lugar na sociedade brasileira. Porém, tais posicionamentos permitiram a repercussão da pregação de Silas Malafaia como portador do discurso evangélico conservador, logo, contrário ao aborto.

O mesmo conservadorismo tem sido direcionado contra a criminalização da homofobia. Por considerarem a homossexualidade curável moral e espiritualmente, os evangélicos veem a criminalização como limitadora de sua pregação religiosa. Nesse assunto, bispo Macedo e Silas Malafaia estão do mesmo lado.

Por outro lado, em decorrência da crescente flexibilização dos costumes e comportamentos, foram criadas recentemente as “igrejas inclusivas” de perfil evangélico, que não condenam a homossexualidade. O número das igrejas inclusivas é insignificante perante a posição conservadora, mas o importante é perceber como a onda evangélica tem quebrado para vários lados, diferenciando-se conforme outras mudanças sociais no país.

Em que medida, então, procedem a preocupação e a desconfiança da opinião pública em relação ao crescimento evangélico, como indagado inicialmente? A avaliação continua cabendo ao leitor. Os argumentos aqui apresentados, contudo, visaram demonstrar como as questões de fé imbricam-se em outras dinâmicas e mudanças políticas e sociais mais amplas do contexto brasileiro, que podem ser resumidas em uma tautologia sociológica: quanto mais o Brasil se torna evangélico, mais os evangélicos, principalmente os pentecostais, tornam-se como o Brasil.



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