Mais do que uma pergunta, esta é a dúvida cruel que assola a jornalista e escritora de origem afegã (e radicada no Reino Unido) Nushin Arbabzadah, que tem excelente formação acadêmica em literatura (alemã e espanhola) e linguística pelas Universidades de Hamburgo e Cambridge, em seu interessante artigo no jornal britânico The Guardian, traduzido por Clara Allain e publicado na Folha:
O Islã pode adaptar-se às necessidades dos muçulmanos ocidentais?
NUSHIN ARBABZADAH
DO "GUARDIAN"
No funeral de meu pai, a voz do imã ecoava alto pelos alto-falantes, vinda desde atrás da cortina espessa que dividia o salão da congregação em setores masculino e feminino. Ouvi com atenção, procurando entender suas palavras. Afinal, a ideia era que essa cerimônia me consolasse e me ajudasse a superar minha perda. Esperei para sentir a misericórdia e compaixão às quais os muçulmanos aludiam toda vez que diziam "bismillah". Mas a única coisa que consegui entender da récita do imã foi o termo "shaitan", uma referência ao diabo.
Não demorei a desistir por completo de tentar ouvir. O imã poderia igualmente bem estar falando em coreano, idioma que me é tão desconhecido quanto o árabe em que o sermão era proferido. Me perguntei por que eu não era autorizada a ouvir as palavras de Deus em minha própria língua? Por que era obrigada a estudar o árabe corânico para poder entender o que o imã me dizia no funeral de meu pai? Pela primeira vez na vida eu precisava realmente da religião para me consolar, mas lá estava eu, ouvindo um discurso em uma língua estranha na qual a palavra "diabo" reaparecia a todo momento, me alarmando ao invés de me consolar.
Quando a língua finalmente mudou para o persa, esperei ouvir algo do Hadith que me ajudasse. Mas, para alarme meu, embora o Hadith e a interpretação dela feita pelo imã eram em minha língua, não consegui entender qual era sua relação com a vida e a morte de meu pai. Estávamos em Hamburgo, no norte da Europa, mas o imã contou uma história que nos conduziu às terras árabes do século 8, onde um grupo de crentes estava escondido em uma caverna. Era uma história de violência, uma tentativa de massacre da qual os crentes foram salvos apenas depois de Deus ter milagrosamente criado uma teia de aranha que cobriu a frente da caverna e confundiu os potenciais assassinos.
Duas ideias me ocorreram. Para começar, exatamente como eu deveria me identificar com a caverna, a aranha e o deserto, estando nesta cidade alemã fria com seus arranha-céus do século 21 feitos de vidro? Em segundo, que relação essa história tinha com meu pai? Deixei de acompanhar a Hadith por alguns instantes, e as palavras seguintes que chegaram a meus ouvidos foram "nem todos os programas de TV alemães são ruins. Alguns são bons." Que bênção!
Eu estava na parte das mulheres, sentada numa cadeira, cumprimentando uma longa fila de pessoas que me eram estranhas totais que paravam à minha frente, se ajoelhavam e cochichavam palavras de condolências. Quando as mulheres se ajoelhavam, eu notava suas bolsas enormes e enfeitadas e percebia que elas estavam completamente maquiadas, com base, batom e sombra colorida. O botox barato, de fabricação iraniana, estava igualmente em evidência entre mulheres de certa idade, cujas sobrancelhas quase chegavam ao fim de suas têmporas, com bochechas que pareciam balões, cobertas de blush rosado. Percebi que, para essas senhoras muçulmanas, o funeral de meu pai era uma ocasião social em que as filhas de Eva se sentiam obrigadas a competir entre elas, com botox, maquiagem e bolsas. Se essas mulheres fossem autorizadas a sair para outros eventos que não fossem casamentos e enterros, não teriam convertido o funeral de meu pai em um desfile de moda.
Procurei um xador na seção feminina. Os xadores ficavam em um guarda-roupa; quando abri a porta deste, encontrei caos total. Os xadores tinham sido empurrados dentro do guarda-roupa e empilhados aleatoriamente. Foi preciso vasculhar entre eles para encontrar um que fosse apropriado para um funeral.
Para mim, o caos dos xadores representa o caos na cabeça de tantas mulheres muçulmanas que são crentes piedosas, mas também, paradoxalmente, são excluídas de uma educação religiosa correta. Sua fé é cega, uma combinação de histórias de centenas de anos atrás, misturadas com alguns suras decorados em árabe e um pouco da Hadith, cujo significado não lhes é inteiramente claro. As mais velhas, com aparência apavorada, resmungam palavras em árabe e beijam as bandeiras religiosas com palavras em árabe bordadas sobre elas.
Os clérigos muçulmanos têm um longo caminho a percorrer para tornar o islã relevante para as necessidades das comunidades de diáspora no Ocidente. A religião percorreu centenas de quilômetros, mas os próprios imãs tiveram dificuldade em adaptar-se ao Ocidente, o que dirá conseguir oferecer à comunidade o conforto e a orientação de que ela precisa para poder viver em paz entre duas civilizações que parecem tão hostis uma à outra. São os cegos conduzindo os cegos, concluí ao deixar a mesquita, esperando encontrar conforto na contemplação solitária feita em minha própria língua.