Entre as suas muitas doutrinas, digamos, exóticas, os mórmons têm no "batismo pelos mortos" um de seus dogmas mais sagrados, em que alguém indica um antepassado ou conhecido - ou mesmo desconhecido - já falecido e, mediante um ritual próprio da religião, esta pessoa é batizada no além como mórmon. Esta estranha cerimônia já provocou muitos problemas para os mórmons, principalmente em relação aos judeus que foram vítimas do holocausto nazista, como também envolvendo os próprios nazistas que o perpetraram, que teriam sido batizados como mórmons atendendo a este princípio fundamental de seu credo. Os mórmons estão tendo as suas doutrinas devassadas pela mídia norteamericana em razão de um dos principais pré-candidatos à presidência dos EUA nas eleições de 2012, Mitt Romney, ser um mórmon destacado. O artigo abaixo foi publicado originalmente no The New York Times, traduzido por Clara Allain, e reproduzido na Folha:
Anne Frank, mórmon?
MAUREEN DOWD
DO "NEW YORK TIMES", EM WASHINGTON
Numa apresentação que fez no sábado à noite na Universidade George Washington, Bill Maher mergulhou de cabeça em um território que a imprensa vem tratando com cuidado máximo.
Roupa íntima mágica. Batismo de pessoas que já morreram. Casamentos celestiais. Planetas particulares. Racismo. Poligamia.
"Por qualquer critério que se queira julgar, o mormonismo é mais absurdo que qualquer outra religião", afirmou o comediante famoso por ser ateu e que desancou os "contos de fadas" de várias religiões em seu documentário "Religulous". "É uma religião fundada na ideia da poligamia. Os fiéis a chamam de 'O Princípio'. Soa como a Diretiva Principal de 'Star Trek'."
Bill Maher disse que prevê que a turma de Mitt Romney respondendo depois de Robert Jeffress, pastor batista texano que apóia Rick Perry, ter dito que o mormonismo é uma "seita" não cristã mais uma vez "passe por cima das diferenças entre cristãos e mórmons".
Maher tampouco foi condescendente com a religião na qual foi criado. Aludiu à Igreja Católica como "rede de pedofilia internacional".
Mas os ateus, assim como os católicos e os cristãos evangélicos, parecem desconfiar especialmente dos mórmons.
Numa pesquisa "Washington Post"/Centro Pew de Pesquisas divulgada na terça-feira, foi perguntado às pessoas que palavra lhes vinha à mente para descrever os candidatos republicanos. No caso de Herman Cain, foi "9-9-9"; no de Rick Perry, "Texas", e, no caso de Mitt Romney, foi "mórmon". No debate, na noite de terça-feira, Romney disse que é repugnante "escolhermos pessoas com base na religião delas".
No "New York Times", no domingo, Sheryl Gay Stolberg fez um relato da atuação de Romney como bispo em Boston, em muitos momentos dando orientação pastoral autoritária sobre todos os assuntos, desde o divórcio ao aborto.
Stolberg relatou que Romney que mais tarde se candidataria ao Senado, concorrendo como Teddy Kennedy, como defensor do direito ao aborto, e então mudaria de posição nas primárias presidenciais republicanas, passando a ser contra costumava aparecer no hospital sem ser anunciado, em seu papel de bispo.
"Em tom repreendedor", avisou a uma mulher casada, mãe de quatro filhos e que cogitava em interromper nova gravidez devido a um coágulo sanguíneo potencialmente perigoso, que não deveria pensar nessa hipótese.
Outro não crente famoso, Christopher Hitchens, escreveu na "Slate" na segunda-feira sobre "o sistema de crenças esdrúxulo e sinistro da LDS" _a sigla representa a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
Sem falar em Joseph Smith, que Hitchens qualifica como "fraudador e mágico bem conhecido pelas autoridades do interior de Nova York", ele também questiona a prática mórmon de reunir arquivos sobre mortos e "incluí-los em sua igreja à custa de orações", como maneira de "'batizar' todo o mundo retroativamente, 'convertendo os mortos' ao mormonismo".
Hitchens observou que a LDS "obteve uma lista de pessoas mortas pela Solução Final dos nazistas" e começou "a converter aqueles judeus massacrados em membros honorários da LDS, também". Descreveu isso como "uma tentativa crassa de praticar um roubo em massa de identidades dos mortos".
Os mórmons chegaram a batizar Anne Frank.
Ernest Michel, o então presidente do Agrupamento Mundial de Judeus Sobreviventes do Holocausto, precisou de três anos para conseguir que os mórmons concordassem em parar de batizar vítimas do Holocausto à distância.
Os mórmons desistiram da empreitada em 1995, depois de Michel, como divulgou a Agência Telegráfica Judaica, "descobrir que sua mãe, seu pai, sua avó e seu melhor amigo de infância, todos de Mannheim, na Alemanha, tinham sido batizados postumamente".
Michel disse à agência de notícias: "Me deixou aflito o fato de meus pais, que foram assassinados como judeus em Auschwitz, serem incluídos numa lista como membros da religião mórmon".
Richard Bushman, mórmon que é professor emérito de história na Universidade Columbia, disse que depois "da confusão judaica", os mórmons "desistiram de fazer enormes esforços para coletar os nomes de todo o mundo que já viveu e batizar essas pessoas _até mesmo George Washington". Agora, disse ele, os mórmons o fazem para outros mórmons que levam ao templo o nome de um parente ou antepassado morto.
Bushman disse que "os mórmons acreditam que Cristo é o filho divino de Deus que pagou por nossos pecados, mas não acreditamos na Santíssima Trindade, no sentido de que há três em uma. Acreditamos que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três pessoas distintas."
Kent Jackson, reitor associado de religião na Universidade Brigham Young, diz que, embora os mórmons sejam cristãos, "o mormonismo não faz parte da árvore familial cristã".
Os evangélicos e católicos céticos provavelmente não se sentirão reconfortados por saber que os mórmons pensam que, enquanto outros cristãos têm acesso a "apenas uma parte da verdade, o que Deus revelou a Joseph Smith é a verdade por inteiro", como diz Jackson. "Não hesitamos em dizer que evangélicos, católicos e protestantes podem ir ao céu, incluindo o pastor Jeffress. Apenas achamos que as maiores bênçãos do céu são dadas" aos mórmons.
Quanto aos planetas que casais mórmons devotos podem ganhar após a morte, Jackson diz que isso não passa de boato infundado. Mas, para Bushman, isso faz parte do "folclore mórmon" e se baseia na crença de que, se os humanos podem tornar-se semelhantes a Deus, e Deus é dono do universo inteiro, então talvez os mórmons ganhem a chance de mandar em um pouco desse universo.
Quando à peça de roupa especial que Mitt usa, "não diríamos que é uma 'roupa íntima mágica'", explica Bushman.
O objetivo dela é denotar "proteção moral", um sinal de que quem a traja é "membro de um grupo consagrado, como os sacerdotes de Israel na antiguidade".
E não é mais uma peça só. "Agora são duas peças", disse ele.
Os republicanos fizeram da religião uma parte da prova presidencial. Veremos agora se Mitt consegue passar nessa prova.
TRADUÇÃO DE CLARA ALLAIN