domingo, 21 de abril de 2013

Chegará a paz afinal?

Domingo passado, 20/04/13, a Folha de S. Paulo publicou a resenha do livro "Os Anjos Bons da Nossa Natureza", de Steven Pinker, finalmente traduzido para o português e publicado no Brasil, resenha esta assinada por Hélio Schwartsman, bem como uma entrevista feita com o pensador por Reinaldo José Lopes.

(Lembrando que em outubro de 2011 a Folha havia publicado uma resenha do próprio Reinaldo José Lopes do original em inglês)

Pinker já é, digamos, uma figurinha carimbada aqui no blog. Apesar de suas conhecidas posições antirreligiosas, sua insistência (e consistência) no estudo do instinto moral faz com que ele mereça ser lido e ouvido, como já tivemos algumas oportunidades de divulgá-lo por aqui.

Naquilo que nos permitimos discordar de Steven Pinker, é na sua abordagem estritamente humanista do instinto moral, descartando milênios de contribuições religiosas de toda espécie para a sua, digamos, "elaboração".

Percebe-se, portanto, aquele tradicional "ranço" de mágoa de quem um dia se desiludiu com a religião, o que pode comprometer uma análise que se pretende "objetiva".

A seu favor, entretanto, louve-se que ele é um dos poucos pesquisadores (senão o único) que se dedicaram a estudar exaustivamente o instinto moral.

Por outro lado, embora não tenhamos lido ainda o seu mais recente livro, parece que o sentimento de que o mundo está cada dia mais violento não resiste mesmo a uma análise estatística mais aprofundada.

Logo, a sua análise parece matematicamente incontestável. Como não lemos ainda o livro, não sabemos se ele se refere ao perigo (sempre presente) de extinção da humanidade na eventualidade de uma terceira guerra mundial, que seria óbvia e tristemente - nuclear.


Ou seja: vivemos hoje com o risco de que a próxima guerra da humanidade seja também a última, o que não quer dizer que a paz reinará a partir do seu final, mas que não sobrará ninguém para contar a história.

Talvez resida justamente aí a dificuldade metodológica de se entender (e aceitar cegamente) o argumento levantado por Pinker: como analisar estatisticamente as relações humanas e internacionais com grau absoluto de certeza?

A título de mórbido exemplo, Pinker fala da diminuição do terror em entrevista publicada um dia antes da explosão das bombas na maratona de Boston, mas - como ele próprio admite - basta que 1% da população mundial esteja interessada em atos terroristas para por todo o resto a perder.

Variáveis intrigantes, portanto, embora sem desmerecer o trabalho hercúleo de Pinker na busca de respostas humanas a questões que, talvez, não sejam tão humanamente explicáveis assim.

Por isso mesmo, talvez seja muito arriscado cravar de antemão que o século XXI será um século de paz.





HÉLIO SCHWARTSMAN

"Ó tempos, ó costumes". Não foi Cícero quem inventou a mania de lamentar a corrupção e a decadência, mas ele foi particularmente feliz ao cunhar a expressão "o tempora, o mores", que traduz com primor essa propensão humana. Somos otimistas locais e pessimistas globais. A maioria das pessoas se julga um pouco melhor e mais esperta que a média da humanidade, mas não hesitamos nem um instante em catalogar o mundo como um lugar caótico e ameaçador que piora a cada dia que passa.

É claro que essa visão não resiste a uma análise empírica. Num dos livros mais importantes da década, Steven Pinker demole o mito recorrente de que o ser humano é uma espécie violenta e de que as guerras e massacres que produzimos em escala industrial nos levarão de forma inexorável à extinção.

Em "Os Anjos Bons...", o autor mostra que o mundo está se tornando um lugar cada vez mais seguro para viver, e a raça humana se mostra cada vez menos violenta. Pinker tem noção de que a tese encerra algo de polêmico e por isso dedica boa parte do livro a demonstrar com sofisticadas análises estatísticas como as taxas de violência estão caindo.

Considerando os números absolutos, o século 20, com duas guerras mundiais e um punhado de genocidas, se torna imbatível - 180 milhões de mortes em conflitos e massacres. Essa cifra corresponde a mais ou menos 3% do total de óbitos registrados ao longo do século. Mas, se nos fixarmos nas proporções, até os mais sanguinários tiranos perdem para nossos ancestrais que viviam em sociedades sem Estado.

Evidências arqueológicas recolhidas de dezenas de sítios que datam de 14000 a.C. a 1770 d.C. revelam que as taxas de mortalidade em conflitos podiam chegar a inacreditáveis 60%, como é o caso dos índios Creek ao longo do século 14. A mortalidade média verificada nesses sítios foi de 15%.

O grande mérito do livro, porém, não está na numeralha, mas nas análises de Pinker que tentam explicar o fenômeno. O autor identifica seis tendências históricas que contribuíram para reduzir a violência.

A mais antiga é a que ele chama de "processo pacificador", que teve início quando passamos a viver em cidades. Até por não toparmos mais a todo instante com bandos rivais, as taxas de violência caíram cinco vezes. Inspirado em Norbert Elias, Pinker chama o segundo passo de "processo civilizador". Ele teve lugar com o surgimento dos Estados centralizados europeus, que reservaram para si o monopólio do uso da violência. O resultado foi uma redução da violência da ordem de 10 a 50 vezes. É claro que, uma vez criadas, a repressão e as forças da ordem passaram a ser elas próprias a principal fonte de violência.

A terceira tendência, a "revolução humanitária", desponta com o Iluminismo e os movimentos que buscavam eliminar chagas velhas e novas da humanidade, como a escravidão, a tortura judicial, o despotismo, a intolerância religiosa.

O quarto elemento é a "longa paz". Aqui, Pinker retoma as ideias de Immanuel Kant, que apontava as virtudes pacificadoras da democracia, do comércio e de organismos multilaterais. Ora, foi justamente esse "blend" que o mundo passou a experimentar em doses cada vez maiores a partir da 2ª Guerra.

Em quinto lugar vem a "nova paz", instalada após a queda do Muro de Berlim. De lá para cá, verifica-se que diminuiu o número de genocídios, ataques terroristas e ondas de repressão que de algum modo eram alimentados pela Guerra Fria.

Por fim, temos o que Pinker chama de "revoluções dos direitos". A partir de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, começaram a pipocar movimentos com o objetivo de combater agressões a grupos específicos.


Situações como a do pastor Marco Feliciano e discussões em torno de cotas e casamento gay dão a dimensão de como esses temas ainda causam polêmica. O politicamente correto (PC) desponta aqui como um efeito colateral de um movimento civilizador. É claro que devemos combater os muitos exageros do PC, mas seria um erro classificá-lo entre as 10 pragas do Egito. 


DEMÔNIOS E ANJOS Pinker dedica alguns capítulos a destrinchar a psicologia da violência. Em resumo, contamos com cinco demônios internos que respondem pela maior parte das agressões: predação (violência com vistas a atingir um fim), dominância (desejo de obter prestígio), vingança (propensão a reparar injustiças), sadismo (o mal pelo mal, mas este é um fenômeno bem raro) e a ideologia (criar a sociedade perfeita ou concretizar os desejos de Deus).


Contrapõem-se a esses demônios quatro anjos, isto é, os mecanismos que nos permitem resistir à violência e nos colocam na rota da cooperação: empatia, autocontrole, senso moral e razão.

Pinker acaba se revelando um otimista, mas de modo algum um crente. Ele tem claro que os cinco demônios estão sempre à espreita e podem atacar a qualquer instante. Nossa espécie é violenta. Hobbes tinha razão. Mas, ao lado dos demônios, temos os anjos e, se medirmos as coisas na escala da história e não na das sensações e machetes dos jornais, a conclusão inescapável é a de que estamos fazendo um bom trabalho. O mundo de hoje é, sob quase todos os aspectos, melhor que o de nossos ancestrais.





A evolução de um mundo menos hostil

REINALDO JOSÉ LOPES

RESUMO Em aguardada edição brasileira, psicólogo evolucionista sustenta que a humanidade se encontra num dos períodos de menor violência de toda a sua história. Autor sublinha o embate entre as tendências que nos levam à agressividade, como a vingança e o sadismo, e as que nos afastam dela, como a razão e a empatia.

Há boas razões para acreditar que vivemos no mundo menos violento de todos os tempos, e que essa tendência benévola tem tudo para continuar nos próximos séculos, afirma o psicólogo evolucionista Steven Pinker, da Universidade Harvard.

O livro mais recente do pesquisador, "Os Anjos Bons da Nossa Natureza" [trad. Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta, Companhia das Letras,188 págs., R$ 74,50], acaba de chegar ao Brasil, e usa uma enorme massa interdisciplinar de dados para argumentar que, perto de qualquer outro momento da história humana -inclusive o "estado de natureza" supostamente idílico dos caçadores-coletores ancestrais-, o século 21 é um paraíso de paz. Até o terrorismo já passou de seu auge, que teria sido nos anos 1970.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Pinker concedeu à Folha, por e-mail.

Folha - O sr. acha que a tendência de violência decrescente que descreve em seu livro vai continuar, digamos, pelos próximos 200 anos?

Steven Pinker - Depende da categoria de violência de que estamos falando. Levando em conta o fato de que o declínio da violência vem de mudanças institucionalizadas e não depende do capricho de um pequeno número de agentes, podemos fazer extrapolações, ainda que com cuidado. Várias tendências na área dos direitos humanos se encaixam nessa categoria, como o declínio da autocracia, da violência contra as mulheres, a diminuição da perseguição a homossexuais e da violência contra crianças, e acho que esses declínios vão se acentuar.

A razão para esse otimismo é que as campanhas anteriores, cujo objetivo era envergonhar os praticantes de algum tipo de violência, como as que condenavam a escravidão, a pirataria, a captura de baleias e os testes nucleares atmosféricos, levaram décadas ou séculos para atingir seus objetivos, mas acabaram chegando lá. Agora, vemos campanhas de grande escala, parecidas entre si, a respeito da violência contra mulheres, e há razões para acreditar que, no fim das contas, elas também terão sucesso.

Mudanças nas normas sociais sugerem que a guerra entre diferentes países vem se tornando menos provável. Não acreditamos mais que a guerra seja "a continuação da política por outros meios", como dizia [o teórico militar prussiano Carl von] Clausewitz [1780-1831]. Ainda há, porém, algumas categorias de violência nas quais um pequeno número de indivíduos consegue causar muito estrago. Um terrorista com uma arma nuclear, um líder despótico que tiraniza um país ou um golpe de Estado realizado por um pequeno grupo de insurgentes continuam a representar perigo. Há 7 bilhões de pessoas no mundo, e nenhuma tendência se aplica a todas elas.

Por isso mesmo é impossível prever se as mortes causadas pelo terrorismo vão diminuir, porque isso exigiria que 100% de nós concordemos que o terrorismo é ruim. Mesmo se 99% de nós concordarmos, ainda sobraria muita gente que encoraja o terrorismo, e elas poderiam causar muito estrago.

Se a natureza humana não é infinitamente maleável, mas tem restrições biológicas, onde a capacidade de "mudar para o bem" termina?

Essa visão vem de uma incompreensão completa da abordagem evolucionista para o comportamento humano. A evolução não cria -nem é capaz de criar- comportamentos totalmente definidos. Os comportamentos são controlados pelo cérebro, que processa informações. A evolução é capaz de moldar o cérebro para que ele tenha certas motivações, para que aprenda e pense de determinadas maneiras, e o comportamento propriamente dito depende de como o cérebro, equipado com essas faculdades, reage a seu ambiente. Esse era o cerne de outro livro meu, "Tábula Rasa".

No caso da violência, o comportamento agressivo depende da interação entre motivações que nos impelem à violência, como a exploração, a dominância, o sadismo e a vingança, e motivações que nos afastam dela, como a empatia, o autocontrole e a razão. O equilíbrio entre essas motivações pode mudar ao longo da história.

Na sua opinião, qual será a próxima grande Revolução Humanitária?

Acho que já estamos vendo algo parecido em muitas frentes, como as campanhas contra o tráfico de pessoas, a violência contra a mulher, o "bullying", a criação de animais em escala industrial, o uso de crianças em Exércitos e o encarceramento excessivo.

Há pensadores que traçam um elo entre os ideais do Iluminismo e o monoteísmo judaico-cristão. A ideia é que não poderíamos ter o florescimento da razão e dos direitos humanos sem a crença anterior num Universo ordenado e num Criador que fez todos os homens iguais. O sr., contudo, discorda dessa visão?

Não consigo entender o que uma coisa tem a ver com a outra. O monoteísmo judaico-cristão é perfeitamente compatível com diferenças nefastas entre grupos de pessoas -a Bíblia permite a escravidão, encoraja a crença de que os africanos carregam a "marca de Caim", ordena que homossexuais, bruxas, adúlteras, heréticos, filhos desobedientes sejam executados, e por aí vai. E algumas ideias do Iluminismo surgiram de forma independente na Índia e na China.

O sr. não tem uma confiança excessiva no poder da razão como instrumento para a paz? Não dá para conceber um regime político ou uma cultura capazes de compartimentar a razão e usá-la de maneira totalmente amoral?

Eis um teste para essa ideia: será que esse regime ou essa cultura permitiria liberdades de expressão e de imprensa? Se não permitir -e a maioria dos regimes tirânicos não permite-, isso significa que tem medo do que acontecerá quando as pessoas exercitarem a razão. Significa que tem algo a esconder, ou seja, sua própria irracionalidade.



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