domingo, 23 de outubro de 2011

Steve Jobs, o iGod

Tanya Gold escreve um interessante artigo no jornal britânico The Guardian de 21/10/11, em que afirma que a deificação de Steve Jobs é o maior triunfo em marketing que a Apple conseguiu em sua história. Essa, digamos, “canonização” (ou “divinização”, por assim dizer) se deu de maneira suave e surpreendente, numa espécie de aplicativo que só se tornou operacional através da morte. Steve Jobs é hoje, para Tanya Gold, a Princesa Diana da América, uma figura trágica que simboliza transformação. Nesta visão tragicômica, os Estados Unidos já não poderiam mais contar com Jacqueline Kennedy, que está morta há muito tempo para desempenhar este papel, nem Michael Jackson, que é muito esquisito para este fim. Isto deixa a articulista ainda mais espantada, pois, para ela, o verdadeiro legado de Jobs não é exatamente a possibilidade de comunicação, mas a maneira como as pessoas se distanciam e se ignoram em público hoje, utilizando seus iPhones e iPads para atingir este fim. A melhor comunicação que esses aparelhos transmitem é a da indiferença para com quem está à sua volta. Reconhecendo-se parte de uma minoria, Gold se diz ainda “aliviada” por ter perdido um iPhone, porque assim ela descobriu quanto tempo desperdiçava das maneiras mais variadas e supérfluas, como seguir-se a si mesma - enquanto caminhava numa rua - através de um ponto num mapa virtual.

A seguir, o artigo comenta que a morte de Jobs teve o condão de parar o relógio, como se o tempo tivesse pausado para reverenciá-lo. Enquanto o seu cadáver ainda esfriava, todos os aspectos de sua vida e legado eram detalhados por uma mídia prostrada de joelhos, transformando-o na pessoa mais famosa do mundo, a um passo de se tornar o novo Messias, justo quando era tarde demais para ele desfrutar de toda essa celebridade. A cerimônia fúnebre que o lembrou no último domingo teve cobertura maciça da imprensa, que reportou a presença do triunvirato representado por Bill Clinton, Stephen Fry e Bono Vox, que lá estiveram para render suas homenagens. Outras celebridades presentes tuitaram a sua tristeza, o que não deixa de ser pertinente, pois Steve Jobs foi o maior facilitador do mundo para a “manufatura de emoções” em 140 caracteres ou menos. Diante de tanta repercussão idiota na mídia, muitas pessoas – obedientemente – manifestaram a sua dor, já que a imprensa os levou a acreditar que haviam perdido alguém muito precioso. Logos celebrando Steve Jobs foram criados, circularam abundantemente e logo foram esquecidos. As lojas da Apple no mundo inteiro se converteram em santuários, com iPads transformados em candelabros virtuais, enquanto outros iPads eram – bizarramente – deixados nas lojas como uma oferta sagrada, como se os deuses da modernidade não quisessem mais frangos, mas pequenos aparelhos eletrônicos.

Como compreender isso tudo, então, pergunta-se Tanya Gold. Luto como um fenômeno mundial não é algo novo, já que é essencialmente forjado pela mídia que precisa vender jornais e rechear noticiários, o que deixa um gosto amargo, já que para cada estranho que você pensa que sente a dor da saudade, existe um amigo que você se esquece de lembrar. Esses relacionamentos são falsos e imaginários, o que leva Gold a se perguntar se – em vez da vida propriamente dita – não é o “estilo de vida” que se louva em tudo que se refere ao lamento massivo por Jobs. É normal curvar-se ao poder, embora seja um tanto quanto estranho com relação à Apple, cujos produtos se apresentam como um libelo de democracia, o que não deixa de ser ridículo se considerarmos quão poucas pessoas podem realmente comprar os seus produtos e como a empresa protege agressivamente o seu software da concorrência feroz.

Entretanto, nunca antes no mundo houve um luto parecido por um presidente de empresa. Seriam essas homenagens a Jobs expressões de puro materialismo? Não é mais suficiente apenas amar os seus produtos; quando a pessoa que os criou morre, espera-se que você entre numa espécie de transe espiritual. Logo, o que significa chorar pelo inventor do iPhone? Para Tanya Gold, este gesto é o maior triunfo de marketing da Apple, além de ser completamente oposto ao que significa uma experiência espiritual. Por outro lado, não deixa de ser uma situação fácil para a Apple explorar, aproveitando a deixa de transformar em propaganda aquilo que os editoriais lhe servem de bandeja, já que a única coisa que verdadeiramente interessa a todos eles é o lucro. Sem contar o “churnalism”, expressão inglesa que identifica as reportagens laudatórias fundadas em malas diretas e boletins que a própria empresa envia para a imprensa. A articulista cita ainda um editorial do The New York Times intitulado “You love your iPhone. Literally” (“Você ama o seu iPhone. Literalmente”), que informava que pessoas respondiam de forma similar a imagens do logo da Apple e do papa, e usuários do iPhone, quando submetidos a testes originalmente aplicados a bebês, mostravam que – literalmente – amavam os seus aparelhos.

Tudo isso é muito estranho vindo, sobretudo, da mídia impressa, já que ela está sendo engolida exatamente pelos aparelhos criados por Steve Jobs, o que faz Tanya Gold se perguntar se não estão todos sendo vítimas coletivas de uma espécie de Síndrome de Estocolmo, que caracteriza o apego mórbido que as vítimas de sequestro desenvolvem em relação às pessoas que as tornam suas reféns. Em relação a Jobs, pois, a imprensa ama o seu assassino. Por mais visionário que tenha sido, tanto Steve Jobs como a empresa que fundou foram absolutamente convencionais no que diz respeito ao desrespeito a direitos trabalhistas, terceirização de produção para a China, com exploração de mão-de-obra chinesa a salários degradantes e condições desumanas que levaram a muitos suicídios, além da mesma hierarquia feudal de outras companhias americanas. Quanto a este aspecto, Steve Jobs podia realmente ter mudado o mundo, mas – contrariamente ao que tentam fazer você crer - ele deliberadamente escolheu não fazê-lo, conclui a articulista.

Para ler o artigo (em inglês) na íntegra, acesse o site do The Guardian.



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