Viver numa democracia não é o melhor dos mundos, mas ainda não inventaram um sistema político melhor, com o perdão da redundância proposital. Por isso é sempre bom recordar em que resultaram as alternativas ditatoriais e totalitárias que alguns ainda defendem, ainda que nos doa imaginar que seres humanos foram capazes de barbarizar outros seres humanos por divergências de opinião com este requinte de crueldade. Os "voos da morte" foram um dos meios utilizados pela ditadura militar argentina para se livrar dos seus opositores. Estima-se que cerca de 30 mil pessoas simplesmente "desapareceram" do país em circunstâncias que raramente foram esclarecidas. Muitas delas estavam nos aviões que sobrevoavam o Rio da Prata e o Oceano Atlântico, e eram jogadas lá de cima com os pés e as mãos amarradas para que não tivessem nem a improvável chance de - sobrevivendo à queda - nadar milhas e milhas até a praia mais próxima. O jornalista argentino Ariel Palacios, correspondente do Estadão e da Globo News em Buenos Aires, dá os detalhes escabrosos (com algumas fotos) dessas mortes e conta como os presos eram torturados antes de embarcar no voo final, isto em seu blog. A juventude de hoje, que não enfrentou nada parecido com o monstro da ditadura, anda tão indiferente, inconsequente e reacionária, que a gente tem sempre que relembrá-los do que a vida deles poderia ter sido. No final do seu relato, Ariel Palacios comenta ainda sobre um capitão de corveta que tinha delírios à noite e na manhã seguinte comentava com seus colegas que havia conversado com o "menino Jesus" para saber quais prisioneiros ele ia mandar atirar lá de cima. Miséria humana em doses cavalares. Recomenda-se estômago forte para ler artigo a seguir:
“Voos da morte”: CIDH revela fotografias e documentos sobre as vítimas
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) entregou nesta quinta-feira 130 fotos inéditas de vítimas dos denominados “voos da morte”, denominação dos voos que a aeronáutica naval argentina realizava durante a ditadura militar (1976-83) sobre o rio da Prata e o mar para jogar nas águas os prisioneiros, ainda vivos, desde os aviões. A maior parte dos cadáveres dos prisioneiros políticos argentinos encontrados naquela época foram levados pela correnteza às costas do Uruguai, cujo governo acreditava no início que eram vítimas de um naufrágio de um navio asiático.
Além das fotografias – de alta qualidade – a CIDH enviou à Buenos Aires relatórios dos anos 70 da Guarda Costeira e dos serviços de inteligência do Uruguai sobre a descoberta dos corpos nas praias uruguaias.
O material também contém mapas indicando onde os corpos foram encontrados. A maior parte dos cadáveres apareceram nas praias entre as cidades de Colônia (sobre o rio da Prata) e La Paloma (no oceano Atlântico).
As fotografias mostram pessoas nuas, a maioria com as mãos e os pés amarrados com cordas. Os militares argentinos teriam amarrado os prisioneiros para evitar distúrbios dentro dos aviões, além de impedir que tivessem qualquer chance de nadar, em caso de sobrevivência quando eram arremessadas desde os aviões.
Os corpos também exibem marcas de torturas, como fraturas ósseas múltiplas no tórax e membros, além de crânios esfacelados. Os cadáveres exibem marcas de choques elétricos.
Em vários casos, especialmente mulheres, os cadáveres tinham marcas de perfurações feitas com objetos pontiagudos em seus púbis e ânus. Outra foto mostra um homem que havia sido castrado com um certeiro corte de faca pouco tempo antes de sua morte.
O material fotográfico e os relatórios feitos na época pela Guarda-Marinha do Uruguai foram entregues ontem ao juiz federal Sérgio Torres, responsável pelas investigações e o julgamento dos envolvidos no “mega-processo ESMA”, denominação do processo que envolve dezenas de ex-torturadores da Escola de Mecânica da Armada (ESMA).
Os arquivos confidenciais, que pertencem ao relatório secreto realizado pela CIDH entre 1979 e 1980 na Argentina e no Uruguai, foram encontrados em novembro pelo juiz Torres dentro de 65 caixas na sede da Comissão Interamericana, nos EUA.
Ao ver os primeiros relatórios Torres fez algumas fotocópias. Mas, depois, ao perceber que ali poderia estar material que pudesse comprovar a existência dos “voos da morte”, solicitou à CIDH o material original.
O secretário-executivo da CIDH, Santiago Cantón, declarou que estes documentos possuem alto valor, já que até agora, todas as provas sobre os voos da morte eram depoimentos.
Os integrantes atuais da CIDH não sabem qual é a origem dos documentos encontrados. No entanto, suspeitam que poderiam ter sido entregues pelo ex-marinheiro e fotógrafo da Marinha uruguaia, Daniel Rey Piuma, que – chocado pelos horrores da ditadura de seu país (1973-85), desertou e fugiu para o Brasil. Posteriormente pediu asilo na Holanda, onde reside. Piuma teria escapado do Uruguai com material fotográfico que teria entregue a representantes do CIDH no Brasil na época.
A revelação da documentação é uma atitude inédita da CIDH, que pela primeira vez abre seus arquivos confidenciais para seu uso em um processo na Justiça. Além disso, os documentos poderiam gerar um pedido da Justiça argentina ao Estado uruguaio para que Montevidéu desclassifique os documentos relacionados à descoberta de corpos de argentinos nas costas do Uruguai nos tempos da ditadura.
Estimativas de ONG argentinas e de organismos internacionais como a Anistia Internacional indicam que a ditadura argentina assassinou 30 mil civis. Destes, 5 mil teriam passado pela ESMA. Menos de 150 sobreviveram às torturas e os fuzilamentos feitos pelos oficiais da Marinha.
A ESMA era comandada pelo almirante Emilio Massera, definido pelo escritor Miguel Bonasso como “o serial killer com sorriso de Gardel”, em alusão à sua crueldade e personalidade esquizofrênica. Massera morreu em novembro do ano passado, após uma década em estado vegetativo.
EMPALADO VIVO - Uma das fotos, relativas a três corpos encontrados no dia 22 de abril de 1976, quase um mês após o golpe que deu início à ditadura argentina, mostra o cadáver de um jovem com a marca de uma tatuagem com as letras “FA”. Segundo a Equipe Argentina de Antropologia Legista – responsável pela identificação de centenas de corpos de desaparecidos nos últimos anos – a foto seria do cadáver do adolescente Floreal Avellaneda, sequestrado no dia 15 de abril. O corpo, com a tatuagem que o jovem havia feito, foi encontrado pelos uruguaios e enterrado em Montevidéu. Posteriormente sua família foi informada sobre a descoberta do corpo do garoto.
Filho de um casal de sindicalistas militantes do Partido Comunista, Floreal, que tinha 14 anos quando foi sequestrado, sofreu torturas nas mãos e genitais. Depois, foi empalado vivo.
CORPOS NAS PRAIAS - Na época do surgimento dos primeiros cadáveres, a ditadura militar uruguaia acreditou que tratavam-se de pessoas afogadas em um naufrágio de um navio asiático. Os militares confundiram no início que eram de etnias orientais, pois os corpos estavam “amarelos”. Mas, posteriormente perceberam que tratavam-se de ocidentais.
Nos anos seguintes os militares em Montevidéu reclamaram aos colegas argentinos em Buenos Aires que o surgimentos de corpos em suas praias estavam causando constrangimentos ao regime, além de pânico nos turistas, que deparavam-se com os cadáveres trazidos pela maré. A partir dali, os pilotos argentinos deixaram de arremessar os prisioneiros na área do rio da Prata começaram a fazer voos até o mar. No entanto, as correntes marítimas continuaram levando os corpos às costas uruguaias.
VALOR DOS DOCUMENTOS - Valeria Barbuto, diretora da área de pesquisa do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), disse ao Estado que a revelação das fotos e documentos por parte da CIDH é “fantástico”, pois “demonstra que ainda existem muitos documentos que ainda não conhecemos e que podem ser de utilidade para a memória e as investigações na Justiça”. Segundo ela, “esta contribuição de documentos confere mais solidez aos processos na Justiça” sobre os crimes da ditadura.
Barbuto sustentou que o real valor destes documentos “poderá ser avaliado ao longo das próximas semanas”. Segundo ela, o material entregue pela Comissão Interamericana “servirá para provar que os voos da morte eram uma sistemática da ditadura e não algo circunstancial”.
A representante do CELS considera que a desclassificação dos documentos da CIDH estimulará que vários países da região acelerem o processo de abertura de seus arquivos sobre os períodos das ditaduras no Cone Sul.
DITADURA ARGENTINA APLICOU VÁRIOS MÉTODOS PARA ELIMINAR PRISIONEIROS
Tal como os funcionários do Terceiro Reich que recorreram aos fornos crematórios para eliminar os prisioneiros dos campos de concentração – como forma rápida de eliminar os vestígios dos corpos dos judeus massacrados – a ditadura argentina optou pelos “voos da morte” como uma de suas modalidades preferidas para “desaparecer” as pessoas sequestradas.
Adolfo Scilingo, ex-capitão da Marinha que em 1995, arrependido de sua participação nos “voos da morte”, revelou que 4.400 pessoas foram assassinadas ao serem arremessadas no rio da Prata e no mar desde os aviões da Marinha. Scilingo, condenado a 640 anos de prisão pelos tribunais da Espanha por crimes contra a Humanidade, sustentou que os voos da morte não eram um procedimento circunstancial, mas sim, parte de um plano de grande escala de eliminação dos corpos dos desaparecidos.
Além da Armada argentina, a Aeronáutica e o Exército também realizaram “voos da morte”, embora em menor escala, já que estas duas forças preferiam o enterro dos cadáveres em fossas comuns clandestinas. Na quarta-feira, na província de Tucumán, no norte da Argentina, a Justiça revelou a descoberta de uma fossa comum com quinze corpos de desaparecidos da ditadura.
Um dos corpos encontrados foi o do ex-senador Guillermo Vargas Ainasse, que foi sequestrado pelos militares em abril de 1976, aos 35 anos. A Equipe de Antropologia Legista fez um exame de DNA
A ditadura argentina também amarrava prisioneiros e os dinamitava vivos, além de fuzilamentos em massa.
PROTAGONISTA DOS VOOS FALAVA COM O ‘PEQUENO JESUS’ - Um dos criadores dos “voos da morte” foi o capitão de corveta Jorge “Tigre” Acosta, uma das “estrelas” da ESMA. O oficial, que falava sozinho à noite, em delírio místico explicava aos colegas e prisioneiros que mantinha longas conversas noturnas com “Jesucito” (O pequeno Jesus), ao qual perguntava qual dos prisioneiros deveria torturar no dia seguinte e jogar dos aviões.
Acosta – famoso pelos requintes de crueldade que aplicava aos detidos – também foi um dos principais sequestradores dos bebês de prisioneiras da ESMA, em cuja maternidade clandestina nasceram mais de cem bebês.
Em outubro passado, Acosta, acusado de violar diversas prisioneiras, foi condenado à prisão perpétua por seus crimes durante a ditadura.